A Beleza em sua mais cruel face

Fim de noite. Estou eu em casa à frente da televisão. Uma esponja amarela amiga de uma estúpida estrela do mar e cor de rosa.... Uma arganaz orelhuda criada por Disney... Não consigo me concentrar na leitura do Georges Perec... pois aparecem uns guppys que falam em linguagem articulada... sedutora... uma menina histérica e cabeçuda que ensina as crianças a serem latinas... E vem o os reclames comerciais. O menino, o meu, começa a cantar a música inteirinha para a caçula. Quase me emocionei com a cena, foi quando no fim vi que era um comercial do...





Agora, negue se a Beleza não tem uma face cruel. Aahhh... meu bom e velho Marx... "o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções"

O Outro

Quatro meses depois da viagem de Alexis Tocqueville, um outro aristocrata europeu visitou Vanuatu. A 14 de setembro de 1833 um pequeno barco começou uma viagem rio Missouri acima, com o objetivo de coletar amostras de flores e plantas. No barco estavam o pintor suiço Karl Bodmer e o príncipe Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, além de outros naturalistas alemães. Enquanto e expedição concentrava-se na Fauna, na Flora e nos elemento botânicos, Maximiliano ia além. Anotava em seu pequeno diário os hábitos dos nativos. Antes da expedição em questão já visitara Blackfoot em Fort McKenzie, e anotara que enquanto no Forte, qualquer caravana forasteira que se aproximasse era recebida a tiros de canhões, primeiro, antes de ser identificada, os Blackfoot exibiam faixas coloridas, cavalos pastavam, cachorros circulavam livremente e até mesmo crianças corriam e alegre confusão de boas-vindas. Sintomático...

Curioso  notar que antes de pousar em Vanuatu, Maximiliano, que lutara nas guerras napoleônicas, visitou o Brasil e escreveu o Viagem ao Brasil, um dos livros de viagem mais importantes do século XIX. Os críticos diziam que a qualidade dos desenhos de Frederico Sellow, não se comparavam à do jovem Karl Bodmer, que acompanhou  Maximiliano na viagem a Vanuatu. Afinal, Bodmer, numa era onde não havia ainda a fotografia, retratou os Blackfoot, Crow, Osage e os Sioux em riqueza de detalhes. Os desenhos podem ser vistos no original no Joslyn Art Museum in Omaha, intituição que inclui praticamente toda a coleção de Maximiliano-Bodmer. Pesquisadores dessa instituição traduziram, anotaram e publicaram recentemente os três volumes de seus cadernos de viagem.

Dez anos depois, eu me pergunto, pra quê?

Tocqueville partira, Maximiliano chegara. Ambos permaneceram no pensamento americano com diferentes graus de penetração. Um fala de uma instituição que ainda existe, a Democracia. Outro, fala de uma cultura praticamente extinta. Sintomático? Eu diria somático.

Primeiro por que a associação do universo americano com a natureza e o primitivismo, não passa de balela depois do século XX, pois ao mesmo tempo em que desprezam a identidade com o mundo antigo da história e da cultura, fortalecem valores que nem de longe superam a razão da História.

Dez anos. Dez anos poderia ser objeto de uma pequena efeméride. Dez anos depois de chegar a um país, poderia ser uma ótima ocasião para me reaproximar ainda mais da cultura que me cerca e que de certa forma não posso deixar de admirar com estranhamento, e tirar de uma vez por todas algumas pechas que recaem sobre ela. Poderia. Mas chego a conclusão que a reaproximação não é nada fácil.

