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Náufragos do escolho

Náufragos do escolho



 

 

RESENHA

Rogido, Francisco. Náufragos do escolho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023. 192 pp.

 

Há uma novidade de destaque no díspar universo da literatura brasileira contemporânea. A capa neo-surrealista deste livro de contos – tão bela quanto sinistra – tem um piano de calda pairando nas nuvens sobre uma obscura cena de cidade com um cinema ao canto. As pernas do instrumento estão derretendo, e sobre ele se mescla uma imagem de caveiras e bebês mergulhando de cabeça para baixo numa piscina que cai para dentro do piano. A faceta de estranhamento em Náufragos do escolho é reforçada pela epígrafe do volume. Assinada pelo filósofo oitocentista alemão Friedrich Nietzsche, declara: “Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo.”

De fato, pode-se dizer que já no título e subtítulo de seu livro de estreia, Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais), Francisco Rogido revela dois dos elementos essenciais dessa coletânea. Há, pois, uma relativa, mas inegável, estranheza na escolha do termo “escolho.” Vocábulo um tanto raro na linguagem do dia-a-dia no português do Brasil, ele é derivado de scoglio, em italiano, que significa “espinho”, ou, figurativamente, “dificuldade”, “obstáculo”, “perigo” ou “risco” para os barcos no mar.

Também vemos humor no inusitado catálogo de elementos desiguais que descrevem, entre parênteses, o conteúdo da obra. Exatamente quais seriam, por exemplo, os 98 “infernos possíveis” (talvez haja mais que isso), ou os 63 takes cinematográficos dos contos (será que há tantos)? Tais números talvez não importem, na perspectiva subjetiva de quem lê a obra. Com certeza dialogando com a sétima arte – em particular, nas elaboradas semelhanças estruturais, dialogais, rítmicas e visuais entre filme e literatura – os contos de Rogido proporcionam algum lirismo e alguma crença na bondade humana. É o que se percebe no conto “A falta agrava a tristeza da noite”, onde amor e sexo surgem subitamente entre personagens idosos que se (des)conhecem num hospital sob condições extremamente adversas, inclusive a proximidade da morte (159-165).

No todo do volume, entretanto, prevalecem as acentuadas doses de angústia, frustração, pessimismo, violência, horror e dor, efeitos quase sempre atenuados por ironia, humor, poesia, e, às vezes, por um sentimentalismo muito discreto. Um exemplo é “Lá não existem flores” (158). Apesar de ser um dos contos mais curtos da coletânea, de apenas meia-página, sua linguagem veloz nos leva muito longe no sentido de questionar a injustiça e o vazio existencial que assolam as vidas de tantos pessoas sem muito tempo para o lazer ou para o convívio com familiares e amigos, pois se ocupam de longas jornadas diárias de trabalho e vivem em bairros muito afastados, o que exige que acordem bem cedo (pelas quatro da manhã, como no caso do protagonista anônimo). Esse vendedor de flores se entristece por nunca ter sido capaz de participar dos eventos e ambientes alegres e festivos do tipo aonde vão diariamente as flores que vende. Entretanto, o que mais o inquieta não é essa exclusão ou a falta de filhos. É uma “ideia fixa”, que na sua idade avançada o faz questionar: “quem iria levar flores a seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?” (158).

Magistralmente desenvolvidas nos limites e poderes da palavra escrita em seus múltiplos e variantes takes e tons, as narrativas de Rogido tanto nos trazem consternação e vergonha da espécie humana quanto nos induzem ao carinho e à compaixão por centenas de personagens que, na sua maioria, são indivíduos pobres, como operários ou pessoas de classe média baixa, cujas existências, sentimentos mais profundos e visões de mundo pouco aparecem nos romances, revistas ou telenovelas. Na maioria das vezes, eles são os indivíduos (des)retratados nas reportagens de crime nos jornais e telejornais. Com certeza, dezenas dos personagens de Náufragos do escolho sofrem com as limitações e contradições de suas circunstâncias cognitivas, existenciais, intelectuais e socioeconômicas. Como cada um de nós, porém, são todos seres humanos e possuem um enorme potencial para inesperada superação e imprevista conformidade com os nossos próprios escolhos, inclusive aqueles que de repente podem empurrar quaisquer pessoas rumo ao delito, mesquinhez ou maldade, ou engendrar uma lição transformadora de empatia, generosidade, e perdão.

