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STELLA DO PATROCINIO





Título: Stella do Patrocinio

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura
Data: Fevereiro de 2022

Sabe-se que ela gostava de Coca-cola, óculos escuros, biscoito de sabor chocolate, blusas de cor azul, caixas de fósforo Olho, leite condensado e maços de cigarro. Pelas fichas do Hospital Psiquiátrico, sabe-se que o pai era sergipano e chamava-se Manoel do Patrocínio e a mãe Zilda Francisca Xavier, e que nasceu a 9 de janeiro de 1941 na cidade do Rio de Janeiro. Pouco se sabe dos primeiros 21 anos de vida da cidadã Stella do Patrocínio, e o que se sabe de posterior é digno um filme com tantos cortes, que torna a história dessa poeta, uma das mais angustiantes sobre biografias da literatura brasileira. Certeza, poucas: mulher, negra, postura altiva, pobre, estatura alta e esquizofrênica, num Rio de Janeiro de uma de década de 1960.

Sabe-se que sorria muito pouco e que sua escolaridade ia até o segundo grau. Trabalhou como empregada doméstica no bairro da Urca, na mesma residência, aliás, em que sua mãe enlouquecera. A cabeça deu uma pifada no ano de 1962. E o episódio em que Stella foi presa em agosto deste ano, na quarta delegacia de polícia e posteriormente transferia para o Hospital Psiquiátrico Pedro II - o mesmo, por sinal, em que a mãe tinha sido internada anos antes - nunca foi esclarecido. Segundo ela deixou registrado em entrevista, quando ia pegar o ônibus no Bairro de Botafogo, onde morava, para a Central do Brasil, foi levada pela polícia. Depois de injeção, seção de porrada e eletrochoque, foi admitida num Hospital Psiquiátrico aos 21 anos de idade.

Diagnosticada com um quadro de “personalidade psicótica mais esquizofrenia hebefrênica evoluindo sob reações psicóticas”, ficou 4 anos no Centro Pedro II. E foi transferida  posteriormente, a 3 de março de 1966, para uma colônia de alienados que tinha por acaso nome em homenagem a um dos primeiros médicos negros do Brasil, fundador da psiquiatria brasileira. Quando Colônia Juliano Moreira foi criada, era imensa. Para se ter uma idéia, aquele depósito de esquecidos tinha o tamanho do bairro de Copacabana inteiro. O Hospital que ficava em Jacarepaguá era tão grande que a instituição chegou a internar 7.700 almas, encerradas em sabe-se lá que condições, entre suas três unidades. Numa destas unidades, Stella se livrou deste purgatório com morte em 1992.

Dos trinta anos em que passou em hospitais psiquiátricos, aliás os mesmos por que passaram o artista Arthur Bispo do Rosário, a mulher Stella passou a ficar invisível para a sociedade. O que ficou dela foram laudos, questionários preenchidos em letra de fôrma por enfermeiras e médicos, fichas, prontuários e documentos institucionais. O único registro intelectual, foram gravações de seus monólogos em fita cassete e que, anos depois, foram transcritas, organizadas e publicadas em 2001 pela escritora Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue Editorial). O livro chegou a ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti daquele ano.

A tortuosa e polêmica história deste livro parece ter começado no ano de 1986, quando artista plástica e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Nelly Gutmacher foi convidada pela psicóloga Denise Correia a montar um ateliê na Colônia Juliano Moreira. Gutmacher e a também artista plástica Carla Guagliardi, atuaram na Colônia entre 1986 e 1988, na ala feminina do Núcleo Teixeira Brandão, onde usaram a arte como forma de desenvolver a capacidade de expressão das pacientes. Na verdade, um braço de  continuidade do trabalho iniciado há 30 anos, por Nise da Silveira, na casa das Palmeiras com sua pesquisa sobre imagens do inconsciente.


A essa altura, com 45 anos, Stella, mulher negra, esquizofênica e abandonada, viva numa condição precária de ser humano. Já não tinha nenhum dente na boca, apresentava um quadro de diabetes avançado, e não gostava de desenhar, apesar de apresentar uma eloquência verbal muito acima do normal. Sua sofisticação conversacional, surpreendia a todos os que pretenderam dar um passado àquela mulher. O negócio dela era falar. Falava sozinha. No meio de seus monólogos soltava, de repente, considerações existenciais sobre sua reclusão e traçava um quadro sombrio, muitas vezes escatológico, sobre o ser humano: 
“Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha”

A experiência artística no manicômio e parte dessas falas poéticas gravadas, culminaram, em 1988, na exposição “Ares subterrâneos” no Paço Imperial, da Praça XV, que reunia a produção artística dos pacientes. Este trabalho arqueológico, chegou até à filósofa e psicóloga Viviane Mosé, que percebeu ali densidade suficiente para editar um livro de poesia. O livro, finalista do Prêmio Jabuti, seria reeditado em 2009. Ainda no ano de 2003, um o espetáculo musical Entrevista com Stela do Patrocínio, de Lincoln Antonio e Ney Mesquita, foi montado. E para o cinema em 2008 com o filme Stela do Patrocínio: a mulher que falava coisas, de Márcio de Andrade.

Ler Stella do Patrocínio, nesse livro editado em 2001, pode nos fazer pensar, sem nos dar conta do paradoxo, que estamos lendo Stella do Patrocínio. Stella do Patrocínio: poeta negra, presa num hospício, de escrita truncada numa cognição quebrada e imagens inesperadas. A poeta que repete travamentos rítmicos, deslocamentos rápidos, como se fosse uma fala para si para consigo mesma, cheia de delírios e alucinações. Entretanto, essa Stella do Patrocínio nunca escreveu seu livro lançado postumamente. O que lemos é a transcrição de um conjunto de declarações, baseado em entrevistas e conversas gravadas, muitas vezes induzidas por perguntas. Atribuir esse dado a uma pessoa que ficou esquizofrênica, antes de se tornar poeta e participar modus operandi do mercado, pode parecer irrelevante. Mas não é isso que diz Anna Carolina Vicentini Zacharias, em sua fundamental dissertação de mestrado intitulada Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira. Para a pesquisadora, que num incansável trabalho de pesquisa, no qual revirou as gravações que originaram o livro, e descobriu sobrinhos e parentes ainda vivos da poeta, o livro tem não apenas  esses problemas conceituais, e outros.

Sua organização, corte, versificação e distribuição endossado por uma editora como a Azougue, ultrapassava o trabalho editorial. Criava uma Stella do Patrocínio poeta brasileira, algo que a cidadã Stella do Patrocínio nunca teve a chance sequer de se propor. Criava uma espécie de obra remixada, baseada em conversas, não em discursos espontâneos. 

Um quadro que sem dúvida nos remete apenas opacamente a Arthur Bispo do Rosário. Já que Arthur Bispo ainda estava vivo quando sua obra se tornou parte especulada no mercado da arte. O artista ainda pode interagir com essa surreal tentativa de apropriação da arte, pelo mercado.  Tampouco, podemos comprar o caso de Stella com o de Lima Barreto ou mesmo Maura Lopes Cançado, ambos com histórico de internamentos psiquiátricos, e que publicaram livros que por escolha própria, e de alguma maneira, cada um a seu modo, participou do jogo literário.