Em dez anos, uma das experiências mais traumáticas para mim, aqui, aconteceu na semana passada. Não fui preso (isso nunca aconteceu), não ingressei num E.R. (isso já aconteceu), não fui agredido verbalmente no Metro por ser estrangeiro (isso já aconteceu duas vezes),  não tive visto negado pelas autoridades imigratórias – aliás é sempre confortável ser ignorado por essa intituição – (já tentaram mais de 4 vezes), mantenho minha ficha limpa no IRS e no credit bureau,  não tive a casa queimada tendo que barganhar com seguradoras, não nada de humilhante nesse sentido. E na verdade, o que no princípio parece humilhante pela surpresa do absurdo, depois de dez anos deixa de ser, seja pela desimportância do ocorrido perdido no tempo, seja pela maturidade que supera a irrelevância das pequenas coisas.

No decorrer de dez anos, confesso que sempre tive um certo medo de encontrar aqueles personagens neuróticos e violentos do Cormac McCarthy. E olhe que eu me sentia relativamente a salvo, pois vivo dentro da Beltway. Mas na semana passada, finalmente o encontrei-me numa bizarra situação.

O lugar onde tive a traumática experiência de encontrar um desses seres, foi exatamente no Jardim de Infância onde meu filho de apenas cinco anos estudará: Rosemary Hills Primary School. O “open house” para pais interessados em conhecer as instalações, ocorreu na semana passada. Antes de mais nada, devo dizer que  fiquei impressionado com o guia dado por uma professora e pelo Principal da escola Mister Viggiano. Instalações, espaço, dedicação dos professores, a quantidade de atividades extra-curriculares (aulas de música, idiomas, informática...), a enorme biblioteca, a sala de computadores com um computador para cada criança, um ginásio para atividades esportivas com uma quadra de futebol de salão e duas quadras de basquete, um anfiteatro para pequenas peças...enfim. As salas de aula espaçosas era dotadas de cadeirinhas a meia altura, mesinhas em miniatura, tudo ad hoc para suprir as necessidades da molecada. Comecei a sorrir meio basbaque. Um sorriso sem intenção. Sem causa. Aquelas cadeirinhas, mesinhas, computadores.... confesso, coisas que eu nunca imaginei que existissem para um Kindergarten.

Somente um adendo, mudamos para esse bairro, por que queria que meu filho tivesse acesso a educação pública e de qualidade. E como aqui uma escola atende a alunos de apenas uma determinada região,  essa escola em particular,  atende a crianças de três grande àreas geográficas: a área onde vivemos muito próxima a escola, habitada por funcionários públicos em sua maioria, uma área mais ao norte, onde a concentração de população latina cresce a cada ano, e uma área mais a oeste chamada Chevy Chase, onde se concentra uma classe média de alto poder aquisitivo.

No guia dado pela escola havia quatro casais de pais. Dois casais americanos e dois casais estrangeiros, nos quais, eu e minha digníssima consorte estávamos incluídos. O outro casal estrangeiro hablava espaniol e eu naturalmente parlava o portuguêis. Uma das professoras e o Principal da escola nos acompanhavam na visita guiada, respondendo as nossas dúvidas.

Um dos casais WASP estava vestido com a dignidade peculiar da classe média alta. A esposa, visivelmenente Do Lar, usava perfume bom apesar de vestir calça jeans, e trazia uma pranchetinha com papéis impressos, cheios de perguntas capiciosas para o diretor. O marido, de terno e gravata, fazia menos perguntas estúpidas que sua patroa. De qualquer modo, eu estava diante de um Davos Man de classe média típico, desses que enchem de regozijo o Hudson Institute, e que na certa torce para um time de baseball e de Footbal, que tem no mínimo um College, e que deve ter uma família típicamente unida, composta por sua patroa, dois filhos, e um cachorro, e que deve nos fins de semana, metê-los todos em sua SUV para fazer compras no Cotsco.

