Quatro meses depois da viagem de Alexis Tocqueville, um outro aristocrata europeu visitou Vanuatu. A 14 de setembro de 1833 um pequeno barco começou uma viagem rio Missouri acima, com o objetivo de coletar amostras de flores e plantas. No barco estavam o pintor suiço Karl Bodmer e o príncipe Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, além de outros naturalistas alemães. Enquanto e expedição concentrava-se na Fauna, na Flora e nos elemento botânicos, Maximiliano ia além. Anotava em seu pequeno diário os hábitos dos nativos. Antes da expedição em questão já visitara Blackfoot em Fort McKenzie, e anotara que enquanto no Forte, qualquer caravana forasteira que se aproximasse era recebida a tiros de canhões, primeiro, antes de ser identificada, os Blackfoot exibiam faixas coloridas, cavalos pastavam, cachorros circulavam livremente e até mesmo crianças corriam e alegre confusão de boas-vindas. Sintomático...
Curioso notar que antes de pousar em Vanuatu, Maximiliano, que lutara nas guerras napoleônicas, visitou o Brasil e escreveu o Viagem ao Brasil, um dos livros de viagem mais importantes do século XIX. Os críticos diziam que a qualidade dos desenhos de Frederico Sellow, não se comparavam à do jovem Karl Bodmer, que acompanhou Maximiliano na viagem a Vanuatu. Afinal, Bodmer, numa era onde não havia ainda a fotografia, retratou os Blackfoot, Crow, Osage e os Sioux em riqueza de detalhes. Os desenhos podem ser vistos no original no Joslyn Art Museum in Omaha, intituição que inclui praticamente toda a coleção de Maximiliano-Bodmer. Pesquisadores dessa instituição traduziram, anotaram e publicaram recentemente os três volumes de seus cadernos de viagem.
Dez anos depois, eu me pergunto, pra quê?
Tocqueville partira, Maximiliano chegara. Ambos permaneceram no pensamento americano com diferentes graus de penetração. Um fala de uma instituição que ainda existe, a Democracia. Outro, fala de uma cultura praticamente extinta. Sintomático? Eu diria somático.
Primeiro por que a associação do universo americano com a natureza e o primitivismo, não passa de balela depois do século XX, pois ao mesmo tempo em que desprezam a identidade com o mundo antigo da história e da cultura, fortalecem valores que nem de longe superam a razão da História.
Dez anos. Dez anos poderia ser objeto de uma pequena efeméride. Dez anos depois de chegar a um país, poderia ser uma ótima ocasião para me reaproximar ainda mais da cultura que me cerca e que de certa forma não posso deixar de admirar com estranhamento, e tirar de uma vez por todas algumas pechas que recaem sobre ela. Poderia. Mas chego a conclusão que a reaproximação não é nada fácil.
Em dez anos, uma das experiências mais traumáticas para mim, aqui, aconteceu na semana passada. Não fui preso (isso nunca aconteceu), não ingressei num E.R. (isso já aconteceu), não fui agredido verbalmente no Metro por ser estrangeiro (isso já aconteceu duas vezes), não tive visto negado pelas autoridades imigratórias – aliás é sempre confortável ser ignorado por essa intituição – (já tentaram mais de 4 vezes), mantenho minha ficha limpa no IRS e no credit bureau, não tive a casa queimada tendo que barganhar com seguradoras, não nada de humilhante nesse sentido. E na verdade, o que no princípio parece humilhante pela surpresa do absurdo, depois de dez anos deixa de ser, seja pela desimportância do ocorrido perdido no tempo, seja pela maturidade que supera a irrelevância das pequenas coisas.
No decorrer de dez anos, confesso que sempre tive um certo medo de encontrar aqueles personagens neuróticos e violentos do Cormac McCarthy. E olhe que eu me sentia relativamente a salvo, pois vivo dentro da Beltway. Mas na semana passada, finalmente o encontrei-me numa bizarra situação.
O lugar onde tive a traumática experiência de encontrar um desses seres, foi exatamente no Jardim de Infância onde meu filho de apenas cinco anos estudará: Rosemary Hills Primary School. O “open house” para pais interessados em conhecer as instalações, ocorreu na semana passada. Antes de mais nada, devo dizer que fiquei impressionado com o guia dado por uma professora e pelo Principal da escola Mister Viggiano. Instalações, espaço, dedicação dos professores, a quantidade de atividades extra-curriculares (aulas de música, idiomas, informática...), a enorme biblioteca, a sala de computadores com um computador para cada criança, um ginásio para atividades esportivas com uma quadra de futebol de salão e duas quadras de basquete, um anfiteatro para pequenas peças...enfim. As salas de aula espaçosas era dotadas de cadeirinhas a meia altura, mesinhas em miniatura, tudo ad hoc para suprir as necessidades da molecada. Comecei a sorrir meio basbaque. Um sorriso sem intenção. Sem causa. Aquelas cadeirinhas, mesinhas, computadores.... confesso, coisas que eu nunca imaginei que existissem para um Kindergarten.
Somente um adendo, mudamos para esse bairro, por que queria que meu filho tivesse acesso a educação pública e de qualidade. E como aqui uma escola atende a alunos de apenas uma determinada região, essa escola em particular, atende a crianças de três grande àreas geográficas: a área onde vivemos muito próxima a escola, habitada por funcionários públicos em sua maioria, uma área mais ao norte, onde a concentração de população latina cresce a cada ano, e uma área mais a oeste chamada Chevy Chase, onde se concentra uma classe média de alto poder aquisitivo.
