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Náufragos do escolho

Náufragos do escolho



 

 

RESENHA

Rogido, Francisco. Náufragos do escolho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023. 192 pp.

 

Há uma novidade de destaque no díspar universo da literatura brasileira contemporânea. A capa neo-surrealista deste livro de contos – tão bela quanto sinistra – tem um piano de calda pairando nas nuvens sobre uma obscura cena de cidade com um cinema ao canto. As pernas do instrumento estão derretendo, e sobre ele se mescla uma imagem de caveiras e bebês mergulhando de cabeça para baixo numa piscina que cai para dentro do piano. A faceta de estranhamento em Náufragos do escolho é reforçada pela epígrafe do volume. Assinada pelo filósofo oitocentista alemão Friedrich Nietzsche, declara: “Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo.”

De fato, pode-se dizer que já no título e subtítulo de seu livro de estreia, Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais), Francisco Rogido revela dois dos elementos essenciais dessa coletânea. Há, pois, uma relativa, mas inegável, estranheza na escolha do termo “escolho.” Vocábulo um tanto raro na linguagem do dia-a-dia no português do Brasil, ele é derivado de scoglio, em italiano, que significa “espinho”, ou, figurativamente, “dificuldade”, “obstáculo”, “perigo” ou “risco” para os barcos no mar.

Também vemos humor no inusitado catálogo de elementos desiguais que descrevem, entre parênteses, o conteúdo da obra. Exatamente quais seriam, por exemplo, os 98 “infernos possíveis” (talvez haja mais que isso), ou os 63 takes cinematográficos dos contos (será que há tantos)? Tais números talvez não importem, na perspectiva subjetiva de quem lê a obra. Com certeza dialogando com a sétima arte – em particular, nas elaboradas semelhanças estruturais, dialogais, rítmicas e visuais entre filme e literatura – os contos de Rogido proporcionam algum lirismo e alguma crença na bondade humana. É o que se percebe no conto “A falta agrava a tristeza da noite”, onde amor e sexo surgem subitamente entre personagens idosos que se (des)conhecem num hospital sob condições extremamente adversas, inclusive a proximidade da morte (159-165).

No todo do volume, entretanto, prevalecem as acentuadas doses de angústia, frustração, pessimismo, violência, horror e dor, efeitos quase sempre atenuados por ironia, humor, poesia, e, às vezes, por um sentimentalismo muito discreto. Um exemplo é “Lá não existem flores” (158). Apesar de ser um dos contos mais curtos da coletânea, de apenas meia-página, sua linguagem veloz nos leva muito longe no sentido de questionar a injustiça e o vazio existencial que assolam as vidas de tantos pessoas sem muito tempo para o lazer ou para o convívio com familiares e amigos, pois se ocupam de longas jornadas diárias de trabalho e vivem em bairros muito afastados, o que exige que acordem bem cedo (pelas quatro da manhã, como no caso do protagonista anônimo). Esse vendedor de flores se entristece por nunca ter sido capaz de participar dos eventos e ambientes alegres e festivos do tipo aonde vão diariamente as flores que vende. Entretanto, o que mais o inquieta não é essa exclusão ou a falta de filhos. É uma “ideia fixa”, que na sua idade avançada o faz questionar: “quem iria levar flores a seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?” (158).

Magistralmente desenvolvidas nos limites e poderes da palavra escrita em seus múltiplos e variantes takes e tons, as narrativas de Rogido tanto nos trazem consternação e vergonha da espécie humana quanto nos induzem ao carinho e à compaixão por centenas de personagens que, na sua maioria, são indivíduos pobres, como operários ou pessoas de classe média baixa, cujas existências, sentimentos mais profundos e visões de mundo pouco aparecem nos romances, revistas ou telenovelas. Na maioria das vezes, eles são os indivíduos (des)retratados nas reportagens de crime nos jornais e telejornais. Com certeza, dezenas dos personagens de Náufragos do escolho sofrem com as limitações e contradições de suas circunstâncias cognitivas, existenciais, intelectuais e socioeconômicas. Como cada um de nós, porém, são todos seres humanos e possuem um enorme potencial para inesperada superação e imprevista conformidade com os nossos próprios escolhos, inclusive aqueles que de repente podem empurrar quaisquer pessoas rumo ao delito, mesquinhez ou maldade, ou engendrar uma lição transformadora de empatia, generosidade, e perdão.

A inclusão de crimes na literatura é prática muito mais antiga, naturalmente, mas não há como não ver semelhanças entre as narrativas de Rogido e a abordagem de temas afins em Machado de Assis, especialmente onde o autor de Dom Casmurro explora os mistérios e defeitos morais da mente humana e as camadas invisíveis, capciosas, ou intersecionais do real. Por outro lado, o macabro e o imponderável no submundo dos contos de Rubem Fonseca, a linguagem concisa e popular em Dalton Trevisan, assim como o humor sardônico, sutil e sofisticado em Luis Fernando Verissimo, também têm eco em Rogido.