Naquelas circunstâncias era difícil um casal não perceber a sutil presença dos outros casais de pais. Difícil não escutar uma conversa furtiva dos consortes, em seus respectivos idiomas. Mas eis que pelas tantas, a mãe dos filhos do pai engravatado pergunta se poderia entrar no ônibus escolar com seu filho, pois tinha medo que o menino sofresse bullying. Pensei automaticamente, o filho desse casal deve ser um otário, mas compreendi a angústia dos pais, pois eu também tenho um filho, e pai é pai. O diretor diz que não é possivel.
O pai, logo em seguida, ainda insistindo no tema sobre o medo da violência, pergunta se o Kindergarten teria horas de recreio separadas – mas ele usa estranhamente a palavra segregate, para significar separate -  do First and Second Grade. O diretor diz que sim, que eles separam as horas de recreio, mas por motivos operacionais já que são oito turmas de Kindergarten e atender a todos ao mesmo tempo seria impossível.

Nesse momento, o Orientador Educacional passa por nós. Um negão simpaticíssimo, calmo, ponderado, um pouco odeso, de fala mansa, se apresenta. O pai engravatado solta um comentário do tipo.... você pode intimidar as crianças, você sabe disso? Eu... confesso... preferi acreditar que o cometário se referia à altura do docente. Mas o problema é que a tal questão sobre a hermenêutica da diferença entre separar e segregar,  não me saía da cabeça. Como um americano nativo, aparentemente de bom nível cultural não saberá diferenciá-las? Ainda mais quando a professora percebeu algo estranho no cometário e remendou a situação enfatizando que realmente o Orientador Educacional era muito grande e que era até engraçado vê-lo levar algum aluno pela mão para a secretaria, pelos corredores da escola.

Fim? Não. Tem mais. A mãe pergunta então se seu filho poderia ficar numa turma onde só houvesse crianças de Chevy Chase – ou seja, de sua mesma classe social, ou nível, ou status, ou casta, ou por aí vai. O diretor disse que aquilo ela absolutamente impossível. Eu achei a gota d’água. E então, o pai faz a pergunta crucial que me tiraria do sério e me revelaria claramente que o ideal culturalista e a própria idéia de humanidade, e a própria humanidade perdera o jogo para a barbárie e não se dera conta.

O personagem de Cormac McCarthy pergunta para o diretor sobre a hipótese de que se seu filho presenciasse o diálogo entre duas crianças estrangeiras, conversando num idioma strange, a professora poderia tirá-lo dessa turma e colocá-lo em outra. Pois é, eu tampouco acreditei no que meus ouvidos acabavam de ouvir. Acho que nem a sub-diretora, pois a resposta dela foi exemplar. Disse ela, sem entar em detalhes,  que a escola já tivera nos anos de 1960, uma história de segragação e que era missão de todos, professores e comunidade, evitar este estigma a todo o custo, para que essa história não se repetisse.

Eu respirei fundo e fiz uma pergunta para a sub-diretora, olhando para o indivíduo -  que creio eu me ignorava. Perguntei, com a  falsa pretensão de quebrar o clima pesado deixado pela pergunta do infeliz,  qual era a meta para uma criança ao terminar o Jardim de Infância. Ela respondeu que a criança deve já ser apta a formar e ler palavras e pequenas frases simples. Ainda olhando para o indivíduo, exagerando uma falsa frustração, assumi um ar calhorda, disse dramatizando meu tom confessional que eu estava fazendo tudo errado  - eu chegava a balançar a cabeça negativamente, como se nunca tivesse ouvido falar no Piaget- com educação de meu filho. "Mas... mas... é que eu lhe ensino todos os dias a escrever 3 palavras, e ele até já forma algumas frases."

Eu exagerei sobre as pequenas frases, confesso. Mas eu disse aquilo para mostrar àquele pústula como se tratam de questões universais e dilemas do ser humano, em níveis e sutilezas que suspeito ele nunca conseguirá alcançar. Talvez, ele nem tenha entendido minha ironia – pois creio eu, me ignorava tanto quanto Tocqueville ignorou a devoção etnográfica a que se dedicou Maximiliano.