Resumidamente, Stella Patrocínio criou uma obra poética que se insere de maneira angustiante no corpo documental da poesia moderna brasileira. Entretanto,  jamais foi transcrita, jamais foi escutada a não ser em prontuários e intervenções violentas. Jamais escreveu um só poema, mesmo fazendo sem parar poesia na oralidade do cotidiano.

Sabe-se que gostava de óculos escuros, Coca-cola,  caixas de fósforo Olho,  blusas de cor azul e maços de cigarro. Mas talvez pelo abuso de leite condensado, da Coca-cola, e dos biscoitos de sabor chocolate, as extremidades do corpo foram colapsando por falta de circulação. Stella foi internada em 1992, no Hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá, com um quadro de hiperglicemia grave.  A diabetes levou à amputação de sua perna. De volta à unidade hospitalar psiquiátrica, conviveu com uma infecção generalizada devido a complicações da cirurgia. Parou de se alimentar, não queria mais conversar e entrou em um processo depressão. Morreu pouco tempo depois neste mesmo ano.

Não se pode dizer quase nada de Stella do Patrocínio, nem sequer que algum dia foi ou quis ser uma poeta marginal. Entretanto, através dos fragmentos de sua biografia e do paradoxo de sua poética reunida algures, seu exemplo contribui com a história da luta antimanicomial, cria tranças com os movimentos negros e feministas, e contra a violência do Estado, num país estruturalmente racista, que esquece seus cidadãos. Quando se lembra, os aprisiona em jaulas, senzalas, camburões  e manicômios por crime, rebeldia ou loucura - ou às vezes, por muito menos.

BOCAGE

 




Título Bocage
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765. Suas muitas versões biográficas estão cercadas de prisões, deserções e um certo mistério quanto a autoria de muitas obras a ele atribuídas. Mas são unanimes e dizer que que foi possivelmente o maior representante do arcaísmo lusitano.

Antes de continuarmos, uma advertência:  Por ser uma biografia não-autorizada de l'Hedois du Bocage, teremos, ao longo dessa biografia, muitas palavras de baixo calão. Portanto, se o leitor quiser interromper aqui a leitura, agradecemos a intenção recebida até aqui…

Nos primeiros anos, sabe-se que perdeu a mãe muito cedo e que o pai, um juiz de fora, esteve preso por longos anos, por, digamos assim, desviar algo de herbário do erário público – ainda que, digam as más línguas, que andava com gente amiga dos inimigos do Marques de Pombal, e como diz aquele velho adágio luso “Diz-me com quem andas e eu te direi que és”, não se sabe exatamente se foi preso por isso ou por aquilo. O fato é que Manuel Maria era criança quando o pai foi para o xilindró. Na linha ancestral, nessa que vem antes da escumalha dos parentes diretos, sabe-se que era neto de almirante. Por parte de mãe, tinha uma fauna hereditária artística respeitável entranhada nas raízes. A família da mãe vinha dos lados da França. Sua mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Marie Anne Le Page du Bocage, tradutora do Paraíso de Milton, imitadora da Morte de Abel, de Gessner, e autora da tragédia As Amazonas e do poema épico em dez cantos A Columbiada, que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o primeiro premio da academia de Rouen. Bocage ainda tinha um nobre e uma freira como padrinhos. Com esse cabedal, o jovem ingressou no exército em 1781 permanecendo por dois anos. Logo seguindo para Lisboa, onde foi admitido na Escola da Marinha Real, da qual desertou antes do final do curso. Mas essa coisa de ter ligações com a França, em fins do século XVIII, se me permitem a licença poética, sempre pode dar merda.

Ainda assim, consta que foi nomeado Guarda-Marinha por decreto de D. Maria I, A Louca, embarcando em 1786 para India com uma significante passagens pelo Rio de Janeiro. Com 21 anos, sua fama de fazedor de versos e poeta, já corria pela boemia lisboeta.

No Brasil, consta no "Dicionário de Curiosidades do Rio de Janeiro" de A. Campos Da Costa e Silva, que viveu na atual Rua Teófilo Otoni, no centro da cidade, e que gostou muito.  "Gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objetivos. Sendo, porém o vice-rei avesso a elogios, e admoestado com algumas rimas de baixo calão, que originaram a famosa frase: ‘quem tem cu tem medo, e eu também posso errar’. " Sem titubear, o Vice-rei obrigou-o a prosseguir viagem para as Índias. E se me permitem a licença poética, este poeta que dizia ser “capaz de foder Lisboa inteira!”, acatou a ordem do vice-rei e seguiu viagem com seu rabo entre as pernas. Ou refaço a frase: seguiu viagem com seus “conos e cus feitos num trapo”

Após essa tentativa frustrada de viver nos trópicos, rumou para India com passagens por Moçambique, Damão e Macau. E logo depois, frente as inúmeras tentativas de deserção, foi preso pela inquisição, que apesar de não mais assassinar, a altura dos anos de 1780, ainda era temida como braço politico do terror.

Pela inquisição seria preso duas vezes e pela polícia de Lisboa outras tantas, mas dizem que foi justamente no período de cárcere que Bocage produziu a maioria de seus textos, inclusive os textos sérios como as traduções e comentários de manuscritos em latim e sua primeira edição de rimas.

Nos calabouços da Inquisição, provavelmente, em nome de Deus, comeu o pão que o diabo amassou, pois na década de 1790, sua produção foi imensa.

Elegia que o mais ingénuo e verdadeiro sentimento consagra à deplorável morte do ill.mo e ex.mo sr. D. José Tomás de Meneses, etc.,1790; Rimas de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, tomo I, 1791; Eufémia ou o triunfo da religião: drama de Mr. de Arnaud, traduzido em versos portugueses, Lisboa, 1793; Elogio poético à admirável intrepidez, com que em domingo 24 de agosto de 1794 subiu o capitão Lunardi no balão aerostático, Lisboa, 1794; As chinelas de Abu-Casem, conto árabe de 1797; dentre outros.

Ainda nesta década de 1790, foi convidado a fazer parte da Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudónimo Elmano Sadino, com o qual já vinha escrevendo desde 1791, por exemplo,  Qeixumes do pastor Elmano contra a falsidade da pastora Urselina. Entretanto, o fescenino e boemio foi acumulando desafetos como todo o bom desbocado, passando a escrever ferozes sátiras contra os próprios confrades. Ou seja, não chegou a esquentar os couros das cadeiras na Nova Arcádia, sendo logo expulso.

Acredita-se que um dos seus principais rivais intelectuais na “Academia de Belas Artes”, Belchior Curvo Semedo, articulado com os “moscas”, polícia política regia que prezava pelo mantenimento do regime em plena turbulência dos ecos da Revolução francesa, denunciou alguns de seus poemas licenciosos e traduções que circulavam, inclusive no Brasil. Como tradutor dos Iluministas, não seria difícil atribuir-lhe outras culpas num tempo de paranóia restauradora e anti-revolucionária, afinal a denúncia contra o despotismo, o fanatismo religioso, a hipocrisia do clero, a moral sexual, eram temas recorrentes e correlatos aos Iluministas. No fundo isso é inveja, só pode ser.