Em Náufragos do escolho há ainda outras semelhanças com mais vozes de relevo na literatura brasileira. Entre essas marcas, observa-se em Rogido a poesia do cotidiano e das reflexões filosóficas de Ana Cristina Cesar, a coragem estética e a destreza narratológica de Cassandra Rios ao questionar as sombras e os mitos da sexualidade humana (seja ela heteronormativa ou anticonvencional), e a determinação de Márcia Denser para evocar ideologias de gênero e assim contribuir para a emancipação das mulheres. Podemos até mesmo suspeitar da atuação dos princípios conceituais e metodológicos similares aos de Clarice Lispector, aqueles por trás da elaboração e utilização do formato fragmento, que, aliás, nem em Rogido e nem Lispector é exatamente “fragmento”, por se fazer complexo e autossustentável, apesar de seu minimalismo.

Muitas vezes narradas em primeira-pessoa por homens ou mulheres, ou ocasionalmente um animal, mesmo que já defunto, como no desconcertante conto “5x7” (11-14), as histórias de Rogido realmente nos colocam sob a pele de centenas de seres. Eles nos iluminam através das suas perspectivas sobre os desafios do viver e suas necessárias ações práticas, às vezes até mesmo diante de momentos-tabus, como o de quando lidar com o corpo de um (talvez) parente morto. Para ilustrar, vale recordar o comportamento de um cliente de Mateus Araripe, um autodeclarado “esteticista” funerário.

Desde o início do diálogo ligeiro, sem contextualização, que abre o primeiro conto da coletânea, intitulado “Mateus,” perpassamos um estranho humor através de fatos repugnantes e possíveis decisões oportunistas. “O senhor é parente?”, pergunta o esteticista. Evasivo, responde o cliente: “Pode ser” (9). Mateus faz saber: “Vai vazar... [...] Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam” (9). Após os dois acertarem o preço do serviço (800 reais incluindo a maquiagem do defunto, a venda da roupa, do terço, etc.), o cliente não hesita: “Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta” (10). O esteticista se mostra surpreso: “Que é isso, doutor... Que horror... Eu pensei que o senhor...” (10). O cliente não cede: “Pensei... pensei... o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro” (10). Logo arremata: “quem pensa demais acaba se enganando... Não esqueça a aliança, e os dentes de ouro, eu os quero também” (10).

 

Dário Borim Jr.. É tradutor, fotógrafo e professor de Literatura Brasileira na University of Massachusetts Dartmouth. 


Amores Encubados

 



Godofredo de Oliveira Neto – Amores Exilados – Editora Record. 239 páginas. 2011.
Amores Exilados é o título do livro décimo segundo livro de Godofredo de Oliveira Neto. Tecnicamente, o livro já havia sido publicado em 1997, numa espécie de livro avant la lettre sob o nome de Pedaço de Santo, mas o autor revisou boa parte do triângulo amoroso em questão e o transformou neste novo artefato literário. Paulo Mendes Campos disse um dia que “por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba. Este novo livro fala, como o próprio título enuncia, do exílio e do amor no plural, e de como o amor acaba, quando acaba. Assim como as saudades e a memória, que se não devidamente preservadas, também morrem aos poucos, Godofredo de Oliveira traça uma urdidura que, entre intrigas e enganos, carregada de tensão amorosa, militância política e a própria desconfiança patológica dos envolvidos nos movimentos revolucionários, leva ao limite o horizonte resolutivo das vidas clandestinas envolvidas.
A estória se centra no triângulo amoroso entre a francesa Muriel Sandrine Charlotte Leroux, o catarinense Fábio e seu companheiro de militância, o baiano Lázaro da Costa Costa, ambos exilados em Paris nos anos de chumbo - fazendo parte da mesma organização guerrilheira, a Aliança Socialista Libertadora. Os dois brasileiros vivem na clandestinidade e, exilados em Paris, fazem de tudo para se manterem longe dos problemas políticos internos do país e principalmente longe de problemas com a imigração francesa. Antes como imigrantes a exilados, na solidariedade forjada fora, recriam sua lógica de inserção e sociabilidades tentando participar do maior número de associações e grupos de debates possíveis, frequentando as reuniões com a comunidade brasileira de Paris e associações francesas na Maison de l'Amérique Latine, na Maison du Brésil da Cidade Universitária e na Mutualité. Era como se o exílio implicasse numa forma fatal de solidão e alienação e o reverso disso fosse a socialização. Uma sensação útil, verdadeira e válida em que por isso mesmo fosse tão importante estar unido ao amálgama dos estrangeiros exilados numa espécie de rede. Nessas redes de solidariedade discute-se política, arte, cultura, mas mais que isso, é onde os imigrantes aprendem sobre si próprios, dividindo perrengues e soluções, tais como conseguir um trabalho ou tal almejado estatuto de refugiado, afastando o fantasma do carimbo de indocumentando e evitando assim a deportação. Aprendem mesmo, por meios mais prosaicos, por onde manter contato com o Brasil usando telefone público em Denfer-Rochereau, que funcionava sem ficha, direto, de graça – tal como o mítico orelhão da Telerj, na Praça Tiradentes no final dos anos 1980. No orelhão de Denfer-Rochereau preço era sempre alto, pois o risco de ter as conversas gravadas pelos serviços de informação da França era sempre um medo a ser considerado.
O exílio, aliás, é um capítulo à parte: A solidão em alguns, a estranha alegria em outros, a angústia na maioria. O universo dos exilados era esse. A insegurança psicológica ou levava a abraçar com exagerado ardor o país do exílio ou a abominá-lo.” Outro, é o amor, ou o que se pensa de que é feito o amor. Godofredo, lá pelas tantas diz, Amar no exílio potencializa a sensibilidade” para o bem e para o mal, como fica claro no turbilhão obsessivo em que Fábio embraca na paixão por Muriel, que tal como uma espécie de Capitu, negocia de maneira sutil com as paixões de ambos, Lázaro e o próprio Fábio. No melhor estilo da dúvida deixada por Machado de Assis, Godofredo conversa bem com essa tradição literária “…Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu…. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca….” E isso fica claro numa das discussões entre Fábio e Muriel, antes da partida definitiva desta: Muriel fitava o companheiro. Parecia que ela não piscava; mais ainda parecia que as palavras diziam uma verdade, os olhos outra. Fábio escolhesse entre o verbo combinado, decorado, imitado e o cromatismo rebelde, livre, desconhecido.”


