O Importante é que nossa emoção sobreviva

Cautela

Se não te cuidares o corpo, cuida teu espirito torto, que teu corpo jaz perfeito
Se não te cuidares o peito cuida teu olho absurdo que teu peito tomba morto ante a tudo.
Se não te cuidares, cuidado, com armadilhas do ar, qualquer solto som pode dar tudo errrado.

Mordaça
Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar

Paulo Cesar Pinheiro

Nota. 14 - 15 - 16 de Julho

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro


Desconheço até agora o título do filme que assiti ontem. Estava anunciado como Antônio das Mortes. O folder dizia “Antonio das Mortes”. Nos créditos iniciais estava escrito “Antônio das Mortes”. O problema é que, baseado em sinopses que eu já lera, tenho a ligeira impressão de que assisti O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. O problema é que nunca assiti O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, e apenas li sinopses e análises. Para piorar a minha situação tinha um cara francês da Cahiers du Cinéma fazendo as apresentações. Cidadão novinho, que apesar de falar francês e inglês, tinha um vocabulário limitadíssimo, um desses tipos que falam um monte de línguas mas não sabem se expressar em nenhuma, cheio da impáfia dessa gente cabeça que transa vídeo, jurando de beicinho em riste que o nome do filme era simplesmente "Antônio das Mortes" . Portanto, continuo com a dúvida.

Desconfio que deva haver algum problema de direito autoral envolvido com o título do filme que assiti. Pois, como anunciado nos créditos iniciais, a cópia master do filme, no Brasil, perdera-se num incêncio. Restara então essa tal cópia, que fora restaurada e digitalizada na França com o nome de Antônio das Mortes. Enfim, quem passar por aqui e vir essa mensagem na garrafa, me esclareça a dúvida por favor. Já sei que Antônio das Mortes era o mesmo de Deus e o Diabo na Terra do Sol...

Antônio das Mortes é um miliciano, um matador profissional, interpretado por Maurício do Vale, que é contratado pelo delegado Mattos (Hugo Carvana) para matar o cangaceiro Coirama, que anda espalhando pela localidade de Jardim das Piranhas umas idéias... de justiça social, reforma agrária, distribuição de riqueza e um monte de outras idéias estranhas nessa mesma linha. Isso, evidentemente, assuta ao velho Horácio, que apesar de civil, ostenta o apodo de Coronel Horácio (Jofre Soares). Das Mortes tem o laconismo do Gary Cooper em High Noon, e a pontaria do Franco Nero em Django portanto é o cabra mais indicado para fazer o serviço de limpar a àrea.
A estória é simples. Das Mortes passa a mão na sua papo amarelo, calibre 44 e vai atrás de Cairama. Sangra Coirama num duelo épico onde todos os personagens assistem, inclusive Santa Bárbara. Porém em decorrência dos fatos se conscientiza que a luta de Coirama por justiça social era inglória, ainda que legítima. Por isso mesmo exige que Matos leve um recado ao Coronel. Exige que Coronel Horácio abra seus armazens e distribua comida aos pobres, pois como o próprio Antônio das Mortes diz a certa altura, Deus faz o Mundo e o Diabo o arame farpado.. Horácio se recusa, e contrata um outro matador chamado Mata-Vacas para dar cabo de Antônio das Mortes. Oton Bastos interpreta um professor de história que preocupa-se com uma história factual, episódica e memorialista. O professor, sempre manguaça, vive na birosca onde joga sinuca com Mattos, e está aparentemente conciliado com as injustiças locais, ou no mínimo alheio a elas.

O que torna esse filme sensacional, e aumenta a mítica sobre a tal genialidade de Glauber é o fato de que a história principal se desdobra em alegorias atemporais baseadas em narrativas folclóricas, cantos de cordel, e evocações de árias de óperas. Na maior parte das vezes não se sabe se estamos dentro da estória principal, dentro do sonho ou da divagação de algum personagem, bem no estilo de Rashomon de Kurosawa, ou Memento, ou até mesmo forçando um pouco a barra em algum dos filmes de David Lynch. As estórias se confundem e se embricam numa metalinguagem com muito de alegórico, pois, Coirama vê de perto os cutelos da morte mas não morre. Agoniza. Este somente vem a ser assassinado pelo bando de Mata-Vacas. O que aumenta ainda mais a ira de Antônio das Mortes e o sentimento de injustiça que paira no sertão. Para tanto, uma cena emblemática para mim é a do Professor recolhendo os estandartes em meio aos corpos dos jagunços que o bando de Coirama massacrara. Ou seja, incorporando sua luta e se aliando à de Antônio das Mortes. A própria cena final do duelo entre os capangas de Mata-Vacas, a mando do Coronel Horácio, contra Antônio das Mortes e seu agora aliado o Professor de história, é digno dos melhores filmes de Sergio Leone. Tudo é apoteótico, como numa ópera. É fogo pra todo o lado, sol, sertão, bala pipocando, a chapa quente, mas Antônio das Mortes mata a todos do bando adversário, mas não consegue matar ao Coronel. Sua amante Laura (no filme, a deslumbrantemente gótica Odete Lara) é beijada já sangrando pelo Professor numa cena que seria dramática se não fosse tão caricata – aliás como quase tudo no filme . Finalmente, o Coronel é assassinado por um homem negro que chega sobre um cavalo branco, portando uma lança. A alegoria a São Jorge, o Santo Guerreiro, é clara. E o Dragão da Maldade, nem preciso dizer.
Música do dia. Desafio: Abertura do Auto da Catingueira e . Elomar. Cantoria 1.