The Magician


O filme se passa no século XIX, e a estória é baseada num conto de G. K. Chesterton – Chesterton aliás que exerceu grande influência em Jorge Luis Borges e Gustavo Corção, que em Conversa em Sol Menor, cita o homem do nada pelos menos umas dezoite vezes e meia.

O filme é posterior ao Sétimo Selo e ao Wild Strawberries, dois clássicos do diretor. Em The Magician, Bergman oferece as peculiaridades psicológicas, as anormalidades, a contemplação mística que fazem dos hipnotizadores figuras quase transcendentais nos circos de subúrbio. E por falar em magia, Bergman podia não entender bem dessa coisa do Sobrenatural de Almeida, mas era mestre de imagem, montagem e roteiro,  para saber bem que não podia revelar completamente os truques dos mágico protagonista até quase o final do filme. Não chega a ser um filme bom, pois os personagens carregam um certo ar de caricatura e talvez isso fosse o que Bergman queria ao ironizar um pouco a estória de Chesterton.

O filme começa com uma carruagem atravessando uma floresta coberta de névoa. Dentro viaja uma trupe de artistas mambembes liderada pelo Dr. Vogler, um hipnotizador, sua mulher que está vestida de homem, e com ele uma anciã especialista em poções mágicas, e um bufão que se diz porta-voz da trupe, mas que volta e meia mete os pés pelas mãos.

No meio do caminho Vogler recolhe um velho ator bêbado, que está quase morrendo. No meio da viagem o ator morre, mas sem antes revelar a Vogler todos os detalhes físicos do que ele percebe da morte. O fato passa-se quase desapercebido para os demais da trupe, mas nas cenas seguites, Vogler vê o fantasma do homem, e seus significados em todo o canto. Principalmente quando o grupo é obrigado a fazer uma apresentação especial na residência de um nobre, onde estão presentes a esposa do nobre, um militar e um médico, Dr. Vergerus, o qual afirma, os poderes do mágico não passarem de charlatanice. São obrigados a passar a noite da mansão, onde reina uma lobriga atmosfera. Na cozinha, após uma farta ceia, passam-se coisas estranhas. Quem sabe se pelo vinho ou por qualquer outra coisa, um dos empregados tem uma visão do demônio. A velha bruxa põe uma das ajudantes da cozinheira para dormir e tudo vai se passando como se estivesse envolto numa aura de magia.

Nos seus aposentos, o mágico, enquanto prepara seus equipamentos para a apresentação do dia seguinte, é surpreendido pela esposa do Nobre que entra furtivamente, cheia de decotes, com aquela conversinha mole de que se sente só, de que o marido não lhe dá atenção, de que tinha perdido um filho, e por aí vai. A ajudante do mágico, até então, sempre vestida de homem, se retira com um olhar irônico, assim que a nobre entra.


O grande dia chega e o que seria uma simples apresentação mambembe, se torna uma pequena tragédia pois Vogler é estrangulado pelo criador de cavalos Antonsson, que apavorado com os poderes hipnóticos de Vogler, atenta contra o mágico.


O corpo de Vogler é então levado para o sótão da casa e lá Dr. Vergerus começa uma necrópsia.....


Esse é um filme que de alguma maneira põe em jogo a relação entre o artista incompreendido e seu público. Todos que travam contato com Vogler tem uma impressão distinta dele - talvez ajudados por sua suposta mudez, tema aliás que Bergman abordaria também em Persona, retratando a crise criativa da atriz voilá Elisabet Vogler, Vogler! Vogler? Vogler..., e sua relação com a enfermeira Alma.

O moribundo no meio da estrada, é o primeiro a perceber a falsa barba do hipnotizador, duvidando de seus poderes. Já a esposa do nobre o vê como uma entidade mágica. O médico prova cientificamente que Vogler é um charlatão, enfim todos tem uma impressão distinta. Mas isso não explica exatamente por que ele é ora invejado, ora humilhado. Fato é que um pequeno monólogo que ocorre na cozinha, dito por Antonsson... “People like that should be flogged,” expressa bem a incompreensão que cerca o artista. Ottilia Egerman, a esposa do nobre, quando chega ao quarto de Vogler, diz que todos o odeiam por que não o compreendem. Ela o compreende – mas com aquelas segundas intenções supra-citadas.