Fica evidenciado, assim, que para os dois brasileiros, mesmo apaixonados, ambos encaram de maneira distinta a solitude e a parceria, nas suas mais intimas interseções e tangências. Os enquadramentos do que é o amor, e de como ele vai terminando, tremulam e se desfocam de maneira distinta nas percepções do baiano e do catarinense. Lázaro o encara como algo fluido, na cabeça de Fábio como uma conquista onde a fidelidade amorosa é uma desesperada elipse que se opõe à realização da paixão. Os motivos são muitos. O ciúme, a parnóia, o abuso de tranquilizantes, as memórias traumáticas da tortura e das ações guerrilheiras das expropriações a bancos – por vezes, com desfechos trágicos – sobrepõe-se e atravessam o tempo todo a memória e as ações de Fábio. Outra coisa que não ajuda nada é a presença constante de Lazaro, que faz com que Fabio se sinta paranoicamente ameaçado e traído. Raiva, ódio e ira passam a se manifestar, borrando o equilíbrio do triângulo – que para Muriel e Lázaro era algo aparentemente natural. Ou seja, Eros, o propulsor da vida, dá lugar a Tânatos, sinonímia de ódio e agressividade, e todo o coletivo de significados onde pulsa o sentido de morte como fim. Dessa maneira, os amantes se deparam com a impossibilidade da posse real do ser amado e optam pela morte, pela perda, ou qualquer outra coisa. E é assim que Lázaro, o dissidente, o amigo de ala, o ex-companheiro de Muriel está lá o tempo todo. Pelo menos nos pensamentos de Fábio. Tá lá no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no retorcido do croissant, no disco do Geraldo Vandré presenteado pelo baiano. O baiano está em todo o canto, e o pior é que o baiano é um dos melhores amigos de Fábio.
O inferno na cabeça de um Fábio atormentado pelo seu passado recente de tortura, não estanca só com a prensença de Lázaro. Para piorar o baiano chama-a de Melusina e conhece alguns de seus segredos, sabe por exemplo, um pouco da difícil história de infância da francesa em Saint Bonnet de Salers no Cantal, perto de Aurillac. A mãe tinha matado o marido, quando a garota tinha sete anos. O pai de Muriel era na verdade um marinheiro grego, foragido de uma cadeia e que na fuga passou uma noite na casa do casal. Nasceu Muriel. O resto é a história que cruza o caminho do catarinense e do baiano, fazendo-os dividir a militência e as atenções da mesma mulher. Nesse contexto não teria como o ressentimento e as desconfiança de Fábio parasse de crescer, em proporções distorcidas.
No decorrer da leitura, não dá para deixar de associar, mais de uma vez, nossa Melusina com a Jeanne Moreau no filme de Truffaut, Jules et Jim, que o português chamou de Uma mulher para dois. Guardadas as proporções, a primeira metade do filme volta à memória quando a personagem Catharine, se une a Jules e depois da guerra, onde Jim e Jules lutam em campos opostos, acaba por se reaproximar de Jim. Algumas cenas do filme ficam vívidas no decorrer das linhas de Ameores Exilados. Mas as semelhanças param ai.
Godofredo constrói os personagens não em contradições, mas por descrições estanques, tornando precário entender mais de cada um, a não ser pelo que é dado pelo narrador em terceira pessoa. Talvez essa fosse uma das entratégias do autor, já que eram todos exilados e estranhos para eles mesmos. Até mesmo Muriel que fugia de seu passado, não deixava de ser uma exilada de si. A estratégia de Godofredo ao narrar é muito interessante, combinando quase que simultaneamente cenas do presente com flashbacks do passado de militância no Rio de Janeiro. Numa mesma tomada, estão todos os dissidentes jantando animadamente no apartamento de um amigo argelino em Paris e no parágrafo seguinte a cena da fuga pelo Estácio a caminho do Largo de São Francisco.
Essa estratégia persiste até a assembléia derradeira em Paris, quando Lázaro e Fábio sofrem um expurgo no dia 23 de setembro de 1973 - por razões meramente morais, diga-se de passagem - e são convocados para o retorno ao Brasil, entrando pela Bolívia, visando uma nova ação revolucionária. No Rio de Janeiro receberiam um envelope com instruções, alojamento e as armas. A partir desse momento, a estória ganha contornos interessantíssimos pois, pouco a pouco, a longa viagem de volta, na vida do exílio no exílio alimenta reflexões que abrem caminho para a revisão de suas certezas políticas. Lázaro, por exemplo, reavalia a luta armada e a tomada pura e simples do poder pelos operários e camponeses como um erro de adolescência ou de equívoco mesmo, mas encara o retorno de maneira menos dramática que Fábio. Fábio cruza fronteiras mais sensíveis. Não tem nada a perder depois de perder tudo o que um dia foi Muriel. Como o próprio título enuncia, neste livro, o exílio e o amor são sentimentos no plural : O amor adquire várias formas de afeição, e o exílio é muito mais que apenas um sentimento geográfico.