E diga-se de passagem, Lisboa era dominada por Pina Manique, intendente de polícia e homem de confiança do temido Marquês de Pombal, o mesmo que em 1797 decretara a prisão de Bocage por ser “desordenado nos costumes”, Manuel Du Bocage já era uma figura marcada e conhecida por suas simpatias com as idéias do Iluminismo e figuras como Voltaire, Rousseau, La Mettrie, Diderot, d’ Alembert.

De 1799 até 1801 Bocage trabalhou com o Frei José Mariano da Conceição Veloso, um religioso brasileiro bem conceituado entre a corte e a igreja, que lhe proporcionou ganhar algum dinheiro com muito trabalho e troca de redução de suas penas. Deste período são os panfletos:

Sabe-se também que ao longo da vida foi tradutor com várias versões portuguesas de textos clássicos latinos, entre os quais se contam autores como Virgílio e Ovídio, caracterizadas pelo rigor e pela originalidade, atribuídas a Bocage. O mesmo rigor crítico ser também aplicados às suas traduções da língua francesa de escritores de vertente “Liberal”, como Voltaire, La Fontaine, Florian, Lacroix, d’Arnaud, Delille e Castel. De Le Sage, por exemplo, traduziu do francês para o português da picaresca História de Gil Braz de Santilhana, 1798. Bocage a traduziu até à página 116 do tomo II, a partir daí passou a ser feita por Luís Caetano de Campos, pois Bocage brigou com o editor e não quis continuar.

Em 1805 descobriu uma doença cardíaca com a qual iria sucumbir em cinco anos. Ainda nesse ano publicou Os improvisos e os Novos improvisos, escritos já durante a enfermidade. Estes últimos cinco anos, que precederam a sua morte, foram dolorosos. Pobre e doente, só não se viu completamente desassistido, graças ao amigo, o dono do café das Parras, no Rossio, José Pedro da Silva. Este café por muitos anos teve um lugar reservado para Bocage e seus amigos do Agulheiro dos sábios. Na sua doença, Pedro das Luminárias, como era conhecido o amigo taberneiro, o auxiliou com doações, dinheiro e ajuda na venda de seus livros, chegando a pagar as despesas do funeral.

O poeta, que ao longo da História, frequentou mais anedotário que lhe é atribuído, que à sua obra, é hoje um mito.  O mito e o anedotário muito se deve aos indispensáveis editores pilantras que, na primeira metade do século XX, sem escrúpulos, foram perpetuando esta fraude, através de edições com poemas e piadas de baixo calão, em sucessivas e de inúmeras tiragens, indo ao encontro da procura assinalável de um público que sempre esteve atrás de uma piada do Bocage. Afinal, junto à dos papagaios, as piada do Bocage, sempre foram as melhores.

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage morreu em 21 de Dezembro de 1805, em Lisboa. Vítima de aneurisma da artéria cervical interior do lado esquerdo, aos 40 anos.

 

DYONELIO MACHADO

 



Título: Dyonélio Machado

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Junho de 2021

 

Dyonélio Tubino Machado nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Quirai, fronteira com o Uruguai, a 21 de Agosto de 1895. Filho de Sylvio Rodrigues Machado e da costureira Elvira Tubino Machado. Ainda criança, teve a vida marcada por uma tragédia. O pai, que era despachante aduaneiro na fronteira, foi assassinado quando ele era ainda um menino. Orfão de pai aos sete anos, o menino tinha uma família, agora, arruinada, constituída apenas pela mãe e pelo irmão mais novo Severino. 

Dyonélio nasce durante os anos da instauração da República, entre 1893 e 1895, travou-se cruenta luta entre as facções oligárquicas pelo comando do Estado, à qual se deu o nome de Revolução Federalista. Os republicanos – chimangos – estavam agrupados no Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e os liberais –maragatos -, no Partido Federalista.

Anos mais tarde, Dyonélio explicaria o contexto da morte do pai. Em cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995, Dyonélio disse: “Quaraí, é uma cidade de fronteira, com um movimento grande de importação e exportação. Toda a produção de lá tinha vazão pro Uruguai, pois para transportar charque pro Nordeste, passava-se dentro do Uruguai, o que dava margem a mil e uma safadezas.”

Aos oito anos, ele já vendia bilhetes de loteria para ajudar no sustento da casa. E menos de um ano depois do assassinato do pai, outro fato marcante ocorre. Um dia, na rua, encontrou o assassino do pai. O homem queria comprar um bilhete. Esse encontro é narrado pelo próprio escritor: “Não queiram passar pelo momento que passei: negociar com quem me fizera órfão era renegar uma adoração que nada abalaria. Mas trocar por dinheiro os poucos bilhetes de loteria que eu carregava, era obter meio quilo de carne. Cedi. Nossa transação se fez sem palavras. Sabia também o que me esperava em casa: era minha mãe chorando”.

A falta de recursos econômicos, não o impediu de estudar. Matriculou-se e ao irmão menor na recém-aberta Escola de Aurélio Porto. Para pagar a escola para os dois, Dyonélio dava aulas para os meninos das classes mais atrasadas. Com 12 anos, independente e solitário, começou a trabalhar como servente no semanário O Quaraí, o que lhe permitiu conhecer os intelectuais locais. Foi também balconista na livraria de um parente, João Antônio Dias. Não se sabe exatamente quando se tornou Comunista, mas por volta de 1911, aos 15 anos, funda em Quaraí o jornal O Martelo, nome sugestivo e que já demonstrava o seu interesse pelo marxismo.

Aos vinte anos já colaborava com os jornais Gazeta do Alegrete, Correio do Povo, Diário de Notícias e o Diário Carioca, vindo a se casar em 1921, aos 26 anos, com a professora de piano Adalgisa Martins. Três anos mais tarde entra para a Faculdade de Medicina, e ainda durante os estudos publicaria seu primeiro livro, Um Pobre Homem. No início dos anos 1930, o já formado, o Dr. Dyonélio continua com seus hábitos antigos dos chás e chimarrão.

Não gostava de médicos nem de remédios. Quando adoecia só tomava Melhoral, um analgésico e antipirético. E talvez por isso especializa-se em Psiquiatria, rumando para o Rio de Janeiro. Nesse momento iniciava-se um período político e econômico conturbado, na capital e no Brasil. Getúlio Vargas se torna o presidente e permaneceria no poder nos próximos 15 anos.

Durante o período de estudos acadêmicos, escreve em 1933, Uma definição biológica do crime, Um ensaio, parte da tese de doutoramento do autor que foi a precursora da bibliografia freudiana no Rio Grande do Sul. Nesse mesmo período, ainda encontrou tempo para traduzir a obra Elementos da psicanálise, do psicanalista italiano Edoardo Weiss.

No ano seguinte, de volta a sua terra, envolveu-se na greve dos gráficos da Livraria do Globo, por isso, foi preso pela primeira vez, ainda que por pouco tempo, num quartel militar, na Praia de Belas. Como homem de esquerda, tornou-se membro dedicado do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Após ser solto, ainda vai para o interior ajudar um familiar doente.