A inclusão de crimes na literatura é prática muito mais antiga, naturalmente, mas não há como não ver semelhanças entre as narrativas de Rogido e a abordagem de temas afins em Machado de Assis, especialmente onde o autor de Dom Casmurro explora os mistérios e defeitos morais da mente humana e as camadas invisíveis, capciosas, ou intersecionais do real. Por outro lado, o macabro e o imponderável no submundo dos contos de Rubem Fonseca, a linguagem concisa e popular em Dalton Trevisan, assim como o humor sardônico, sutil e sofisticado em Luis Fernando Verissimo, também têm eco em Rogido.

Em Náufragos do escolho há ainda outras semelhanças com mais vozes de relevo na literatura brasileira. Entre essas marcas, observa-se em Rogido a poesia do cotidiano e das reflexões filosóficas de Ana Cristina Cesar, a coragem estética e a destreza narratológica de Cassandra Rios ao questionar as sombras e os mitos da sexualidade humana (seja ela heteronormativa ou anticonvencional), e a determinação de Márcia Denser para evocar ideologias de gênero e assim contribuir para a emancipação das mulheres. Podemos até mesmo suspeitar da atuação dos princípios conceituais e metodológicos similares aos de Clarice Lispector, aqueles por trás da elaboração e utilização do formato fragmento, que, aliás, nem em Rogido e nem Lispector é exatamente “fragmento”, por se fazer complexo e autossustentável, apesar de seu minimalismo.

Muitas vezes narradas em primeira-pessoa por homens ou mulheres, ou ocasionalmente um animal, mesmo que já defunto, como no desconcertante conto “5x7” (11-14), as histórias de Rogido realmente nos colocam sob a pele de centenas de seres. Eles nos iluminam através das suas perspectivas sobre os desafios do viver e suas necessárias ações práticas, às vezes até mesmo diante de momentos-tabus, como o de quando lidar com o corpo de um (talvez) parente morto. Para ilustrar, vale recordar o comportamento de um cliente de Mateus Araripe, um autodeclarado “esteticista” funerário.

Desde o início do diálogo ligeiro, sem contextualização, que abre o primeiro conto da coletânea, intitulado “Mateus,” perpassamos um estranho humor através de fatos repugnantes e possíveis decisões oportunistas. “O senhor é parente?”, pergunta o esteticista. Evasivo, responde o cliente: “Pode ser” (9). Mateus faz saber: “Vai vazar... [...] Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam” (9). Após os dois acertarem o preço do serviço (800 reais incluindo a maquiagem do defunto, a venda da roupa, do terço, etc.), o cliente não hesita: “Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta” (10). O esteticista se mostra surpreso: “Que é isso, doutor... Que horror... Eu pensei que o senhor...” (10). O cliente não cede: “Pensei... pensei... o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro” (10). Logo arremata: “quem pensa demais acaba se enganando... Não esqueça a aliança, e os dentes de ouro, eu os quero também” (10).

 

Dário Borim Jr.. É tradutor, fotógrafo e professor de Literatura Brasileira na University of Massachusetts Dartmouth. 


JOSE AGRIPPINO DE PAULA

 




Título José Agrippino de Paula 
Dimensões: 9x9cm
Data: Dezembro de 2021
Técnica: Xilogravura


Figura de difícil definição, José Agrippino de Paula e Silva é um desses personagens que passam pelo cenário cultural de um país, sem que se saiba bem se esteve mais perto da margem da genialidade ou da porralouquice completa. Nasceu em 13 de junho de 1937. Como filho típico da classe média paulistana, tinha tudo para dar certo nesses moldes. Filho do advogado Oscavo de Paula e Silva e da professora Claudemira Vasconcelos, viveu seus primeiros anos em Itu, no interior do estado. Retornando para São Paulo apenas em 1942.