Musica do dia. Tristes Trópicos. Itamar Assumpção



TORQUATO NETO


 

Título: Torquato Neto
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Linoleogravura

 

Filho único de um defensor público e uma professora, passou sua infância em Teresina até os 16 anos, mudando-se para Salvador no intuito de complementar os estudos secundários. E todo o brasileiro sabe que quem tem Neto no sobrenome, tem algo de diferente da pirâmide social Brasileira. A mãe, Salomé, provavelmente mesmo que intuitivamente sabia disso e queria a carreira de diplomata para o filho. O piauiense Torquato Pereira Araújo Neto, apesar de ter Neto no nome, deu voos em outras direções. 

Tudo ia bem até o primeiro vôo em sua ida para a Bahia. No Colégio Nossa Senhora da Vitória, o Marista, passava a maior parte das aulas rabiscando poemas. E ali conheceu Gilberto Gil. Não demorou e já estava colaborando com o jornalzinho da escola e participando das atividades estudantis. Foi no Centro de Cultura Popular da UNE (União Nacional dos Estudantes), que conheceu, também, Caetano Veloso, Duda Machado, Gal Costa, Capinam, Maria Bethânia dentre outros. Nesse início dos anos 1960, passou também a assistir filmes e ler compulsivamente sobre a sétima arte, chegando a trabalhar como assistente no filme Barravento, de Glauber Rocha.

Dois anos depois, o segundo voo, rumo ao rio de Janeiro. Lá termina o científico e, por dois anos, cursa jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.

Ainda no Rio de Janeiro foi apresentado a Edu Lobo, pelo cineasta Rui Guerra, formando imediatamente uma das melhores uma parcerias musicais da música brasileira que, apesar de curta, foi marcante, para ambos. Em três meses, trabalhando intensamente, fizeram Veleiro, Lua Nova, Pra Dizer Adeus, que Edu Lobo diria anos mais tarde, se tratarem as suas melhores músicas.

Além de poeta, inicia também sua atividade jornalística, trabalhando para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora.  Trabalha também em agências de propaganda e na gravadora Philips.

Por sugestão do parceiro Edu Lobo, foi para São Paulo, em 1966. Nessa época, Gilberto Gil morava na cidade, no bairro de Cidade Vargas, e hospedava frequentemente os amigos de fora. Na “Pensão dos Baianos”, como foi batizada, passaram Ruy Guerra, que era mais ou menos baiano, Capinam, Torquato e um monte deles.

Um ano depois, em 1967, Torquato Neto decide casar-se com a baiana Ana Maria dos Santos e Silva. Três anos depois nascia seu único filho Thiago, atualmente piloto de aviação civil.