A segunda prisão ocorreu no dia 2 de outubro de 1935. Era uma quarta-feira. Nesse dia, Dyonélio Machado foi detido e levado para a carceragem do quartel do Terceiro Batalhão da Brigada Militar, devido sua participação na paralização dos gráficos do Rio Grande do Sul. Acusado de incitar os trabalhadores, Dyonélio foi enquadrado no artigo 19 da recém criada Lei de Segurança Nacional, instituída durante o governo de Getúlio Vargas. Aliás, ele foi um dos primeiros intelectuais a sofrer nas garras da “Monstruosa” como era chamada a lei que também encarceraria, um ano mais tarde, o alagoano Graciliano Ramos, por anos. Curiosamente, no mesmo dia da prisão, recebe a visita do jovem repórter, Rubem Braga, que registraria dias depois no jornal A Manhã, o recebimento do Prêmio Machado de Assis, em reconhecimento a Os Ratos. O escritor ficaria seis meses nessa prisão até ser transferido para o Rio de Janeiro, amargando um total de 2 anos de reclusão.

Segundo o próprio Dyonélio, a estória de Os Ratos o acompanhava há mais de 9 anos, estava toda em sua cabeça. Nessa época trabalhava em três hospitais. Chegava em casa do trabalho de médico, sentava-se à mesa e punha-se a escrever à mão em folhas de papel. Dormia muito pouco naquelas noites. Mas segundo ele, foram vinte noites mal dormidas. Escreveu Os Ratos em 20 noites. Pela manhã cedo, deixava o que escrevera à noite para que sua mulher fizesse a primeira revisão dos manuscritos. E no mesmo dia a esposa os entregava a uma funcionária empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo, para o trabalho de datilografia.

O livro, baseado num pesadelo que sua mãe havia lhe contado há anos,  tem um enredo bastante simples, linguagem seca e direta, que muito lembra a de seu companheiro de prisão Graciliano Ramos. Até os anos 1960, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava na base de um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados.

O personagem principal dessa obra é Naziazeno, um funcionário público, que dispões de apenas um dia para pagar uma conta com o leiteiro. Desesperado, chega no trabalho e pensa em pedir um empréstimo com o chefe da repartição. Sem sucesso, recorre ao amigo Duque. Ambos não foram trabalhar naquele dia. A doença do filho o desespera. Precisa conseguir dinheiro para o leite e o tratamento. Angustiado, Naziazeno consegue algum dinheiro emprestado para apostar num cassino. Entre as indecisões de apostar num número ou noutro, acaba ganha quinze mil-réis.  Guarda dez no bolso. Pega cinco, e compra mais fichas, na esperança de multiplicar seus ganhos. Porém, ele perde tudo.

No fim do dia, encontra os amigos Alcides e Duque, e os três procuram casas de agiotas, sem sucesso. Duque convence Alcides, que possui um anel penhorado com um agiota, a reavê-lo e renovar a penhora com outro agiota. Porém, para recuperar o anel, o trio é levado a fazer um outro empréstimo com outro agiota, Mondina.

Com o anel em mãos, Naziazeno e Alcides são instruídos por Duque a procurar Dupasquier, um comerciante de ouro. O dia está quase no fim, o tempo passa, e o leitor não consegue se livrar do efeito psicológico que a angustia do protagonista causa. O conselho de Duque não funciona.  Dupasquier trabalha apenas com venda, não com penhora. Quando finalmente os três conseguem negociar o penhor do objeto, e conseguem o dinheiro, Naziazeno chega em casa, exausto.  

Naziazeno, muito abalado, pensa e repensa o dia que passara, a angústia se torna uma espécie de paranóia e logo passa a ter umas alucinações entranhas com uma ratada. Ouve ruídos vindos da cozinha, entre pratos e panelas. A legião crescente de ratos invadem a casa e roem o dinheiro que obtivera, reduzindo-o a migalhas. E de repente tudo fica em silêncio.

Naziazeno se dá conta que está sentado na cama ao lado de sua mulher, Adelaide. Ele fica assim por horas a fio, até o amanhecer. Naziazeno só dorme após perceber o leite sendo deixado à porta de sua casa.

Em junho de 1937, obteve sua libertação, beneficiado que foi – como tantos outros – pela “Macedada”, nome do então ministro da Justiça Macedo Soares. De volta ao sul, foi a Quaraí (RS) se reunir com a família. Na cidade, passa a ter dificuldades de aceitação por parte da comunidade, em virtude de suas ligações PCB. Antes de se tornar comunista, Dyonélio tivera ligações poliíticas com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Ele fora muito amigo do governador Borges de Medeiros, de Protásio Alves e de toda a direção do PRR, além de ser parente do senador Francisco Flores da Cunha. Nessa fase, pós-prisão, a família sobrevivia às custas das aulas de piano ministradas por dona Adalgiza, esposa do escritor.

Após a celebrada recepção de Os Ratos, publica O Louco do Cati, em 1942, que foi mal aceito pelas editoras e critica.  Com o fim da Era Vargas, elege-se deputado estadual nas eleições de 1947, pelo PCB (ainda legalizado). Tornou-se líder desta bancada, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Mas com o decreto da ilegalidade do Partido, a bancada é cassada e Dyonélio volta a clinicar e militar no jornalismo político.  

Seu reconhecimento somente viria no final dos anos 1970, quando o escritor já tinha 88 anos. Nesse interregno publicou Eletroencefalograma (1944) e tardaria vinte anos para voltar a publicar Deuses Econômicos (1966), Endiabrados (1980), O Sol Subterrâneo (1981), e Ele vem do Fundão (1982).

O “Lobo Solitário” da literatura gaúcha, como o chamou Érico Veríssimo, deixou uma obra composta de 12 romances, um livro de contos, um volume de memórias e vários ensaios. Com uma vida cheia de traumas, prisões, independência e solidão,  faleceu no dia 19 de junho de 1985, no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, em decorrência das complicações de uma cirurgia no fêmur.

GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO 



Título: Glaucomattoso

Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

O nome no CPF é outro:  Pedro José Ferreira da Silva. Nasceu em São Paulo a 29 de junho de 1951. De ascendência italiana, entre Vila Mariana e Mooca, morou em diversos bairros de São Paulo. Os pais viam o menino estudioso, leitor compulsivo, e sonhavam e vê-lo advogado. Entretanto, Pedro José tornou-se bibliotecário. Formado em biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, também estudou Letras na Universidade de São Paulo, mas não chegou a concluir o curso.

Logo após a faculdade, já funcionário do Banco do Brasil, vai morar em Santa Teresa no Rio de Janeiro. Dalí para o Centro Cultural do Banco do Brasil, onde trabalhava na seção de numismática, era um pulo. Nesse mesmo período em que começa a colaborar com revistas e jornais alternativos, agrava-se o problema de visão que o acompanha pela vida. Pedro José desenvolveu um caso raro de glaucoma que o tornaria completamente cego em 1995. Mas ainda em meados dos anos 1970, assume o nome artístico de Glaucomattoso, um engenhoso trocadilho que envolve sua perda de visão com sua admiração por Gregório de Matos, de quem se considera o herdeiro na sátira fescenina. O novo Pedro José, então, passa a meter o dedo na ferida, na vida, na língua, nos orifícios, na dor e no prazer alheios.

