Título: Stella do Patrocinio
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Sabe-se que ela gostava de Coca-cola, óculos escuros, biscoito de sabor chocolate, blusas de cor azul, caixas de fósforo Olho, leite condensado e maços de cigarro. Pelas fichas do Hospital Psiquiátrico, sabe-se que o pai era sergipano e chamava-se Manoel do Patrocínio e a mãe Zilda Francisca Xavier, e que nasceu a 9 de janeiro de 1941 na cidade do Rio de Janeiro. Pouco se sabe dos primeiros 21 anos de vida da cidadã Stella do Patrocínio, e o que se sabe de posterior é digno um filme com tantos cortes, que torna a história dessa poeta, uma das mais angustiantes sobre biografias da literatura brasileira. Certeza, poucas: mulher, negra, postura altiva, pobre, estatura alta e esquizofrênica, num Rio de Janeiro de uma de década de 1960.
Sabe-se
que sorria muito pouco e que sua escolaridade ia até o segundo grau. Trabalhou
como empregada doméstica no bairro da Urca, na mesma residência, aliás, em que
sua mãe enlouquecera. A cabeça deu uma pifada no ano de 1962. E o episódio em
que Stella foi presa em agosto deste ano, na quarta delegacia de polícia e
posteriormente transferia para o Hospital Psiquiátrico Pedro II - o mesmo, por
sinal, em que a mãe tinha sido internada anos antes - nunca foi esclarecido. Segundo
ela deixou registrado em entrevista, quando ia pegar o ônibus no Bairro de
Botafogo, onde morava, para a Central do Brasil, foi levada pela polícia.
Depois de injeção, seção de porrada e eletrochoque, foi admitida num Hospital Psiquiátrico
aos 21 anos de idade.
Diagnosticada
com um quadro de “personalidade psicótica mais esquizofrenia hebefrênica
evoluindo sob reações psicóticas”, ficou 4 anos no Centro Pedro II. E foi transferida
posteriormente, a 3 de
março de 1966, para uma colônia de alienados que tinha por acaso nome em
homenagem a um dos primeiros médicos negros do Brasil, fundador da psiquiatria brasileira.
Quando Colônia Juliano Moreira foi criada, era imensa. Para se ter uma idéia, aquele
depósito de esquecidos tinha o tamanho do bairro de Copacabana inteiro. O Hospital
que ficava em Jacarepaguá era tão grande que a instituição chegou a internar
7.700 almas, encerradas em sabe-se lá que condições, entre suas três unidades.
Numa destas unidades, Stella se livrou deste purgatório com morte em 1992.
Dos trinta
anos em que passou em hospitais psiquiátricos, aliás os mesmos por que passaram
o artista Arthur Bispo do Rosário, a mulher Stella passou a ficar invisível para
a sociedade. O que ficou dela foram laudos, questionários preenchidos em letra
de fôrma por enfermeiras e médicos, fichas, prontuários e documentos institucionais.
O único registro intelectual, foram gravações de seus monólogos em fita cassete
e que, anos depois, foram transcritas, organizadas e publicadas em 2001 pela
escritora Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue
Editorial). O livro chegou a ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti daquele
ano.
A tortuosa e polêmica história deste livro parece ter começado no ano de 1986, quando artista plástica e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Nelly Gutmacher foi convidada pela psicóloga Denise Correia a montar um ateliê na Colônia Juliano Moreira. Gutmacher e a também artista plástica Carla Guagliardi, atuaram na Colônia entre 1986 e 1988, na ala feminina do Núcleo Teixeira Brandão, onde usaram a arte como forma de desenvolver a capacidade de expressão das pacientes. Na verdade, um braço de continuidade do trabalho iniciado há 30 anos, por Nise da Silveira, na casa das Palmeiras com sua pesquisa sobre imagens do inconsciente.
“Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha”
A
experiência artística no manicômio e parte dessas falas poéticas gravadas, culminaram, em
1988, na exposição “Ares subterrâneos” no Paço Imperial, da Praça XV, que
reunia a produção artística dos pacientes. Este trabalho arqueológico, chegou
até à filósofa e psicóloga Viviane Mosé, que percebeu ali densidade suficiente
para editar um livro de poesia. O livro, finalista do Prêmio Jabuti, seria reeditado
em 2009. Ainda no ano de 2003, um o espetáculo musical Entrevista com
Stela do Patrocínio, de Lincoln Antonio e Ney Mesquita, foi montado. E para
o cinema em 2008 com o filme Stela do Patrocínio: a mulher que falava
coisas, de Márcio de Andrade.