Durante toda essa década de 1960, o Brasil viveu um turbulento período político e iniciou-se um Ditadura Militar, com um golpe de Estado, dado por militares e apoiado pelas classes médias brasileiras. Torquato, através de seus artigos de jornal, atuava como agitador cultural, polemista e defensor de manifestações culturais de vanguarda, como Tropicália, o Cinema Marginal, a Poesia Concreta. Nesse período, passou a defender ardentemente o Tropicalismo, tendo escrito uma espécie de breviário, onde defendia a necessidade de criar uma cultura pop genuinamente brasileira, baseada numa estética dos trópicos, que em suas palavras seria mais ou menos algo como uma cultura sem preconceitos, sem mau gosto, sem cafonices.

Nesse momento iniciava meios sem querer uma carreira como poeta, jornalista, letrista de música popular e de um supostamente  experimentador ligado à contracultura.

Com amigos como Décio Pignatari, Waly Salomão, os Irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Ivan Cardoso, e Hélio Oiticica, Torquato Neto, puxava a brasa para sua sardinha, já que tinha sido um dos principais letristas de músicas icônicas do Tropicalismo.

Sua grande contribuição para o movimento não foram apenas as letras da canção-manifesto “Geléia Geral”, de “Marginália 2”, de Gilberto Gil, e de “Mamãe Coragem” e de “Deus vos salve esta casa santa”, de Caetano Veloso.  Em suas colunas jornalísticas, defendeu com veemência a contracultura, além disso compôs em parceria inúmeras músicas. Com Gilberto Gil compôs sucessos como, "Louvação", "Domingou", "Zabelê", "A Rua" ou "Encarnada" em que dividiu a autoria com Geraldo Vandré. Com Caetano Veloso ainda compôs "Deus vos salve a casa Santa", "Ai de mim"; "Copacabana", "Nenhuma Dor". Com Jards Macalé: "Lets Play That. Com Carlos Pinto: "Todo dia é dia D". E "Três da Madrugada".

Em 1971 e 1972, Torquato escreveu a polêmica coluna no jornal Última Hora, intitulada Geléia Geral. A essa altura, Torquato já era um alcoólatra inveterado. Nesse espaço, Torquato defendeu desesperadamente o cinema marginal, combateu o Cinema Novo e a música comercial e lutou pelos direitos autorais. Ele defendia que o cinema deveria ser contra-hegemônico. 7 de fevereiro de 1972, Torquato afirmava aos seus leitores da Geléia Geral – coluna que posterior ao Plug – que o cinema não se resumia à produção.  Tinha de ter invenção, uma ação guiada pelo “coração selvagem” – que ele usa entre aspas, por provavelmente usar a expressão de Clarice Lispector. Nesse caminhar pelo cinema, Torquato iria expressar uma maior afinidade com os cineastas ligados ao grupo que ficou conhecido como Cinema Marginal.

O biógrafo Toninho Vaz, narra que essa ruptura com o Cinema Novo tinha nome e endereço. Torquato se aproximara de Ivan Cardoso e de Luís Otávio Pimentel, que segundo o poeta realizavam cinema de forma independente. O afastamento e a divergência com Glauber Rocha, manifestado numa carta, estavam ligados ao fato do Cinema Novo ter capitaneado a nova política cinematográfica ligada à Embrafilme. No fundo, Torquato não engolia bem essa história de se fazer filme com o dinheiro do governo.

Além dos sintomas evidentes, decorrentes do álcool, o poeta sempre teve temperamento difícil, com vários episódios de crises emocionais, consideradas pelos psicólogos como "surtos psicóticos". Por conta disso, foi internado oito vezes em hospitais psiquiátricos do Piauí e do Rio de Janeiro, incluindo o hospital de Engenho de Dentro, de Nise da Silveira. Tentou o suicídio por quatro vezes, e não foi por falta de aviso quando "Pra Dizer Adeus" de Edu Lobo, foi lançada e encarada como uma lírica de separação de uma casal. Ao final, na última tentativa, nem família e nem os antigos amigos conseguiram conviver com seus humores.

Toninho Vaz – que fez mais de setenta entrevistas com parentes, amigos e inimigos do letrista -  também desconstrói a imagem de Torquato como poeta tímido, reservado, introspectivo, melancólico. A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva. Resgata entrevistas antigas, uma delas com Nana Caymmi que comenta não sem uma dose de malícia: "Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso". Caetano Veloso, outros entrevistado para a biografia, foi categórico. "Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!"

A polêmica fez com que a viúva de Torquato, Ana Maria Duarte processasse o biógrafo impedindo que o projeto fosse adiante pela editora Record. Mantendo a aura do "maldito", a biografia desse maldito foi publicada pela Casa Amarela, braço editorial da saudosa revista "Caros Amigos".

No início dos anos 1970, já tinha brigado com as esquerdas e com o pessoal do Cinema Novo, já afastado dos colegas tropicalistas, chegou a queimar quase todos os originais inéditos. Passou a frequentar novos grupos, como o pessoal do underground carioca (da Zona Sul, é proprio dizer), o pessoal do cinema Super8, e os malditos da MPB, como Jards Macalé, João Bosco e Luis Melodia, estes em quem focou últimos trabalhos. 