Entre 1976 e 1994, colabora com periódicos no Rio de Janeiro, como Pasquim, 34 Letras. Participa dos primeiros movimentos LGBT’s do Brasil, o Somos, e colabora o jornal gay, Lampião. Em São Paulo como Chiclete com Banana no Jornal da Tarde. Com Nilto Maciel, organiza uma coletânea do conto marginal, Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal. Como ele mesmo disse recentemente: “Eu me identifico com os marginais porque publicávamos nossos livros com recursos próprios e não estávamos nem aí para as editoras".

A coletânea de poemas publicados na imprensa nanica e alternativa da ditadura, se concretizou num livro. O Jornal Dobradil, foi lançado em 1981 – um trocadilho do Jornal do Brasil, num formato de papel dobrado com poemas satíricos. E chegava a mandar sua criação para figuras como Millôr Fernandes e Tom Jobim. Neste mesmo ano, ainda escreveu um pequeno livro paradidático para a editora Brasiliense, Que É Poesia Marginal?

Paulistano convicto, com o agravamento da doença, volta para São Paulo. E entre a década de 1980 e 1990 participa ativamente de palestras e debates envolvendo a poesia marginal. Talvez por se considerar abertamente um produto do rock, da contracultura e do gibi, muito críticos embarcam na solução fácil de considerá-lo apenas um poeta de linguagem obscena e muitas vezes chula. Entretanto, sua obra é altamente elaborada. Abrange uma produção inicial de poemas concretos, visuais, passando a sonetos elaboradíssimos.

Até o início dos anos 1990, a visão, já muito comprometida, ainda lhe permitia ler e escrever. Nessa década, entretanto, com o agravamento da doença, que o impediu de fazer esse essencial para um poeta, se isola.

Entre altos e baixos, é tomado por uma depressão, e graças a amigos próximos, dá a volta por cima. Fã declarado do humor britânico, por, segundo ele, encararem as piores desgraças pelo lado mais grotesco, viaja a Inglaterra e trava contato com a cena punk britânica, especialmente grupos punks gays. De volta ao Brasil, já com a visão muito comprometida, passa a produzir CDs de punk e rock alternativo pelo selo independente Rotten Records, que fundou em 1995, e pelo qual orbitaram importantes nomes do cenário punk brasileiro. Em 1996 lançar o Urbanoise, dos Garotos Podres, e nesse mesmo período torna-se amigo de figuras como Redson Pozzi, guitarrista e vocalista do Cholera, Clemente Tadeu, guitarrista e vocalista dos Innocentes – e posteriormente Plebe Rude - e de João Gordo, dos Ratos de Porão.

Completamente cego, homossexual, sadomasoquista e podólatra, não necessariamente nessa ordem, Glaucomattoso ainda manteve uma carreira paralela como tradutor, durante os anos 1990. Em 1993, trabalha na tradução para o português da Bíblia do Skinhead de George Marshall para a Trama Editorial.  E na fase mais brava, após o desengano de qualquer operação corretiva para a visão,  o amigo Jorge Schwartz fez uma proposta de trabalho que, em certa medida, resgatou o velho Glauco: traduzir Fervor de Buenos Aires, obra de estréia do grande escritor argentino Jorge Luis Borges – que também ficara cego.

Aos domingos, falavam por telefone. Schwartz lia, enquanto que Glauco vertia os versos para o português com sua fala grave, sem nunca embaralhar as palavras, e assim Schwartz digitava no computador. Ganharam o Prêmio Jabuti de tradução, um dos mais importantes do país.

Como se já não bastasse a cegueira, para uma pessoa  que encara o alfabeto ainda tem 23 letras, incluído o Cá, o Dábliu, e o ìpsilon, a vida é difícil. Para falar a prosaica palavra “foda”, por exemplo, usa o pê e o agá. É que Glaucomattoso é meio parnasiano e ainda escreve em ortografia anterior à Reforma de 1943. No início dos anos 2000, já desiludido com alguma cirurgia que lhe devolvesse a visão, teve um sopro de esperança. Apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox (desenvolvido pela UFRJ para a língua portuguesa), em que a pessoa falava o que vai sendo digitado na tela do computador, ou lê em voz alta o que já vem escrito. Mas o problema ortográfico permanecia no meio da grafia de um ou outro orifício tocados por sua língua e seus dedos. Em fevereiro de 2008 completou dois mil e trezentos sonetos de uma série iniciada em 1999, e que segundo ele tinha batido a meta histórica do italiano Giuseppe Belli que no século XIX teria composto 2.279 sonetos.

Paulistana convicto, como já dito, hoje em dia Glaucomattoso vive na cidade de São Paulo, com seu companheiro. Segue produzindo incansavelmente e publicando sem parar. Quase tudo o que escreve e publica em livros de papel, vai para seu blog e redes sociais. Ele sabe que um parnasiano em tempos de Tik Tok, tem que se adaptar. É phoda, mas é verdade. Mantem assim em seu espírito anárquico, que é interrompido apenas nas segundas-feiras, quando vem um profissional especializado que o conduz à farmácia e ao correio. Ajuda-o nessas tarefas rotineiras, porém indispensáveis, que ele, um bancário aposentado do Banco do Brasil, cumpre geralmente sem ser reconhecido -  como um tarado, o louco, ou sanguinário - por ninguém na fila da padaria.

Elogio da morte





A Morte do Rubem Fonseca, me fez lembrar de Lima Barreto. Não sei bem por que, não me perguntem, tampouco estou com paciência para análises das associações livres de minhas idéias e devaneios. Freud diz que, na prática da análise, na associação livre de idéias do paciente é impossível não dizer a verdade, inclusive quando nos equivocamos ou tentamos mentir deliberadamente. Isso é coisa que gente muita versada no austríaco, descolada e inteligente, chama de recalque do reprimido. 


Em outras palavras, algumas verdades podem ser ditas, assim meio sem querer, principalmente numa semana em que partem para o outro lado do espelho Garcia Roza, Rubem Fonseca, Moraes Moreira, e que Aldir Blanc anda balançando numa corda bamba. A propósito, para um cara raso como eu, o recalque psiquico, essa coisa de expulsar da consciência o que parece intoleravel,  pode bem estar é no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no risco da pemba, no giro da pomba, no som do atabaque… vai por mim, tá la.


Nota: Se eu pudesse ser um ASPONE[ Assessor de Porra nenhuma] de Deus, eu sugeriria ao Senhor que levasse logo esse tal de Olavo de Carvalho. Vai Oxalá… dá uma força ai… o cara é fumante, só fala merda, e é um cara do mal… vai por mim... o senhor sabe disso…


Mas voltando ao tema, não me parece crível, que nos Compêndios de Literatura Brasileira, coloquem na mesma cumbuca do chamado pré-modernismo Euclides da Cunha que cometeu aquele intragável capítulo A Terra no grandíssimo Os Sertões; Monteiro Lobato, uma espécie de matuto ilustrado com vocação para o lucro e sempre mais político, sempre mais empresário, que escritor;  Augusto dos Anjos, que só por Eu, já o tiraria desse grupo nefasto;  e por fim a tríade Graça Aranha, Raul de Leôni e Simões Lopes Neto  -  que sinceramente nunca li e nunca os lerei por algo que me parece preconceituoso em mim: eu achava que Canaã, seria um livro chato, antes de começar a folheá-lo. Depois tive a certeza de que meu preconceito passou a ser um conceito. Canaã é realmente um treco chato pra cacete! 