José Agrippino fez seus primeiros estudos no Ginásio do estado, no bairro da Lapa, onde a família morava. Formou-se, então, no científico em 1955, e no ano seguinte ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). O pai morre quando Agripino tinha 20 anos. O fato abalou a família profundamente e Agrippino pede uma inexplicável transferência para a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro.
 
No Rio de Janeiro, envolve-se mais profundamente com o pessoal do teatro, mesmo que ainda que em São Paulo já começara uma amizade com o cenógrafo Flávio Império. Na nova faculdade assiste as aulas do recém chegado ao Brasil, diretor italiano Gianni Ratto.  Ratto dividia seu tempo com as aulas de teatro - nas quais Agrippino se engajou - e as montagens teatrais. Quando em 1959, Agrippino adapta romance Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoievski, seu mentor Ratto já trazia na bagagem montagens como Mambembe de Arthur Azevedo, A Pulga Atrás da Orelha de Georges Feydeau e Ilha dos Papagaios de Sérgio Tófano  -  ambos com Fernanda Montenegro no elenco; além de Moratória de Jorge de Andrade.
 
Na montagem de Crime e Castigo, Agrippino interpreta o protagonista Raskólnikov, mas também assina a Direção, Montagem e Cenário, no espetáculo que teve palco no teatro da faculdade, no bairro da Urca. No ano seguinte já formado arquiteto, passa a fazer alguns trabalhos para a televisão, além de iniciar os rascunhos de Lugar Público – livro que seria lançado seis anos depois com a orelha assinada por Carlos Heitor Cony. 
 
Mas a vida adulta de recém formado não foi generosa nos 5 anos seguintes que passou Rio de Janeiro. Retorna para São Paulo em 1965, com uma mão na frente outra atrás, no mesmo ano em que é lançado Lugar Público. Nesse tempo, conhece a coreógrafa Maria Esther Stockler. Mesmo com os apertos da falta de dinheiro, produz incessantemente nesses cinco anos seguintes. Mesmo que a qualidade dessa produção seja duvidosa, entre altos e baixos, Agrippino publica As Nações Unidas em 1966, e no ano seguinte publica um de seus clássicos o romance PanAmérica. Também é dessa época a fundação do Grupo Sonda, um misto de grupo de teatro, dança, meditação e porralouquice que junto a Maria Esther seria o responsável por criar uma órbita de criação constante, doideiras psicodélicas e inovação estética. Ainda nesse período montaram Tarzan Tereceiro Mundo, o Mustang Hibernado. Logo depois o casal se muda para o Rio de Janeiro e começam uma parceria com o grupo de rock Os Mutantes, para a montagem do espetáculo O Planeta dos Mutantes.
 
Os roteiros e enredos, dos livros e dos filmes eram tão loucos que era possível ver o herói dividir a cena com John Wayne e travar duelo de western, fugir do Dops, encontra-se com Che Guevara, dar uma trepada com Marilyn Monroe e até salvar o planeta, que bem podia estar sendo ameaçado por anões verdes que saem do útero da atriz americana. Se você acha que isso é impossível, até no Cinema, você está redondamente enganado/a. Este é o enredo de PanAmérica!
 
Em 1968, Agrippino dirige o filme Hitler Terceiro Mundo, uma obra completamente experimental, quase tão sem nexo, quanto as anteriores. O jovem diretor Jorge Bodanzky, que conhecia Agrippino desde essa época, conta que Agrippino tinhas as idéias, mas não tinha a menor noção técnica para realizar um filme. Mesmo assim, como tinha simpatizado com Agrippino e como já frequentava as discussões filosóficas do Sonda, resolveu ajudá-lo na realização técnica. Bodanzky tinha acabado de voltar da Alemanha onde tinha ido estudar Cinema no Instituto de Cinema Ulm. No retorno, já havia trabalhando com o diretor Antunes Filho no filme Compasso de Espera – que aliás, fora censurado no ano de 1969, sendo liberado apenas 3 anos depois - e na filmagem da peça Balcão, baseada na obra de Jean Genet, com produção de Ruth Escobar.
 