Em seu último ano de vida -  já com 34 músicas lançadas -, e escreveu artigos para jornais marginais como Flor do Mal e Presença, e organizou, com Waly Salomão, a edição única da revista Navilouca, publicada postumamente em 1974. Logo após sua morte, um material inédito de poemas foi reunido por Waly e pela esposa de Torquato, Ana Araújo, no livro Os Últimos Dias de Paupéria, além disso mais de 100 música de sua autoria seriam lançadas por diversos artistas -  algumas prontas, outras só na letra. Uma centena. 

No dia específico em que morreu, chegou de uma festa organizada por alguns amigos, após longa conversa com sua ex-esposa, deprimido, trancou-se no banheiro, fechou a porta, vedou todas as frestas com lençóis, abriu o gás do chuveiro e, asfixiado, atravessou o espelho do banheiro, aos 28 anos de idade, Exatamente: no dia do seu aniversário.

Na ocasião da morte deixou uma espécie de carta testamento/último poema, chamado "Fico".

"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

 Nota: Thiago era o filho de dois anos de idade, à época.

 

LIMA BARRETO

 





Título: Lima Barreto

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

Filho da professora Amália Augusta Barreto e do tipógrafo da Imprensa Nacional João Henriques de Lima Barreto, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Nasceu numa sexta-feira 13. Mês de maio de 1881. A propósito, o mesmo ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, 7 anos antes da Lei Aurea. O bairro: Laranjeiras. A casa, na rua Ipiranga nº 18, não existe mais.

Aprendeu a ler em casa com a mãe, que mantinha um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa, no mesmo bairro das Laranjeiras. O menino Lima, assim como Machado de Assis, ficou orfão cedo. Com a morte da mãe, aos 7 anos, entrou numa escola pública, na rua do Rezende, passando pelo Liceu Popular Niteroiense - um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino da época, dirigido pelo educador inglês, Mr. William Cunditt. Os seus estudos eram, então, bancados pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho de batismo do escritor. Depois de prestar os exames de preparatórios no então Ginásio Nacional, nome que a República tentou colar no velho Colégio Pedro II, para se desfazer dos vultos do período Imperial, Lima Barreto ingressou na Escola Politécnica. O futuro parecia promissor. Dali, sairia engenheiro civil, de minas, industrial, mecânico ou agrônomo. Entretanto, estudou apenas até o terceiro ano. Não dava mais. Não havia maneira de fazê-lo aprovar numa disciplina de nome tão irônico quanto redundante, Mecânica Racional. Tinha sido reprovado diversas vezes - e isso, creiam-me, enche o saco de uma pessoa. 

Alguns outros fatores mais profundos faziam com que Lima Barreto não se concentrasse na Politécnica. O fato de ser o único aluno negro da turma, aliado ao baixo desempenho na Mecânica Racional, por dois anos seguidos, podem ter influenciado para o desânimo do rapaz. Mas, um episódio específico determinou um certo rumo que sua em sua vida iria tomar, a partir dali:  o pai enlouqueceu quando Lima Barreto tinha apenas 22 anos.

Assim, ele interrompeu os estudos, para encarregar-se da numerosa família, composta agora pelo pai e os irmãos mais novos. Para ganhar a vida, Lima Barreto trabalhou como professor particular e depois, com a abertura de vaga para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra, presta concurso e se classifica em segundo lugar, com uma diferença mínima de pontos para o primeiro colocado. Mesmo assim foi nomeado, começando a trabalhar no mesmo ano.

Nos primeiros anos como amanuense foi procedimentalmente humilde.  Não faltava, não chegada atrasado, e tratava a todos com deferência. As semelhanças biográficas do início de carreiras entre Machado e Lima, param por aqui. Sendo preterido mais de uma vez em promoções, foi ficando negligente e relapso. Nesse processo de transformação pessoal, virou um habitual nas rodas de café e de bares, frequentadas por Olavo Bilac e Emilio de Menezes. Foi provavelmente nestas rodas que descobriu os benefícios de uma boa Parati. 

