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Orhan Pamuk


Neve é uma novela do escritor turco Orhan Pamuk que foi recentemente traduzida no Brasil pela Companhia das Letras. Mescla numa trama bem construida um contraditório enredo de paixão, política e as imposições da religião. Como toda a boa obra literaria, esconde um segredo contido dentro de uma caixa de Pandora, que só tem um pequeno problema para quem pensa que é um livro fácil. É toda espelhada por dentro, a caixa.

A começar pelo contexto social. A Turquia contemporânea é, aos olhos de Pamuk, um mosaico de pequenos espelhos onde as instituições do Estado funcionam bem obrigado em Istambul, ou quiçá em Ancara, porém a herança da ocidentalização conquistada na Revolução dos Jovens Turcos por Ataturk apresenta porosidades difíceis de serem cobertas pelo cimento do Estado laico nos cantões mais afastados do país. No romance as tensões entre a ação do Estado que mantém a ferro e fogo abolição da poligamia, do sultanato, e impõe o casamento civil como forma essencial de manter o direito de família substituindo o direito islâmico pelo molde ocidental de organizar as intituições civis e penais, encontra forte reação nos movimentos islâmicos que ressurgem principalmente depois do colapso da União Soviética. Tais tensões aparecem por todo o lado nas entrelinhas de um enredo muito bem construido em torno de um poeta que se vê isolado por uma nevasca numa cidade perdida no interior do país.

Ka, o poeta, retorna a Turquia depois de 12 anos de exílio na Alemanha, onde sobrevive de uma subvenção para exilados políticos e de algumas palestra em bibliotecas públicas e centros de cultura turca ao redor do país. Na ocasião da morte da mãe, um amigo de Istambul que trabalha para um grande jornal aconselha-o a investigar a história do suicídio de jovens turcas que ao recusarem-se a tirar as burcas em instituições laicas, acabam se suicidando. Ka, então, parte para Kars, cidade no interior turco, onde encontra Ipek, filha do dono de um dos hotéis da cidade. Ipek é divorciada de Muthar, homem consciencioso que se envolve com a política local filiando-se ao partido radical islâmico. O livro começa com Ka chegando a Kars. A intensa neve bloqueia todas as entradas e saídas da cidade e nesses dias de isolamento inúmera estórias se traçam, tocam-se e espelham-se numa espécie de caleidoscópio que tem como centro a atuação do poeta estranho que chega à cidade.

O núcleo da estória, ou uma das inúmeras estórias de Neve, realmente começa quando Ipek e Ka estão na Confeitaria Vida Nova e presenciam o assassinato do diretor do Instituto de Educação da cidade por um extremista muçulmano, que o acusa de ser o responsável pelo suicídio de uma jovem chamada Teslime, já que esta se recusa a assistir as aulas do Instituto sem seu manto.

Um detalhe importante: o primeiro terço da estória é narrado em terceira pessoa. Uma espécie de narrador onisciente presencia tudo a partir do ponto de vista de Ka, porém se apresenta no decorrer da estória como um amigo de Ka que narra os fatos a partir de um caderno de anotações onde se encontras as impressões detalhadas das experiências do protagonistas nesses poucos dias – curiosamente, suas poesias não estão neste caderno.

Ka sofre por anos, é importante que se diga, de um bloqueio criativo. As musas, simplesmente o abandonaram nos últimos anos de Alemanha e talvez por isso se sentisse compelido a enveredar nessa viagem contraditória entre paixão, política e as imposições da religião, de maneira tão aberta e desprotegida. E somente quando retorna a Kars, volta a sentir a presença de Calíope - quiçá.

O leitor percebe já nos primeiros capítulos que o amor para Pamuk - assim como nos personagens de Dostoievski e Turgeniev - nunca é um sentimento doce e sereno. Ou leva seus personagens a uma paixão desenfreada desencadeadora de profunda amimação e rompantes criativos, ou os afunda no isolamento do gélido silêncio da neve. Por isso as experiências de Ka ao perceber-se apaixonado por Ipek, que certas vezes até lembra um pouco nossa Capitolina, definem os caminhos da paixão sempre dividida entre dois amores, dois caminhos que ou o conduzem à felicidade plena ou arruinam sua personalidade tornando-o vil e delator. Essas caracteristicas também aparecem na coragem e imprecisão de Kadife, irmã mais nova de Ipek que se encontra envolvida com Azul, líder extremista muçulmano que é delatado às forças do MIT por alguém que sabia de seu paradeiro – e este é um ponto chave na estória onde quase tudo sobre a personalidade de Ka e Kadife pode ser desvendado. Seu encontros respectivos com o infeliz e atormentado Muthar, ex-marido de Kadife e candidato a um posto politico em Kars, mostram seu desprezo pelos que usam a religião como meio político, mas também, que a religião tem um papel para além de definidora do bem e do mal, algo que está próximo a uma experiência anímica como é mostrado no encontro de Ka com o shiek Saadettin Efendi, que o inspira a escrever um certo número de poemas reveladoramente pautados na linha lógica de um floco de neve. Mas além do amor, a ambição política também faz parte dessa narrativa através do volúvel, erudito e ambicioso ator Sunay Zaim - que diga-se de passagem é um personagem dentro de uma persona criada por ele próprio, e que se se pode apontar uma pisada de bola em Neve ela talvez esteja na brevidade com que Pamuk trata esse tipo. O resto da estória deixo para quem o ler.

Mas uma coisa me intriga, e se um dia encontrasse a Pamuk perguntaria a respeito do sentido do nome do poeta Ka, aparentemente provocativo em virtude dos acontecimentos políticos recentes na Turquia. O livro foi lançado em 2002 e causou muita polêmica pela personalidade criticamente explosiva do autor que parece ter gastado um ano na preparação do romance. Coincidentemente - ou não - em 2001 a corte constitucional turca bane o Partido da Virtude, de tendência autenticamente islâmica, acusando-o de minar o Estado secular. Seus deputados fundam, então, um novo partido chamado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (Adalet ve Kalkınma Partisi)cujo acronimo é exatamente AK - voilá Ka espelhado. Fato é que nas eleições de 2002, exatamente no ano do lançamento intencional ou não - nunca se sabe - de Neve, o partido obtem maioria no parlamento Recep Erdogan elege-se primeiro ministro. E há uma passagem intrigante no livro onde Ka argumenta veementemente a um jovem poeta islâmico que o 'a' de seu nome Ka é grafado em letra minúscula. Pamuk cria vários espelhos nessa obra onde personagens e seus rasgos de personalidade, paixões e situações aparentemente arbitrárias, invertem-se ao refletirem-se umas nas outras, e talvez a questão do nome do protagonista seja apenas mais uma das reflexões - só que contra a realidade verosímil.

Música do dia: ária do suicidio - La Gioconda - Ponchielli/Boito