Portanto, me fazer tentar crer que Graça Aranha e Simões Lopes Neto possam estar ao lado de Lima Barreto… sinceramente… No cú pardal! Mas nem fodento!


A distância entre o intelectual e a realidade, na escrita do Lima Barreto, assim como na de Rubem Fonseca, está muito acima destes camaradas. Ela é dada por uma espécie de descrença metódica alimentada pelos indicadores da rua. A desconfiança da ação de um cara que transita pelas ruas, como um estranho, trespassado de dúvidas, constatando mazelas, sendo discriminado pelo mercado editorial, no caso de Lima e pela Academia, no caso de Rubem, mostram bem a que vieram os dois no panorama da literatura brasileira: são inclassificáveis pontos fora da curva. 


Dentre as muitas crônicas de Lima Barreto, uma das, talvez não a mais impactante mas muito gráfica, que li há uns 27 anos, seja a Elogio da Morte. Essa crônica é de setembro ou outubro de 1918 (não lembro), portanto 10 anos após a morte de Machado de Assis – e talvez por isso o fechamento dela tal como se dá. Neste mesmo ano, um Lima Barreto de 37 anos, alcoólatra, já com algumas internações, começa uma série de correspondências com o contemporâneo “novo rico”  Monteiro Lobato, que acabara de comprar a Revista do Brasil e que com tremendo faro empresarial se interessava pelo Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá. Lobato prometera que publicaria mais coisas de Lima. Mentiu safadamente. Lima, iludido, se entusiasmara com a ideia e passou a escrever-lhe com frequência. Fazendo inclusive resenhas de escritores iniciantes, promovendo a editora do H. G Wells de Taubaté. Com o tempo, após a primeira publicação, e uma premiação pela Academia Brasileira de Letras, na qual Lima foi barrado anos antes, Lobato passou a ignorar as cartas deste, que morreria 3 anos depois, alcoólatra, abandonado, esquecido, desvalorizado e claro, amargado pelas putarias da vida e do universo literário.



Elogio da morte



Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.

A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.

É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.

É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar..

São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.

Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.

A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.

Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.

Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.

Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.

Ao vencedor, as batatas!





Mé e forévis, forever!


Quem já passou dos 40 anos lembra bem o que estava fazendo às 19:00hs, no primeiro domingo do mês de agosto de 1984. Estava assistindo Os Trapalhões! Naquele hiato entre o domingo de sol e aquela música horrenda do Fantástico a nos lembrar da segunda-feira, entrava o melhor programa da televisão brasileira para a molecada. Intelectuais de plantão irão dizer que o programa promovia violências intelectuais contra minorias étnicas, raciais e de gênero. Ô da poltrona, à época eu tomava cascudo dos guris mais velhos e cheguei a cair na porrada na porta da escola sem saber que isso era bullying por que o que importava para nós era  exatamente isso, Samba, Mé e Trapalhões!
A biografia do jornalista Juliano Barreto sobre Antônio Carlos Bernardes Gomes, o “Mussum”, lançado pela grande editora LeYa, é muito legal. Eu sei que o termo “legal” é impreciso, mas é o que me vem à cabeça quando lembro que não consegui levantar o forévis da cadeira enquanto não terminei o livro. O livro resgata memórias de um tempo em que as fotos coloridas ainda eram em papel fotográfico meio avermelhado e a família sempre aparecia meio desbotada. Não chega a ser uma ótima biografia, pois fiquei com um gosto de querer saber mais da história do Mussum e de sua vida pessoal. Mas reconheço o esforço do jornalista ao tentar resgatar o passado de um cidadão que nasceu pobre, filho de mãe solteira negra e analfabeta, batalhadora, e com no máximo uma certidão de nascimento, deve ter sido hercúloe.
A biografia  conta com partes de como cresceu num colégio interno esbanjando simpatia, trabalhando como mecânico, morando em cortiços para sobreviver, enquanto a fama não o tocava. Sempre enchendo a cara, mas sempre pontual, nas segunda-feira pela manhã, independente do tamanho da ressaca que o afligisse o homem era uma muralha. Partes tristes como quando teve que romper com Os Originais do Samba, e deixar para trás os amigos de longa data, para se dedicar aos Trapalhões, e inúmeras partes engraçadíssimas que te fazem rir sozinho. Em resumo, a biografia mostra  um grande homem por trás do humorista, mostra sua generosidade, sua impressionante capacidade de trabalho, e até mesmo sua relação com suas ex-mulheres que  - se recusaram a detraí-lo mesmo após a fama.
Sua trajetória televisiva, vista criticamente,  mostra o esteriótipo de um homem negro alcoólatra. O problema deste tipo de análise eram as segundas-feiras pois quando chegávamos à escola, as conversas inocentes sempre passavam pelo mé e pelo forévis de alguém. É inquestionável a presença de Mussum em nossas vidas, mesmo na das pessoas que juram de pés juntos não terem assistido Os Trapalhões.

Música do dia. Ray Charles and Betty Carter. Cocktails for two

o gAtO biGodUDo

Guilherme: o nome do meu amigo que "transa vídeo", e que está por trás do O Bigode do Gato. Trata-se de uma série de entrevistas,  visões etnográficas, vastas impressões, estudos de representação dos hábitos, pensamentos imperfeitos, documentários, ou sei lá o que, mas que é muito bom.

As entrevistas são ótimas, os entrevistados melhores ainda. Na edição, capítulo à parte, Guilherme mostra toda sua habilidade. Recentemente, tive o imenso prazer de trabalhar e de dividir vários churrasquinhos de gato - perdão pelo paralelismo - nas noites intermináveis das edições. Enquanto uns editavam outros - me incluo neste grupo - tiravam um cochilo no imenso, confortável e horroroso sofá marrom da ilha de edição. As circunstâncias do trabalho, claro, não permitiam, mas o cara sempre tinha camisas de estampas interessantissimas e gestos elegantes, para além dos cinco ou dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém no tipo de trabalho, com o tipo de gente  que éramos obrigados a conviver.

Qualidades pessoais à parte, bom mesmo era ver o cara editando, mexendo nos controles da sua engenhoca com dedos mais rápidos que os olhos podiam seguir.



Blanche Ebelin-Koning faleceu na quinta-feira. Trabalhei com ela por três anos na Oliveira Lima Library e sempre a admirei, não apenas por sua personalidade forte, mas por sua ironia fina. Catalogadora de livros raros e tradutora, era capaz de ler 7 línguas, incluindo o latim. Nos últimos anos andava a trabalhar numa criteriosa tradução do holandês para o inglês de um  livro do historiador e poeta humanista Gaspar Barlaeus.

