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O Lugar dos Zé Manés no Mundo do Trabalho

Um dos grandes dilemas do homem que trabalha, que se esforça numa jornada de 8, 9, 10 horas por dia e volta para a casa esperando no fim do mês por um salário que muitas vezes, simplesmente, não dá, não é mais o cerne da questão no mundo do trabalho. Não, não é. O que nos torna reféns do devir, hoje, é o medo de perder o emprego num mundo do trabalho sem ética.
Para Richard Sennett, professor de sociologia da Universidade de Nova Iork e da London School of Economics e autor também do ensaio Carne e Pedra, O Declínio do Homem Público e The Hidden Injuries of Class, estamos imersos numa nova face do capitalismo que afeta o caráter de indivíduos em seus mais sutis detalhes na vida pessoal. E um dos pontos de partida, para que Sennett sustente seu argumento, reside exatamente a falta de condições para que o homem contemporâneo construa uma narrativa linear de sua vida profissional e pessoal, sustentada na experiência - como a daqueles dos anos que o Fordismo vigorava.

A “CORROSÃO DO CARÁTER – conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo,” lido em português, afanado por meu caráter corroído, da casa de minha prima, é trabalho muito bom, dividido em oito didáticos breves capítulos, onde se define a nova idéia de tempo capitalista, e se mostra as dificuldades de se compreender as novas relações de trabalho num mundo onde as referências e a ambição individual – ou a muitas vezes confundida, luta pela sobrevivência - é cada vez mais anti-ética. Além disso, o livro trata dos aspectos mais psicológicos dessa diluição do caráter. Os sentimentos despertos nos indivíduo como o fracasso, o desnorteamento, e a decorrente depressão.

O livro, apesar de ser anterior à bolha imobiliária que afetou Estados Unidos e União Européia de maneira violenta, é muito atual com até um certo ar de saudosismo. O autor começa a exemplificar seu argumento logo nas primeiras páginas com a estória de Enrico, um imigrante que fundou uma família e a sustentou com os esforço – sem querer ser piegas – de seu trabalho e seu suor. Enrico era o típico exemplo de trabalhador fordista. Tinha um emprego rotineiro e repetitivo, baseado no uso disciplinado do tempo. Através de seu salário, sustentava sua família e mesmo sem grandes perspectivas de ascensão profissional – devido à sua condição de imigrante e baixa escolarização – sentia-se à vontade em seu trabalho baixamente qualificado mas relativamente estável, pois contava com uma rede de proteção sindical bastante eficiente. Através desse trabalho Enrico podia contruir uma narrativa composta de estórias cumulativas de vitórias e até mesmo derrotas em sua vida. Já com seu filho, Rico, e com sua nora, a estória é outra. Ambos são profissionais qualificados num ambiente de crise econômica, o que os obriga muitas vezes a term empregos em cidades distintas, obrigando-os a viajar de avião pendularmente. Ou seja, Rico se esforça para não demonstrar nenhum laço ou vestígio com o universo do trabalhado braçal ao qual o pai pertencia. No novo Sonho americano Rico quer fugir da rotina. O grande problema é que esta rotina baseada no tempo linear foi substituída por novas formas de domínio e controle, mas Rico não se dá conta disso. Rico, com um trabalho muito mais intelectualizado que o pai, e educado para ser um trabalhador muito mais competitivo, tem uma rotina de incertezas e mudanças constantes.

Sennett compara, não por acaso, esse dois modelos de trabalhadores. O trabalhador fordista, burocratizado e rotinizado, que planeja sua própria vida familiar e suas metas se baseando em um tempo linear, cumulativo e disciplinado, e que constrói sua própria história e expectativas a partir de uma perspectiva de longo prazo. E o trabalhador flexibilizado do capitalismo das últimas décadas, que muda de endereço freqüentemente, que não estabelece laços duráveis de afinidade com os vizinhos, muda de emprego e de casa constantemente, ou seja, vive uma vida de incertezas e descartável, mas acima de tudo de laços frágeis. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis está corrompendo o caráter e como isso acontece é demonstrado ao longo do ensaio.
Neste sentido, Sennett considera que a sociedade se depara com a ponta de um dilema. O problema do antigo trabalho rotineiro com o da reestruturação do tempo implicam em instituições mais flexíveis, criando novas formas de poder e controle. Essas novas formas de flexibilização geram um movimento estrutural de reinvenção institucional, de ruptura do presente com o passado de forma a minar a burocracia aumentando o grau de especialização, num mercado que ocupa apenas temporariamente um nicho de consumidores.