No fundo, esse pequeno detalhe dito por Ottilia nos remete a um outro tema fundamental da natureza humana. Não, não. Não falo da Vontade de Poder, na qual, de tanto pensar, Nietszche quase destrambelhou. Falo da incompreensão geral sobre a vontade de não ter poder algum, de manter-se crítico e independente. Vogler, o artista, apesar de enigmático e canastrão – e muito canastrão -, assumia essa ausência de vontade, que talvez seja mais ofensiva que a própria Vontade de Poder, frente aos poderes constituidos, os quais no filme se expressam pela Ciêcia que respalda os poderes do Estado - a nobreza e os militares.

Mostrar isso a um sub-chefe, ao redor da mesa de reuniões, em que todos só pensam competitivamente em mostrar suas qualidades extraordinárias para o chefe, é quase que inacreditável. Num ambiente de trabalho muito competitivo isso é quase ofensivo. E pior, suspeito. Pois no momento em que se mostra esse ar displicente, passa-se a levantar as famosas suspeitas conspiratórias... “estará esse ser vil querendo meu posto?”  Nesse meio tempo ainda há as coisas não ditas. Você pode ser considerado um hipócrita e manipulador – mas obviamente ninguém dira isso na sua cara, mas fará chegar aos ouvidos de seu chefe. Seu chefão pode telefonar como quem não quer nada, e cobrar aquela crítica construtiva em bona fide, não só cobrá-la, ameaça-lo por tê-la feito assim em público, e desligar o telefone na sua cara. E no dia seguite, passar por você e lhe dar Good Morning, como se nada tivesse acontecido. Daí para ser encarado como pessoa pouco confiável é um pulinho quase imperceptível quanto a primeira troca de olhares entre Vogler e Dr. Vergerus.

Madama Butterfly

A 17 de Fevereiro, no ano de 1904, no teatro La Scala de Milão, era encenada pela primeira vez a Madama Butterfly. Portanto, lá se vão 107 anos. Na época Puccini fora acusado de repetitivo, já que Cio-Cio-San guarda alguns traços com a Mimi de La Bohème. E pelo que tudo indica parece mesmo que era cópia, pois pelo que andei lendo – minha fonte principal para temas de opera é o velho e mal traduzido História das Grande Operas de Ernest Newman - Puccini, ao longo da vida, fez inúmeras modificações no enredo. Dizem até as más línguas, nas interenétis da vida, que a ópera original era ruim mesmo, mas como não vi o dilúvio, quem sou eu para duvidar dos sobreviventes?

Bom, assim como LaBohème, a nossa Madama é uma ópera popular. Mas nem por isso deixa de ser um ótimo entretenimento para terça-feira à noite, pois a obra combina todos os bons elementos que uma ópera deve ter. Exótica, romântica e trágica,  a estória, base do libreto, foi tirada do conto de John Luther Long e narra as desventuras de uma gueixa japonesa, Cio-Cio-San, que casa com o oficial da marinha americana B.F Pinkerton. Casamento estranhíssimo, ou seja, mais estranho que os normais. Neste, o americano faz um acordo esquisitíssimo onde ele se casa com a moça por 999 anos, com o direito a revogar o contrato a cada mês. Casamento, diga-se de passagem, nulo perante a lei americana. O mais absurdo é que ele tem direito a se casar com a menina de 15 anos ao comprar um imóvel perto do porto de Nagasaki, e a jovem vem como ‘brinde’ intermediado pelo agente imobiliário Goro. Desconhecendo boa parte  dos acordos escusos triangulados por Pinkerton, Goro e Sharpless – Cônsul americano na região – e para provar seu amor por Pinkerton, Cio-Cio-San rompe com a família, converte-se ao cristianismo, e passa a desprezar  a tradição japonesa. Pinkerton por sua vez, ainda no primeiro ato, mostra sua natureza calhorda, expulsando a família da consorte, que não aprova o casamento, admitindo para Sharpless que pretende voltar aos Estados Unidos e arranjar uma esposa americana.