Barlaeus se propôs a narrar os feitos do conde Maurício de Nassau na obra Rerum per octennium in Brasilia (História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil).  As ilustrações do livro são um espetáculo à parte que poucos no mundo tiveram o privilégio de presenciar, até por que deve haver no máximo 5 copias coloridas no mundo - eu conheço 3, incluindo a da Fundação Biblioteca Nacional. Trata-se de 340 páginas e 56 ilustrações, entre elas o retrato de Nassau por Theodor Matham (1605-1660), mapas de George Marcgraf (1610-1644) e gravuras de Frans Post (1612-1680) retratando a paisagem pernambucana, o cotidiano dos escravos, dos engenhos, dos portos e do comércio.

A edição em português, foi organizada em 1940 por Cláudio Brandão e concordo quando Blanche a criticava. É absolutamente ilegível e displicente. Em contrapartida, em sua tradução - sou testemunha -  ela preocupava-se em encontrar  forma perfeita para o que melhor definisse os nomes de frutas, tipos de armas descritas, os monstros narrados, os nomes dos rios, os nomes dos tubérculos definidos pelos índios, as etnias indígenas, as embarcações, os equipamentos e nós náuticos. Enfim, um trabalho absolutamente impressionante que por vezes me parecia interminável principalmente por sua  incansável busca da expressão que melhor traduzisse do holandês - seu idioma nativo - para o inglês - sua língua de uso -  com minúcia e destreza as expressões holandesas do século XVII.

Traduzir o texto de um erudito como Barlaeus não é tarefa das mais fáceis. Além de historiador e poeta, Barlaeus foi um teólogo defensor da causa arminianiana, doutrina pela qual os seres humanos são incapazes de fazer qualquer esforço para salvação e que nenhuma obra do esforço humano pode causar ou contribuir para a salvação.

Enfim, em meio a luta para terminar a tradução, na última quinta-feira, Blanche nos deixou. Diagnosticada com um problema numa das válvulas do coração, os médicos lhe deram um ano de vida caso não se operasse. Operou-se e não resistiu. Parece retórico, mas assim com Barleaus ela era uma Humanista plena. Deixou registrado que não queria enterro nem cerimoniais póstumos. Não sei o que fez com a sua pequena casa em Greenbelt. Não sei se acreditava na salvação da carne, na remissão dos pecados, na vida eterna e em todas essas inúmeras bobagens. Provavelmente não, pois doou em vida seu corpo para estudos científicos.

No último ano acompanhei a sua luta, pari passu a sua gradual fragilidade física - para terminar a tradução que tanto a atormentava - certa vez, nuum de nosso almoços confessou que sonhava com pernambuco colonial. Nos últimos anos, andava perdendo muito peso o que lhe acentuava a fragilidade, mas eu não desconfiava dos sempre silenciosos e traiçoeiros problemas cardíacos. Almoçávamos quase todas as semanas pois ela vinha a Library para terminar as inúmeras revisões. Viúva de um economista que trabalhara na ONU, ela nunca tivera filhos. Em fevereiro último estive com ela quase três dias no hospital, pois ela teve um sério problema gástrico... e desde março não tinha notícias dela. Engraçado... semana passada pensei em telefonar, mas a inútil correira do dia-a-dia E recebi a notícia ontem com um choque.
Acompanhei sua luta para terminar esta tradução, tentando conseguir finaciamento e cartas de recomendação com scholars que tinham idade para serem filhos dela, da Library of Congress, para pagar pelas imagens que a biblitoteca detentora da obra somente liberaria mediante pecúlio... e que a editora se recusava a publicar integralmente por tornar a edição do livro muito cara... Blanche literalmente lutou até o fim por este livro. O mais irônico de toda a luta... entregou ao editor a última revisão de sua tradução de Barlaeus duas semanas antes da operação e não chegou a vê-la publicada...

“Clarice,”

Clarice Lispector é e sempre será um mistério. Falo da literatura experimental de Clarice Lispector. Ao tratarmos da biografia de Clarice, muito bem escrita por Benjamin Moser, percebemos que traz à luz dados novos e interessantes - mais sobre a vida da escritora que da mulher. E ouso dizer que, falha um pouquinho no momento de reconectar as duas mulheres. Explico. Para mim, não revela dados biográficos novos, mas apenas absolutamente previsíveis e já presentes em outra biografia que eu havia lido sobre a mesma autora.

Ao contrário de “Eu sou uma pergunta”, uma biografia que li há anos atrás, sugerida por um amigo que vive hoje em Pretória, esta “Clarice,” mergulha mais nas fantasias de Clarice, em suas tentativa de meditação e mediação entre literatura e realidade, que em sua vida real. Ao menos, esta foi a imagem que tive ao comparar amadoramente as duas biografias. Faltou um pouco pontuar os fatos, desde a imigração dos pais para o Brasil em 1922, passando pelas relações familiares, e até mesmo, por que não dizer, esclarecer como uma pessoa tão confusa - não há pejoração aqui! - conseguia promover seus livros a partir de uma rede de apoio que começava com sua irmã, e passava por Lucio Cardoso e recebia o abraço corporativo de amigos influentes como Alberto Dines.

Na biografia de Teresa Cristina Montero, essas relações estão mais claras, sem dúvida.

Pois mostram que já consagrada no Brasil e no exterior, Clarice ainda se angustiava com a crítica e com a relutância de editores em publicar seus novos trabalhos. A biografia escrita por Moser complementa esse aspecto e mostra, por exemplo, a irritação de Clarice com a crítica de Alvaro Lins (reunida no livro Mortos de Sobrecasaca: Obras, Autores e problemas da Literatura Brasileira, ensaios e estudos, 1940-1960) sobredois de seus livros, Perto do Coração Selvagem e O Lustre. Folheando  Mortos de Sobrecasaca percebi que o crítico realmente começa com uma análise meio datada e até mesmo esdrúxula sobre escrita "feminina" e a aceitação do lirismo como forma de expressão literalmente feminina e inaugurada por Virginia Woolf. E vai além, afirmando que Clarice mimetizava o estilo de Woolf. Clarice se indignara com a crítica e confessara que nunca sequer havia lido Woolf. Lins classifica Perto do Coração... como um livro confuso, tomado pelo caráter do sonho e da super-realidade. Lins na certa ainda sofria o impacto entorpecente de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, encenada pela primeira vez no mesmo ano do lançamento de Clarice, obra que aparentemente forjou a forma daquela geração ver a relação entre ficção e realidade. Mas no decorrer da crítica, apesar de menos condescendente com O Lustre, Lins aponta e nos relembra para elementos realmente interessantes. Por exemplo, é claro que para quem já leu o livro, alguns personagens mesmo que secundários, importantes para a trama, aparecem e desaparecem com muita facilidade, numa espécie de mutilação dos antagonistas para dar voz apenas a seus protagonistas. Lins define isso como uma técnica processual. Mas essa mudança de centro de gravidade era comum nos grandes mestres. Balzac e Machado cansavam-se de fazer isso, por outros meios. É, ou não é, meu caro biógrafo do Barão? E por que a Clarice não podería?