The Seventh Continent

Lembra da Rosana, uma cantora com cara de silicone que nos anos 80 cantava um troço mais ou menos assim... Como uma deusa você me mantém...? Aquilo era algum tema de novela, que ficava tocando insistentemente em qualquer rádio a qualquer hora do dia e da noite. Como diria o Assis Valente... Nem dá jeito de cantar, Dá vontade de chorar, E de morrer...

Pois é, Georg, funcionário de uma grande empresa, e sua mulher Anna, oftamologista, são um casal de classe média. Ambos têm uma vida confortável, vivem numa boa casa, possuem um carro relativamente novo, consomem produtos de qualidade, sonham com férias numa paradisíaca praia na Austrália e vivem uma vida rotineira. O despertador toca todos os dias às 6 da manhã, Georg se banha, Anna acorda a filhinha para a escola, no aquário os peixes vegetam, no café da manhã quase não falam, ou seja, tudo parece perfeitamente ordenado, eles parecem se conformar com a utilidade funcional do cotidiano onde a repetição de determinados rituais passam a preencher e dar sentido a uma espécie de vazio. Tudo parece perfeitamente ordenado até o dia que a filha da oftamologista mente na escola dizendo que está cega. Aos poucos percebe-se que o casal vive uma vida um tanto miserável, pois a monotonia os torna prisioneiros de uma alienação auto-destrutiva. Passam a surgir sinais de depressão, a indiferença se torna patológica. Georg, um cara competitivo, ascende na empresa passando por cima dos caras ao seu lado. Anna se desespera com o distanciamento da filha. Essa é em linhas gerais o enredo de The Seventh Continent, um filme que definitivamente me fez perder a paciência com Michael Haneke.

Haneke decidiu filmar uma estória baseda em fatos reais de uma família austríaca que comete suicídio. Sim, tal como em 71 Fragments of a Chronology of Chance ou em La Pianiste – que até é um filmezinho máomeno -, Haneke tem gosto pelo tabu. Até aí tudo bem, Stanley Kubrick também tinha. O problema é que há uma distância quilométrica entre Kubrick e Haneke. Kubrick transforma o incômodo do distúrbio numa forma de arte. Haneke transforma o trágico numa simples exaperação de imagens. Numa das últimas cenas antes do suicídio, juro por todos os exús e deuses, com a casa completamente destruída, a família encontra-se na frente da tv assitindo uma mulher cantando em alemão... Como uma deusa você me mantém...

Com isso concluo com duas coisas. Primeiro, mal comparando, você pode até gostar de Heineken, mas a partir do momento que você prova uma Chymay, já não dá mais pra assitir os filmes do Haneke. Segundo, é evidente que sou péssimo em trocadilhos!

Música do dia. Fez Bobagem. Assis Valente/Marcos Sacramento. CD Modernidade da Tradição.

Whisky



O filme Whisky, de Pablo Stoll, lança uma dúvida bem prosaica. Que diabos de relação há entre o nome do filme e a estória dos protagonistas Marta, Jacobo Koller e Herman Koller?

Jacobo tem uma pequena confecção de meias no centro de Montevidéu. É um homem solitário, na faixa etária dos 50 anos, que cuidou da mãe doente até o falecimento desta. Na fábrica trabalham apenas 3 mulheres. Dentre elas Marta (interpretada pela ótima Mirella Pascual), a mais velha, é uma espécie de gerente das outras moças. A relação entre Jacobo e Marta é, antes que fria e distante, uma relação de respeito e cordialidade pautada nas pouquíssimas palavras que trocam no decorrer dos dias. Quando Jacobo chega à fabrica, Marta, pontualmente o espera diariamente. Assim como Jacobo, Marta também é uma mulher solitária que afugenta sua condição humana de isolamento numa sala de cinema após a jornada de trabalho. Na manhã seguinte, a cena dela esperando que o patrão chegue em frente a porta da fábrica se repete religiosamente.