Com isso as formas de controle do RH mudam também. O trabalho em casa, o chamado teleworking, toma o lugar do trabalho no escritório; “o controle face-aface” cede ao controle eletrônico de troca de emails e mensagens diretas. Isso, espelhado num trabalho em equipe, parece dar mais libertade ao trabalhador, ludibriado pela falsa idéia de que a concentração de poder sem centralização dá ao trabalho em equipes, maior controle sob o trabalho que se desenvolve. Grande balela! Sennett afirma que isso é conversa pra boi dormir, pois na verdade quem decide o que fazer e quando, ainda é o capitalista, restando aos trabalhadores apenas o refugo das decisões de como realizar as suas atividades ASAP, ou seja, “rapidinho mermão senão você roda.”

A aparente liberdade dada ao trabalhador através do trabalho em equipe, sem o patrão por perto para vigiá-lo, na verdade colocou o trabalhador ainda mais sob o jugo do capitalista, já que a atomização cada vez maior das suas tarefas fez com que este não se precisasse mais de tanto treinamento. Como conseqüência, deixou de possuir o domínio sobre seu emprego, por isso ele sempre está mudando de área, e como já não possui vínculos fortes com suas tarefas na empresa, muda de função e até mesmo de emprego de manaira mais fácil e rápida.

Toda essa flexibilização aparentemente positiva tem uma outra face que afeta o indivíduo, conceito que sociológicamente poderia ser descrito como o “Zé Mané”. O Zé Mané é esse cidadão que se mata de trabalhar no mundo flexibilizado e que não se dá conta de uma coisa muito grave.... a corrosão de seu prórpio caráter.

Segundo Sennett, o caráter é mais ou menos algo que lembra vagamente, na ética aristotélica, “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros, ou se preferirmos ... são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem.” Buscar essa coesão de significado é algo que era possível no mundo de Enrico, mas não no de Rico, seu filho. Por que?

Bom, primeiro por que o trabalho flexível leva a um processo de degradação dos antigos profissionais de ofício (o velho trabalho do técnico, do especialista em alguma àrea...), à degradação das metas de longo prazo, à tolerância, e por fim a flexibilização do caráter também. A nova ordem do mundo da produção concentra-se na capacidade imediata, não leva em conta que acumulação da experiência. Daí a preferência do capitalismo pelos mais jovens, como Rico, por serem mais adaptáveis às formas flexíveis de trabalho.
A questão é… até então, na crista da onda, Rico se sentia afetado por isso?
Claaaro que não. Rico não passa de um Zé Mané.

Um Zé Mané de classe média não conseguia ver os riscos desse mundo com o qual corroborou, pois mesmo com seu caráter, cheio de grafite, já mais oxidado que uma canalização de ferro fundido, só via que no jogo capitalista atual todos acreditam ser potenciais vencedores, e sabem que os vencedores fazem parte de um minúsculo grupo, e que portanto não se mexer é condenar-se ao fracasso. Mas tem gente que fracassa e Rico ainda não era um destes.

Ele acrditava que o trabalho em equipe gera um novo tipo de caráter, onde o homem motivado é o homem irônico, que ganha prosélitos nas esferas superiores, e em decorrência de viver em um tempo flexível, sem padrão de autoridade por perto e com responsabilidade voláteis, não consegue se reconectar com a ética e o respeito ao próximo.Mas tampouco isso é algo que o afete tão profundamente. O Zé Mané de Rico estava na crista da onda. O problema é como construir essa nova história de vida sem valores muito sólidos, e em um capitalismo em que as pessoas estão nesse mesmo barco à deriva. A resposta para esse estado de natureza, esse salve-se quem puder, esta na maneira como as pessoas enfrentam o fracasso.

Para Rico, a resposta veio com o sentimento de esvaziamento, frente ao medo de perder o emprego. Até aí tudo bem, pois esse era um medo do seu pai também, e de qualquer outro homem e mulher com ou sem juízo – como eu ou você, meu caro leitor. Mas, em Rico foi mais profundo pois numa dessas fases de desemprego sentiu mais dificuldade em se recolocar no mercado percebendo que perdeu o contato com a moral social e cultural. Caiu na real pois seu pai frequentava um clube de imigrantes onde ele tinha amigos com os quais ele conversava sobre os mesmo temas. Rico, forçado a constantes viagens e a muitas horas de trabalho, não tem vida social. Portanto, percebe que não tem com quem dividir seu drama.

Fracassar é ruim. Lógico. E como diria Alvaro de Campos, “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Mas o fracasso é algo que atinge as pessoas e para superá-lo é necessário compartilhar a experiência do fracasso com um grupo ou uma comunidade para que este adquira um senso de coerência coletiva e não passe apenas como uma injustiça sofrida por um indivíduo. Isso o pai de Rico tinha esse senso. Rico, não, mas como é um Zé Mané, ainda estava jovem, na crista da onda, com os filhos relativamente pequenos, só se deu conta do buraco em que estava mais tarde.