Ler Stella
do Patrocínio, nesse livro editado em 2001, pode nos fazer pensar, sem nos dar conta do paradoxo, que estamos
lendo Stella do Patrocínio. Stella do Patrocínio: poeta negra, presa num
hospício, de escrita truncada numa cognição quebrada e imagens inesperadas. A
poeta que repete travamentos rítmicos, deslocamentos rápidos, como se fosse uma
fala para si para consigo mesma, cheia de delírios e alucinações. Entretanto, essa Stella do
Patrocínio nunca escreveu seu livro lançado postumamente. O que lemos é a
transcrição de um conjunto de declarações, baseado em entrevistas e conversas gravadas,
muitas vezes induzidas por perguntas. Atribuir esse dado a uma pessoa que ficou
esquizofrênica, antes de se tornar poeta e participar modus operandi do
mercado, pode parecer irrelevante. Mas não é isso que diz Anna Carolina
Vicentini Zacharias, em sua fundamental dissertação de mestrado
intitulada Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia
brasileira. Para a pesquisadora, que num incansável trabalho de pesquisa, no
qual revirou as gravações que originaram o livro, e descobriu sobrinhos e
parentes ainda vivos da poeta, o livro tem não apenas esses problemas conceituais, e outros.
Sua organização,
corte, versificação e distribuição endossado por uma editora como a Azougue,
ultrapassava o trabalho editorial. Criava uma Stella do Patrocínio poeta
brasileira, algo que a cidadã Stella do Patrocínio nunca teve a chance sequer
de se propor. Criava uma espécie de obra remixada, baseada em conversas, não em
discursos espontâneos.
Um quadro
que sem dúvida nos remete apenas opacamente a Arthur Bispo do Rosário. Já que Arthur
Bispo ainda estava vivo quando sua obra se tornou parte especulada no mercado
da arte. O artista ainda pode interagir com essa surreal tentativa de apropriação
da arte, pelo mercado. Tampouco, podemos
comprar o caso de Stella com o de Lima Barreto ou mesmo Maura Lopes Cançado,
ambos com histórico de internamentos psiquiátricos, e que publicaram livros que
por escolha própria, e de alguma maneira, cada um a seu modo, participou do
jogo literário.
Resumidamente,
Stella Patrocínio criou uma obra poética que se insere de maneira angustiante
no corpo documental da poesia moderna brasileira. Entretanto, jamais
foi transcrita, jamais foi escutada a não ser em prontuários e intervenções violentas. Jamais
escreveu um só poema, mesmo fazendo sem parar poesia na oralidade do cotidiano.
Sabe-se que gostava de óculos escuros, Coca-cola, caixas de fósforo Olho, blusas de cor azul e maços de cigarro. Mas talvez pelo abuso de leite condensado, da Coca-cola, e dos biscoitos de sabor chocolate, as extremidades do corpo foram colapsando por falta de circulação. Stella foi internada em 1992, no Hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá, com um quadro de hiperglicemia grave. A diabetes levou à amputação de sua perna. De volta à unidade hospitalar psiquiátrica, conviveu com uma infecção generalizada devido a complicações da cirurgia. Parou de se alimentar, não queria mais conversar e entrou em um processo depressão. Morreu pouco tempo depois neste mesmo ano.
Não se pode dizer quase nada de Stella do Patrocínio, nem sequer que algum dia foi ou quis ser uma poeta marginal. Entretanto, através dos fragmentos de sua biografia e do paradoxo de sua poética reunida algures, seu exemplo contribui
com a história da luta antimanicomial, cria tranças com os movimentos negros e feministas, e contra a violência do Estado, num país estruturalmente racista, que esquece seus
cidadãos. Quando se lembra, os aprisiona em jaulas, senzalas, camburões e manicômios por crime, rebeldia ou loucura - ou às vezes, por muito menos.