Essa rotina quase mecânica muda na ocasião do Matzeiva da mãe de Jacobo pois seu irmão Herman, que vive no Brasil e também tem uma fábrica de meias, chegará para a celebração póstuma. Jacobo então propõe a Marta que ela fique em sua casa nos dias de estada do irmão, simulando que estão casados.

Nesse momento percebemos que o filme se trata de uma ótima comédia de humor seco e cortante, pois no momento da proposta o telefone toca. Jacobo vai atender. Retorna dizendo se tratar de um engano e prosseguindo a coversa. A presença providencial do telefone tocando em momentos centrais da trama se repete comicamente umas duas ou três vezes. Como por exemplo quando Jacobo com certa torpeza lhe dá uma aliança de “casados”. O anel fica grande e cai no chão. Ela imediatamente se abaixa para procurá-lo embaixo da mesa. Jacobo fica estático. Ela encontra o anel e pergunta se a aliança era de sua mãe. Jacobo responde desconcertado que sim. Providencialmente o telefone toca. Jacobo retorna e diz equivocado. E Marta responde como em outras ocasiões... Sí, a veces pasa.

Aos trinta minutos de filme, vem finalmente a resposta. Para que a presença de Marta não levante as suspeitas do irmão, Jacobo providencia que Marta passe uns dias em sua casa e a leva para que tirem uma foto como casados. Nesse momento o nome do filme faz sentido. No estúdio fotográfico eles estão sobre um fundo azul, bem vestidos e constrangidos. O fotógrafo diz, A ver una sonrisita... digan whiskyyyy.... Eles se abraçam de maneira torpe e repetem a palavra whiskyyy mostrando os dentes, simulando um sorriso, sem muito empenho.

Tudo pronto. So falta Herman chegar.

A presença de Herman torna tudo muito mais constrangedor. Os dois irmãos não se viam há anos, não tinham maiores intimidades. Herman é um tipo expansivo e auto-centrado, sua efusividade contrasta com a indiferença de Jacobo a tudo e a todos tornando o filme uma comédia com detalhes brilhantes. Como quando os irmãos, que não se viam há anos, se presenteiam meias. Ou quando vão assistir um jogo de futebol da segunda divisão, do time de Jacobo. Ou quando decidem ir passar uns dias num hotel no balneário de Piriápolis, um local onde os irmãos iam de criança e que se encontra decadente e vazio.

O roteiro do filme, assinado pelo diretor, por Juan Pablo Rebella e Gonzalo Delgado Galiana, tem diálogos econômicos e situações de inisitada originalidade. Eu diria que este é um roteiro muito bem amarrado. A frieza e a parsimônia com que os personagens são apresentados permite a revelação gradual de detalhes de suas personalidades através de pequenos gestos incorporando-os a um sentido mais universal de melancolia e solidão. Além disso é evidente um certo sabor das comédias do romeno Cristi Puiu e do finlandês Aki Kaurismäki em algumas situações do filme.

Uma curiosidade trágica: no dia 7 de julho fará 3 anos que o roteirista Juan Pablo Rebella se matou. Ao lado de seu corpo, em frente ao computador, foi encontrado um revólver calibre 32 e uma garrafa de whisky pela metade.


Pina Bausch

O mundo perde uma das grandes coreógrafas da dança moderna. Pina Bausch morreu ontem, cinco dias após ser diagnosticada com câncer. Nunca tive a oportunidade de assitir Bausch dançando, mas já assisti vários vídeos de suas performaces e coreografias. Muito antes de assistir ao filme de Almodovar Hable con Ella - onde Bausch faz uma breve aparição exibindo um fragmento do Café Müller - o que mais me atraía em seus movimentos era a inovação da linguagem corporal. Bausch (além de van Manen, Balanchine, Cunninghan e toda essa turma) recriou a expressão do corpo contemporâneo, desenhando movimentos repetitivos e fragmentados, quebradiços, e ao mesmo tempo sugerindo uma proximidade entre a dançarina e o público, como se convidasse-nos a um diálogo quase sussurrado. Havia muito de teatro em suas coreografias. A expressão corporal e a expressão facial eram elementos importantes em suas composições que sugeriam algo visual, algo narrativo e nem sempre harmônico ou pacificador.

Toda essa geração de Bausch e Merci Cunninghan - que tive a feliz oportunidade de assistir ao vivo meses atrás, ele já com 90 anos e numa cadeira de rodas - está nos deixando....