O grande mérito de Sennett foi o de aproximar a teoria sociológica do leitor comum. Ele consegue demonstrar como esta corrosão acontece gradativamente utilizando exemplos reais, de operários, prestadores de serviço, e desempregados da IBM, ao optar pela narrativa e não puramente o uso de estatísticas e tabelas. Sennett consegue dar vida as hipóteses de planilha mostrando que as novas relações do novo capitalismo flexível corromperam e corrompem o caráter do ser humano. Mais ainda, ao demonstrar esses exemplos reais de atomização das relações humanas e trabalhistas, Sennett mostra que o homem do novo milênio sofre com a própria construção de sua narrativa de vida e narrativa histórica pois o cabra fica impossibilitado, sem padrão e nem responsabilidade.

Hipóteses como a de um Rico em dois tempos, em duas entrevistas, uma anos atrás e uma recente, Sennett descobriu duas pessoas. Dois Ricos. O primeiro arrogante, sentado ao seu lado num vôo local pelos Estados Unidos. No outro, um Rico mais modesto, workaholic sem tempo para se dedicar à educação dos filhos, sem saber se os filhos estão na escola ou se estão o dia todo zanzando pelos shopping centers ao arbítrio dos perigos que rondam adolescentes num país onde tudo é muito fácil se conseguir, e mais fácil ainda se corroer. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis, num universo onde o poder existe mas onde a autoridade é invisível, está corrompendo o caráter. Ou seja, um Rico menos Zé Mané... mas, devido ao seu isolamento, seu caráter completamente enferrujado, chega um pouco atrasado para pegar a tempo seu bonde na História.


A questão mais profunda para um Zé Mané como Rico é... "Que lugar ocupo eu, no Mundo do Trabalho?"



Música do dia. Roda Viva. Chico Buarque.
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Caminhos e Fronteiras




Caminhos e fronteiras é um livro de 1957 e nele Sérgio Buarque de Holanda inova ao propor uma nova análise sobre a ocupação do Brasil, distinta daquela apresentada no livro Raizes do Brasil, publicado 21 anos antes. No trabalho de 1936, Sergio Buarque argumentava que a forma de ocupação do Brasil respeitava a uma lógica de imobilidade, de estática, sem maiores desígnios de penetração no território brasileiro. A conformidade de tal prática teve consequências. O enraizamento da mentalidade ibérica, pouco curiosa e ávida a reproduzir relações sociais baseadas nas tradições de origem, sedimentado no litoral brasileiro, serviu em algumas regiões, como a do Nordeste açucareiro, para adaptar uma rotina nobiliárquica transportada das terras portuguesas para a colônia.

Enquanto em Raizes, há um forte componente de domínio e estabilidade no sentido do homem impor ao meio sua vontade, no Caminhos e fronteiras, Sergio Buarque realiza uma história do cotidiano das expedições bandeirantes na região das Monções. Sua câmara clara registra uma sociedade onde a imagem do bandeirante, movediço, instável e caprichoso, é moldada pelo meio e infuenciada pelos costumes indígenas – de por exemplo adaptar hábitos alimentícios com o consumo de raízes, frutas, animais, e até mesmo caminhas pelas sendas descalço. A certa condescendência de Sergio Buarque com o bandeirante chega a ponto de criar um paradigma, de certa forma modernista, que seria o da exposição de uma aculturação não do indígena, mas sim do português que moldaria seus hábitos a partir do contato cotidiano com o ambiente inóspito. Tal contato, naturalmente, fez com que o português renunciasse ao estilo de vida anterior, litorâneo, e por meio de se impor as condições essenciais de sobrevivência lançaria-se à floresta com o intuito de caçar índios, adquirir riqueza rápida e de certa forma romper as fronteiras impostas pela cultura lusitana, sem se dar conta das perdas dos valores proprios.

O aculturamento as avessas do português pelo indio, evitado a todo o custo ser encarado por Sergio Buarque como negligente ou violento por parte dos primeiros, é um dos temas recorrentes no livro ao comprovar a importância do indígena na formação cultural brasileira. As evidências para seu argmento estariam no uso dos vocábulos para denominar nomes de lugares e coisas, além das técnicas agrícolas primitivas – mais eficientes para a prática das expedições constantes.

O livro deixa muitas lacunas, mais perguntas que respostas, como Sergio Buarque, sendo grande estilista, primava por fazer. Se lido com os olhos da curiosidade literária reserva horas de extremo entretenimento ao leitor. Se lido com olhos de um cientista social, deixa um certo sabor salgado de sangue na alma.

Detalhe do 'Mape-monde : planisphere ou carte generale du monde'. Sec. XVIII
Charles Inselin, geografo e gravador parisiense.
Musica do dia: Confrontio. Lalo Schifrin. Album magnum Force