Mas por essa biografia, ainda que a biografada saia imaculada pelo respeito do biógrafo, podemos acompanhar claramente a carreira literária de Clarice Lispector: suas estorinhas inventadas quando menina, seu trabalho como repórter de jornal chapa branca, seus traumas, na análise das missivas podemos perceber suas angústias criação literária, um pouco de suas amizades e trocas de favores com os intelectuais e escritores e a paixão platônica e sempre muito mal explicada pelo escritor Lúcio Cardoso, sempre muito mais enfatizada que o suposto romance com Paulo Mendes Campos – nunca claramente investigado para além da forte influência intelectual que Mendes Campos exercia sobre ela, ou para além da maledicência de amigos do meio literário.


Podemos até mesmo perceber que paralelamente à sua carreira literária, Clarice tinha uma vida privada.

Clarice foi casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente. Uma relação, que apesar dos filhos, sempre deixou um certo ar de aparências. Primeiro, pelo cotidiano que é sufocante para qualquer casal - ela chega até mesmo a citar para a irmã, se não me engano, "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente.". Segundo, pelos desgastantes problemas psicológicos apresentados pelo filho mais velho. Por tudo isso, Clarice nunca escondeu de seu círculo mais íntimo que se sentia sufocada pela vida conjugal, já desde os primeiros anos em Berna, Torquay e mesmo depois no 4421 Ridge St em Montgomery Country. Enfim, na biografia de Moser, ao contrário na de Teresa Cristina Montero, o casamento, instituição difícil para qualquer criatura dotada de mínima racionalidade, não raramente se torna um obstáculo às ambições, sonhos e promessas da escritora. Dessa biografia, no aspecto específico citado,  pode-se concluir que incapaz de elaborar a crise que inventava nas suas linhas escritas, Clarice passou a conviver com sua falta de elaboração, como quem divide a vida com uma pessoa amarga e que tenta temperá-la em vão no dia-a-dia. Aos poucos, de alguma maneira, enquanto Teresa Cristina Montero mostra a face pública de Clarice no papel de esposa de diplomata, recebendo em sua casa, se tornado amiga das esposas de diplomatas, trocando confidências banais e estúpidas, e obviamente se utilizando do prestígio para publicar, Moser mostra o oposto, mostra a sua face de prisioneira que não consegue entender por que Clarice e Maury estão presos, mesmo sabendo, ou desconfiando que a chave da cela está com eles, mas não conseguem localizar. Demorou 16 anos para encontrarem a chave.

Mas nada me tira da cabeça que uma mulher que escreve de tal maneira, ou melhor, depara-se de tal maneira com a força do próprio desejo já desde jovem, sabia ou ao menos suspeitava dos ônus em se casar com um diplomata, de viver fora do Brasil, ou seja, de ser expulsa de seu paraíso imaginário para ganhar a temível e angustiante notoriedade de escritora. Ela assumiu isso em troco de algo. E por isso imagino que a chave estava bem guardada, ao invés de perdida...

A paixão por Paulo Mendes Campos foi secreta. Tão secreta que passa quase incógnita pelas páginas dessa biografia. O caso era tão discreto que não conta com mais de duas páginas em todo o livro e termina com Mendes Campos intimado pela mulher inglesa a partir com a família para Londres. A paixão por Lúcio Cardoso era platônica, mas que não deixava de tera algo de paternal. Ele mostrou-lhe que suas anotações dispersas e que pareciam incoerentes, eram o seu próprio método, além de ter sido ele quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. Paixão e labor andavam juntos em ambos os casos.

Enfim, o livro de Benjamin Moser tem muitos pontos muito atrativos. Ao juntar elementos biográficos e espelhá-los na obra ficcional de Clarice. Se é inovador eu não sei. Desconfio que sim. Mas o mistério das duas mulheres não necessariamente se desvela, até por que não há razão nem ontológica tampouco comercial para isso.

Pequena biografia numa visita inesperada


Ethan é um desses caras, que aparecem de vez em quando com uma mala cheia de bagulhos, que pedem pra dormir na tua casa, que comem tua comida, que molham teu banheiro todo, que não levantam para sequer lavar o prato em que comeu e vão embora deixando a sensação de que tudo isso poderia ser suportado só por que é um desses caras que a gente não sabe bem o por quê mas é um cara bacana. Além de ser meio esparramado, ele é um economista muito esquisito, pois originalmente era engenheiro formado pela Technion Israel Institute of Technology. Um cara estranho, repito, pois além de entender muito de micro e macro economia, lê muita literatura e adora cinema – e isso, diga-se de passagem, esse Humanismo todo, como todo mundo sabe, é muito perigoso, e para um economista mais ainda....

Não pára aí. O cara gosta de Tarkovski, Antonioni, Truffaut, toca Villa Lobos ao piano e tem irmão maestro em Amsterdã que gosta de Egberto Gismonti, e agora ainda está lendo os irmãos Karamazov. Diz que se um dia votasse na vida votaria no Labor Party. Mas isso, já dizia o Freud, vem dos pais... O pai, um cara impressionantemente boa gente e pessoa boníssima que me chama ‘Cheeeco, the brrrasssilian frrriend’. É um sobrevivente que cresceu órfão de pai e mãe – coisa triste e tenebrosa que nem é bom falar – mas que obviamente não se entregou. Viveu muito, entrou pra marinha mercante, viajou o mundo todo, conhece muito de jazz (diz que ja viu Monks e Coltraine tocando no Blue Note), música brasileira, e futebol podendo dar a escalação de 70 de cabeça. Muita gente pode dizer com certo nativismo de princípio, até aí voce não disse nada, ô mané... mas nunca se esqueça que ele bem podia achar que a capital do 'Brazil' é Buenos Aires.... e que Monks é o plural de monkey.


Enfim, Ethan, após ter vindo dar aulas de verão em Maryland fez questão de visitar na semana passada, pra comer minha comida toda, e dormir no sofá, e deixar o banheiro todo molhado antes de retornar a Bruxelas, onde vive amancebado com a Marisa. Dessa vez, além de tudo, trouxe umas três caixas de livros para que eu os guardasse - não sei onde. Disso eu não me queixo, pois após uma detalhada explicação sobre as expectativas do mercado imobiliário americano, as políticas de securitização de bens e dívidas que as financeiras americanas implementaram após as crises asiática e mexicana, e como tudo isso afetou a crise da bolsa de São Paulo nas semanas passada, ainda de quebra ganhei por comodato um monte de livros bacanas. Um deles, um pequenininho do historiador americano Eric Foner, A Short History of Reconstruction, 1863-1877, comecei a ler ontem e já avancei dezenas de páginas. Não consigo largar. É impressionante como escreve bem. Parece que escreveu o livro exclusivamente para manés como eu, verdadeiras dízimas periódicas próximas do zero, zeros à esquerda, em economia.

As explicações de Ethan, ao tentar me convencer que é ótimo para o Brasil, hoje, ser uma das maiores economias integradas ao mundo financeiro internacional ( segundo ele nem China, nem India o são por não estarem totalmente integradas), foram ao mesmo tempo assustadoras mas de valor ímpar. Ele garante que se o pais quebra pra valer, com as reservas que temos - talvez uns 100 bilhões de dóla - aguentamos uns seis meses uma gestão de risco antes do bu-ra-co! Enfim, nada que eu não aprendesse lendo um The Economist, mas que sinceramente não tenho a menor paciência. Por isso relevo aquela porcalhada que o Ethan fez no banheiro.