O convívio dos cafés e botequins, que o romancista acabou frequentando dioturnamente, o tornaram conhecido, gerando contatos no meio jornalístico. Em 1905, Lima Barreto iniciou-se na vida literária com reportagens para o Correio da Manhã, preparando uma serie de textos sobre a derrubada do Morro do Castelo. Paralelamente, foi colaborando em jornais e revistas estudantis, como A Lanterna e A Quinzena Alegre, todos de curta duração. Mais tarde, em 1907, quando Mario Pederneiras fundou o Fon-Fon, chamou-o para a redação, mas ficou pouco tempo. Saiu para lançar com um grupo de amigos uma pequena revista, a Floreal, que apesar de quatro números apenas, mereceu do sempre meio mal-humorado José Verissimo, crítico exigente, uma surpreendentemente simpática acolhida. Inclusive, seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, começou a ser publicado na Floreal, em 1907, mas só veio aparecer em livro dois anos mais tarde, editado em Portugal. Seu biógrafo definitivo, Francisco de Assis Barbosa, chegou a entrevistar Antônio Noronha Santos, Manoel Ribeiro de Almeida, Mario Tibúrcio Gomes Carneiro, companheiros de Lima Barreto na Floreal, revelando-nos detalhes fundamentais de sua biografia.

Quando em 1909, finalmente, o romance foi editado em Portugal, Lima Barreto marcou sua presença no ambiente intelectual, para o bem e para o mal. O livro bancado com os seus limitados recursos próprios, seria venerado e odiado de maneira desproporcional. Por um lado, foi venerado pelos pares e por uma certa parcela da intelectualidade, mas o problema é que o ódio vinha de cima, principalmente da parte de Edmundo Bittencourt, o todo poderoso dono do jornal Correio da Manhã, que não gostou nada nada do tom de sátira que assemelhava o autoritário e fictício Ricardo Loberant, dono do jornal “O Globo”, com sua pessoa.   

O problema estaria resolvido se apenas as portas do Correio se fechassem. Caso acontecesse, poderia arrumar  emprego, por exemplo,  no jornal do desafeto do ex-chefe, certo?  Entretanto, Bittencourt pode ter intercedido para que outras portas se fechassem. E no fundo havia um outro problema. Lima foi além. Não se contentou apenas a atacar o ex-chefe. No rol de personagens caricatos, havia profissionais influentes e cheios de amigos, com amigos em outros jornais. Por exemplo, o escritor João do Rio era descrito como o  “efeminado” Raul Gusmão, uma “mistura de porco e símio, adiantado";  Pacheco Rabelo do jornal fictício, era Gil Vidal, redator-chefe do Correio da manhã; o advogado e futuro jurista Vicente Piragibe, filho de médico da academia imperial e neto de general do exército, era o Leoprace, de ascendência boa mas que não passava de um pobretão sem talento; o paranaense, da família de diplomatas e sacerdotes, Joâo Itiberê da Cunha era o personagem Floc, crítico literário que julgava originais nao pela qualidade, mas pelo sobrenome e ascendência do autor. Ou seja, mesmo que Ricardo Loberant, nem tivesse passado pelas páginas de Isaias Caminha, todos os outros ilustres desafetos influentes estavam ali retratados de forma caricata. Todos tratados como pessoas superficiais, toscas, antiéticas e interesseiras, desejosas de apenas obter benefícios próprios, aproveitando-se dos colegas.  E para piorar, eram facilmente identificáveis numa leitura rápida, à época.

O livro não trouxe nem sucesso, nem o mínimo suficiente para o sustento. Mas dois anos mais tarde publicou o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, nas páginas do Jornal do Commércio, mais uma vez, pagando do próprio bolso pelo espaço da publicação. A obra sairia publicada em livro apenas em 1915. O atraso pode ter sido causado por vários fatores, desde a falta de recursos econômicos, até as próprias bebedeiras que se tornavam cada vez mais constantes. Durante a gestão e revisão da obra, tornaram-se mais agudas as crises de alcoolismo e depressão do escritor.  Esmagado pela tragédia doméstica da infância, pelo peso dos cuidados com o pai enlouquecido, vivendo ao lado de seu quarto, oprimido pela angústia da responsabilidade no suporte financeiro da família, juntava-se a isso o peso do preconceito racial. A birita, a princípio, certamente foi um suporte na convivência alegre da boêmia, e ao mesmo tempo uma fuga dos problemas que o esperavam em casa. Entretanto, as alucinações decorrentes do excesso de álcool, que o levaram ao hospício, certamente não estavam nos planos.  

Independente da bebida, a saúde de Lima Barreto sempre foi frágil. Aos vinte e poucos anos tinha fraqueza generalizada em decorrência de um reumatismo de infância que iria acompanha-lo toda a vida.  Aos 29 anos contraíra pela segunda vez maleita, ou impaludismo, doença contraída por mosquitos, e que ataca os glóbulos vermelhos do sangue gerando febres terçãs fortíssimas. O abuso do álcool, certamente agravara esse quadro clínico de fraqueza. Como também agravaria a sua depressão e a crise de neurastenia, que o levou a ingressar pela primeira vez no Hospital Nacional de Alienados em 1914, local que tinha sido definido por ele como "frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais"

E veja bem, estamos no ano de 1914. Escravos tinham liberdade há menos de 26 anos. Mesmo para um escritor com relativa fama, a história pessoal parecia replicar o que as teorias raciais da época prognosticavam. A grosso modo, os defensores da intervenção clinica com reclusão nem sequer se esforçavam em frisar que não se escapava da origem racial, nem dos seus estigmas. As diversas teorias da degeneração social, afirmavam que indivíduos miscigenados carregavam o "vício" das duas raças que os formavam. Daí para se estabelecer uma relação direta entre raça, doença mental e alcoolismo, e que negros e mestiços estavam mais predispostos a ela, era plenamente consensual na teoria médica da época. Nesse sentido, considerar que indivíduos com essas características eram entendidos como intelectualmente inferiores, era uma conclusão nefasta que os eugenistas nem se esforçavam para justificá-la.

