Das coisas que se procura em vão na web, nem sempre o que debalde se encontra é o que infrutífero resulta.
Por diletantismo apedeuta, próprio da minha pesssoa, já tinha percebido alguma semelhança entre dois personagens do Lima Barreto - Isaias Caminha e Policarpo Quaresma - e o personagem Ivan Petrovitch Goliadkin, protagonista de O Duplo, uma das primeiras novelas de Dostoievski. Melhor dito: alguma ilusão de semelhança. Entretanto, não ousaria dizer que era uma imitação, pois a razão da insanidade de Quaresma, por exemplo, passa longe da alucinação persecutória e do espirito obsecado de Goliadkin. Lembro sim que havia algo de similar tanto nas troças que os companheiros de trabalho faziam de Caminha, quanto naquelas que os de Goliadkin faziam dele; na semelhança da condição profissional; numa certa mania de perseguição com pessoas que os tentam ofender, prejudicar, vilitendiar; e por fim o isolamento de ambos num hospital de alienados...
Mas taí uma coisa que desconhecia aventada pelo Machado de Assis: O Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l'Abbé Mouret... Me senti o maior do imbecis constrangidos, ao ver que no google tem um monte de picaretas falando desta semelhança que eu desconhecia, sem a humildade de afirmar que nunca leram ao Zola.
Enfim, falando em reinvenções, meu amigo Rodrigo Patto foi quem me chamou atenção certa vez para o fato de que o Memórias Póstumas de Brás Cubas lembrava muito, ao menos no estilo, uma história escrita por Lawrence Sterne algumas décadas antes chamada Life and Opinions of Tristam Shandy. Acabei indo conferir a estória numa edição de 1832. Não sei se pelo inglês casto, provavelmente não, mas achei um livro chatissimo. Acho que isso se deve a leitura previa do Memórias, que para mim sempre foi o melhor livro, impressão corrigida pelo Dom Casmurro que passou para a minha lista incompleta dos melhores 100 livros da minha vida. Enfim, como bem lembrou meu camarada, lembrar desses detalhes é sempre fundamental para evitarmos a velha patriotada marota.
Então, seguindo a lógica do Lavoisier (aquele do 'nada se cria, nada se perde, tudo se transforma', que foi guilhotinado pelos franceses, não pela sentença cinicamente pertinente, mas pela raiva que todo o serumanu sente da Receita Federal ou IRS - ou seja la que nome essa merda tenha -, da qual ele era arrecadador), o fato de Eça usar traços de Zola, Machado se inspirar em Sterne, Rubem Fonseca melhorar em muito a John O'Hara, nos dá a certeza, que talvez nem venha ao caso aqui, de que fomos engalbelados pelos modernistas ao transformarem uma caracteristica nata do escritor - a angústia da influência, da qual Bloom fala, e que por um passo em falso cai no plágio - num adágio de literatura nacional.
Crítica de Machado de Assis
Publicada na revista O Cruzeiro, 16 de abril de 1878.
Um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa, o Sr. Eça de Queirós, acaba de publicar o seu segundo romance, O Primo Basílio. O primeiro, O Crime do Padre Amaro, não foi decerto a sua estréia literária. De ambos os lados do Atlântico, apreciávamos há muito o estilo vigoroso e brilhante do colaborador do Sr. Ramalho Ortigão, naquelas agudas Farpas, em que aliás os dois notáveis escritores formaram um só. Foi a estréia no romance, e tão ruidosa estréia, que a crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome do autor na primeira galeria dos contemporâneos. Estava obrigado a prosseguir na carreira encetada; digamos melhor, a colher a palma do triunfo. Que é, e completo e incontestável.
Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho real do autor? O Crime do Padre Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir. Se fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso, já da obra em si, já das doutrinas e práticas, cujo iniciador é, na pátria de Alexandre Herculano e no idioma de Gonçalves Dias.
Que o sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l'Abbé Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título. Quem os leu a ambos, não contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de Queirós, porque ele a tinha, e tem, e a manifesta de modo afirmativo; creio até que essa mesma originalidade deu motivo ao maior defeito na concepção do Crime do Padre Amaro. O Sr. Eça dc Queirós alterou naturalmente as circunstâncias que rodeavam o padre Mouret, administrador espiritual de uma paróquia rústica, flanqueado de um padre austero e ríspido; o padre Amaro vive numa cidade de província, no meio de mulheres, ao lado de outros que do sacerdócio só têm a batina e as propinas; vê-os concupiscentes e maritalmente estabelecidos, sem perderem um só átomo de influência e consideração. Sendo assim, não se compreende o terror do padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe nasce um filho, e muito menos se compreende que o mate. Das duas forças que lutam na alma do padre Amaro, uma é real e efetiva - o sentimento da paternidade; a outra é quimérica e impossível - o terror da opinião, que ele tem visto tolerante e cúmplice no desvio dos seus confrades; e não obstante, é esta a força que triunfa. Haverá aí alguma verdade moral? [...]
Que o sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l'Abbé Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título. Quem os leu a ambos, não contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de Queirós, porque ele a tinha, e tem, e a manifesta de modo afirmativo; creio até que essa mesma originalidade deu motivo ao maior defeito na concepção do Crime do Padre Amaro. O Sr. Eça dc Queirós alterou naturalmente as circunstâncias que rodeavam o padre Mouret, administrador espiritual de uma paróquia rústica, flanqueado de um padre austero e ríspido; o padre Amaro vive numa cidade de província, no meio de mulheres, ao lado de outros que do sacerdócio só têm a batina e as propinas; vê-os concupiscentes e maritalmente estabelecidos, sem perderem um só átomo de influência e consideração. Sendo assim, não se compreende o terror do padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe nasce um filho, e muito menos se compreende que o mate. Das duas forças que lutam na alma do padre Amaro, uma é real e efetiva - o sentimento da paternidade; a outra é quimérica e impossível - o terror da opinião, que ele tem visto tolerante e cúmplice no desvio dos seus confrades; e não obstante, é esta a força que triunfa. Haverá aí alguma verdade moral? [...]
Croqui de Henrique Bernardelli, Coleção Oliveira Lima