No guia dado pela escola havia quatro casais de pais. Dois casais americanos e dois casais estrangeiros, nos quais, eu e minha digníssima consorte estávamos incluídos. O outro casal estrangeiro hablava espaniol e eu naturalmente parlava o portuguêis. Uma das professoras e o Principal da escola nos acompanhavam na visita guiada, respondendo as nossas dúvidas.
Um dos casais WASP estava vestido com a dignidade peculiar da classe média alta. A esposa, visivelmenente Do Lar, usava perfume bom apesar de vestir calça jeans, e trazia uma pranchetinha com papéis impressos, cheios de perguntas capiciosas para o diretor. O marido, de terno e gravata, fazia menos perguntas estúpidas que sua patroa. De qualquer modo, eu estava diante de um Davos Man de classe média típico, desses que enchem de regozijo o Hudson Institute, e que na certa torce para um time de baseball e de Footbal, que tem no mínimo um College, e que deve ter uma família típicamente unida, composta por sua patroa, dois filhos, e um cachorro, e que deve nos fins de semana, metê-los todos em sua SUV para fazer compras no Cotsco.
Naquelas circunstâncias era difícil um casal não perceber a sutil presença dos outros casais de pais. Difícil não escutar uma conversa furtiva dos consortes, em seus respectivos idiomas. Mas eis que pelas tantas, a mãe dos filhos do pai engravatado pergunta se poderia entrar no ônibus escolar com seu filho, pois tinha medo que o menino sofresse bullying. Pensei automaticamente, o filho desse casal deve ser um otário, mas compreendi a angústia dos pais, pois eu também tenho um filho, e pai é pai. O diretor diz que não é possivel.
O pai, logo em seguida, ainda insistindo no tema sobre o medo da violência, pergunta se o Kindergarten teria horas de recreio separadas – mas ele usa estranhamente a palavra segregate, para significar separate - do First and Second Grade. O diretor diz que sim, que eles separam as horas de recreio, mas por motivos operacionais já que são oito turmas de Kindergarten e atender a todos ao mesmo tempo seria impossível.
Nesse momento, o Orientador Educacional passa por nós. Um negão simpaticíssimo, calmo, ponderado, um pouco odeso, de fala mansa, se apresenta. O pai engravatado solta um comentário do tipo.... você pode intimidar as crianças, você sabe disso? Eu... confesso... preferi acreditar que o cometário se referia à altura do docente. Mas o problema é que a tal questão sobre a hermenêutica da diferença entre separar e segregar, não me saía da cabeça. Como um americano nativo, aparentemente de bom nível cultural não saberá diferenciá-las? Ainda mais quando a professora percebeu algo estranho no cometário e remendou a situação enfatizando que realmente o Orientador Educacional era muito grande e que era até engraçado vê-lo levar algum aluno pela mão para a secretaria, pelos corredores da escola.
Fim? Não. Tem mais. A mãe pergunta então se seu filho poderia ficar numa turma onde só houvesse crianças de Chevy Chase – ou seja, de sua mesma classe social, ou nível, ou status, ou casta, ou por aí vai. O diretor disse que aquilo ela absolutamente impossível. Eu achei a gota d’água. E então, o pai faz a pergunta crucial que me tiraria do sério e me revelaria claramente que o ideal culturalista e a própria idéia de humanidade, e a própria humanidade perdera o jogo para a barbárie e não se dera conta.
O personagem de Cormac McCarthy pergunta para o diretor sobre a hipótese de que se seu filho presenciasse o diálogo entre duas crianças estrangeiras, conversando num idioma strange, a professora poderia tirá-lo dessa turma e colocá-lo em outra. Pois é, eu tampouco acreditei no que meus ouvidos acabavam de ouvir. Acho que nem a sub-diretora, pois a resposta dela foi exemplar. Disse ela, sem entar em detalhes, que a escola já tivera nos anos de 1960, uma história de segragação e que era missão de todos, professores e comunidade, evitar este estigma a todo o custo, para que essa história não se repetisse.
Eu respirei fundo e fiz uma pergunta para a sub-diretora, olhando para o indivíduo - que creio eu me ignorava. Perguntei, com a falsa pretensão de quebrar o clima pesado deixado pela pergunta do infeliz, qual era a meta para uma criança ao terminar o Jardim de Infância. Ela respondeu que a criança deve já ser apta a formar e ler palavras e pequenas frases simples. Ainda olhando para o indivíduo, exagerando uma falsa frustração, assumi um ar calhorda, disse dramatizando meu tom confessional que eu estava fazendo tudo errado - eu chegava a balançar a cabeça negativamente, como se nunca tivesse ouvido falar no Piaget- com educação de meu filho. "Mas... mas... é que eu lhe ensino todos os dias a escrever 3 palavras, e ele até já forma algumas frases."
Eu exagerei sobre as pequenas frases, confesso. Mas eu disse aquilo para mostrar àquele pústula como se tratam de questões universais e dilemas do ser humano, em níveis e sutilezas que suspeito ele nunca conseguirá alcançar. Talvez, ele nem tenha entendido minha ironia – pois creio eu, me ignorava tanto quanto Tocqueville ignorou a devoção etnográfica a que se dedicou Maximiliano.
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