Até o fim do primeiro ato,  percebe-se que Cio-Cio-San, sempre acompanhada pela fiel criada Suzuki, terminou o primeiro ato em maus lençóis literalmente. A gueixa, que virara cristã na esperança de agradar o marido, que simplesmente ignorava ou desprezava – a linha é tênue – sua crença no budismo, passa a ser desprezada pela família, e além de abandonada pelo marido, e tem um filho ao longo da ópera. Ou seja, sendo uma ex-gueixa que decide endireitar na vida, mãe-solteira e apóstata, fica difícil acreditar em que a relação pode dar certo, ainda mais pelo fato de que Pinkerton dá provas mais que suficientes, em suas conversas com o Cônsul americano, Sharpless, de sua mais completa cafagestagem.

No segundo ato, já se passara 3 anos desde a partida de Pinkerton. Neste ato é quando Puccini nos dá praticamente a perspectiva da fibra e do caráter da moça. Butterfly tem um filho de 3 anos, fruto da relação com Pinkerton. Ou seja, como já disse,  ex-geixa, apóstata, renegada pela família e posteriormente pelo marido, e ainda mãe-solteira, o futuro da moça parece não ser nada estável. Com crise de consciência, ou almejando talvez mais um bom negócio, Goro e Sharpless  visitam a moça. Goro, trazendo o principe Yamadori, com a esperança de que ela se case com ele e acabe com aquela angústia da espera por algo que pode nunca alcançar. E Sharpless a visita de posse de uma carta de Pinkerton. Tal a emoção da moça ao escutar a leitura da carta, interrompendo-o a todo o momento, que Sharpless não consegue terminar a carta com todos os trágicos detalhes do eventual retorno do amigo marujo a Nagasaki. Remoído pelo remorso, Sharpless interrompe a leitura, sofrendo antecipadamente pelo destino de Cio-Cio-San. Nesse momento a ópera dá uma virada, em termos de enredo e música.  Nesse contexto é que  uma das  mais belas árias de toda a ópera é executada, Un bel dì vedremo, quando ela, canta sua esperança no retorno de Pinkerton.  Aliás entre o segundo e o terceiro ato há também o dueto Sccuoti quella fronda di ciliegio, cantado por Cio-Cio-San e sua empregada e amiga Suzuki, enaquanto decoram a casa com flores de cerejeiras – muito bonito -; sem esquecer do coro de sussurros Coro a bocca chiusa, que vela a noite em claro de Cio-Cio-San ao escutar os canhões do navio de Pinkerton ao entrar na baía de Nagasaki.

Já no terceiro ato, Pinkerton aparece com a sua mulher americana, e leva o seu filho sob custódia para os Estados Unidos enquanto Cio-Cio-San se  desespera. Ana Maria Martínez, empresta sua voz vibrante e dramática a Cio-Cio-San, enquanto o brasileiro Thiago Arancam interpreta Pinkerton. A regência é de Plácido Domingos, e uma outra novidade da Vanuatu National Opera é a inclusão de um outro brasileiro, Ron Daniels, que estréia como diretor da Companhia. Daniel tem uma longa história de montagens no Brasil e na Inglaterra. No Brasil foi um dos fundadores, junto a Jose Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina em São Paulo, e porteriormente trabalhou por anos em Londres na Royal Shakespeare Company.

Enfim, noite de terça-feira, nada de melhor pra fazer, duas opções: ligar a televisão no ABC, ou, Madama Butterfly.