Nesse calvário de porres e não-ditos, o pingente Lima Barreto, aos trinta e um anos, já acumulava uma respeitável lista de problemas clínicos.  Com os sintomas da dependência alcoólica, passa a ter problemas cardíacos. Aos trinta e três anos, depressão e neurastenia. Aos trinta e cinco, anemia pronunciada. Aos trinta e sete, quebra a clavícula.  E nessa época tem o primeiro ataque da epilepsia -  que diga-se de passagem era tratada com choque e porrada. Considerado “inválido” para o serviço público, é aposentado, em dezembro de 1918. Em 1919, é internado pela segunda vez no Hospital Nacional de Alienados. A essa altura tinha cinco livros publicados:  Recordações do Escrivão Isaias Caminha, O Triste fim de Policarpo Quaresma, As aventuras do Dr. Bogoloff (publicado como folhetim), Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Sem dinheiro, sem conseguir lutar contra o vício, e fisicamente aparentando ter vinte anos mais, sua saúde se deteriorava rapidamente. Tido como louco e irascível por alguns, afastou-se de muitos, e muitos se afastaram dele.

Chovia no bairro de Todos os Santos, no dia de todos os santos. Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu supostamente de ataque cardíaco, no dia 1 de novembro de 1922, abraçado a uma revista. O velório na sala era interrompido pelo barulho da chuva e, de quando em quando, pelos gritos do pai, que, no quarto ao lado, morreria horas depois. Em volta do caixão de terceira, os irmãos e a gente modesta do subúrbio, que Lima conhecia dos botequins e das ruas enlameadas e tristes.

Ao contrário de Machado de Assis, teve um enterro muito simples acompanhado por gente humilde como ele, os amigos do subúrbio, mulambentos, cheirando a cachaça e com os pés descalços. Quis ser enterrado em Botafogo - que ele detestava e criticara a vida toda. Pouco mais de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, o piauiense Félix Pacheco, a essa altura já imortal da ABL, o diplomata Olegário e José Mariano - sendo que este pagou as despesas do enterro.

Morreu sem nenhuma repercussão nos jornais. Não deixou viúva. E ao contrário do que falam as más línguas sobre Machado de Assis, Lima Barreto nunca teve filhos. 

 


Os Riots não roem a roupa do rei


George Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.

 

- vinte merréis, um Jackson. pqp.  

 

O fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência policial, o preconceito, a hipocrisia…

 

Não sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos. Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados, humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo de cara…

 

- sim estou puto sim, foda-se.

 

Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.

 

Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto, e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de fantasmas e ausências  históricas faça com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o homem negro, já  que para o policial o mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico, o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime. Óbvio!

 

Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou, quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?

 

 - Óbvio é o cacete. Correto porra nenhuma!

 

Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça” ele se declarava pertencer. O menino João Pedro Mattos Pinto, morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é diferente!

 

- vdd!

 

Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil. Então, para que riots ao sul do Equador?  Ora bolas!

 

 - O problema é que o buraco é muito muito muito mais embaixo…

 

O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas - sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares, geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados, tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e tem de conviver com a ausência do Estado.

 

- Tudo separado… sei…

 

A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art. 3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de 5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística, por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai você vai vendo.

 

A eficácia desses números não se mede pela sua capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?  

 

Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo prazo, e não podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos dizem ser apenas de classe.

 

O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil, como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário do ato hipócrita.

 

O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

 

- Eu também gosto do Milton Santos…

 

Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por acaso estão mais negros e pardos que brancos,  e isso não deixa de conter uma certa ironia azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.

 

Nota: não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.

 

O qUiNzE



Cordulina viu pelo bafo do marido e pela fúria das apóstrofes, tão desacostumadas no seu natural sossegado, que ele tinha bebido demais. E interpelou-o:
— Mas Chico, pra que é que você toma quando vai no Quixadá? Toda a vez que vem de lá é nesse jeito!
— Besteira, mulher!... Tomei nada! Matei o bicho! A vontade que eu tinha era estar mesmo bebinho, pra me esquecer de tudo quanto é desgraça!...

Em O Quinze, de Rachel de Queirós.