Bodanzky, apesar de figurar nos créditos do filme como Diretor de Fotografia, junto a Maria Esther, foram os grandes responsáveis pela conclusão do filme, que contava com o esforço do pessoal do Grupo Sonda, além de Ruth Escobar, Eugênio Kusnet e Jô Soares, que já fazia sucesso na televisão com Família Trapo. Jorge coletava restos de filmes que não tinham sido utilizados em outras montagens, juntava tudo em sacos pretos e usava-os em sequências curtas na montagem do filme de Agrippino – prática aliás, muito comum no grupo do Cinema Marginal.
 
O resultado, foi um filme esteticamente estranho e aparentemente genial. Com cenas inusitadas, filmadas num necrotério, com mortos reais, ou com um obeso Jô Soares vomitando – um vômito real - num restaurante japonês, depois de tanto comer, o filme torna-se um ícone cult da geração. O filme ainda conta com uma cena onde Hitler dialoga, com um áudio editado ao contrário, como no som de um disco girado no anti-horário, em que críticos a consideram genial – mas que de fato, pode ter sido uma afronta do estúdio de montagem de áudio, por não receber os honorários. Enfim, coisas de Agrippino.
 
Entre 1969 e 1970, o casal ainda produz o espetáculo Rito de Amor Selvagem, mas a coisa muda de figura a partir dos anos de 1970. A essa altura, o casal vivia no bairro de classe media alta de Perdizes, em São Paulo, numa casa imensa. Uma espécie de BBB sem voyeurs, onde rolavam festas psicodélicas. Por conta da Ditadura, ou não, recebia constantes batidas policiais. Na casa vivam Agrippino, Maria Esther e a amiga Maria do Rosário, pivô das brigas constantes do casal. Os amigos dizem que depois dessas invasões policiais Agripino nunca mais foi o mesmo, e que seus primeiros sintomas de esquizofrenia aconteceram após esse episódio dramático. Carlos Heitor Cony, contesta. O escritor afirma que Agrippino já não era um camarada muito bem da bola na época do lançamento de Lugar Público. Fato é que numa dessas festas regadas a doideiras e ácidos, Agrippino ouve uma voz de prisão. Mas nao era dentro de uma viagem. E era real.  No dia seguinte vira capa do jornal Última Hora, numa foto algemado e com olhar de pavor.
 
Maria Esther, dizem, era uma mulher forte e decidida, e assim como Agrippino, teve forte influência sobre os tropicalistas. Caetano Veloso, inclusive, diz em seu livro Verdade Tropical que ela revolucionou seu gestual cênico no palco, chegando a participar de O Cinema Falado. O problema é que a barra pesava por conta da Ditadura, e da presença cada vez mais constante de Maria do Rosário, e eles tiveram que se autoexilar. De repente Maria Esther aparece com um traveler’s check. Agrippino, Esther e o irmão de Esther, o ator José Ramalho, vão embora.
 
Passam a década de 1970 viajando pelo mundo e produzindo pequenos documentários, com uma câmera super-8. Nessa época, o escritor dedica-se ao romance Terracéu, sobre o qual há pouquíssimas informações. Acredita-se inclusive que foi perdido com uma das malas do escritor, numa passagem por Londres. Enfim, coisa de Agrippino. Passaram por Mali, Senegal, Marrocos, filmando coreografias de danças rituais, e tudo que aparecia pela frente.
 
Mas de onde vinha tanto dinheiro, quando, no Brasil, eles não tinham sequer dinheiro para produzir seus filmes experimentais? Simples: Maria Esther, nos anos 1970, além de talentosa coreógrafa, ainda era a herdeira de um poderoso grupo financeiro, o Banco Haspa, instituição que iria falir em 1983, mas que nesta época tinha o todo poderoso Delfim Neto como um dos sócios das contas de poupança. Não se sabe se por medo, ou por uma estratégia da família de mandar aquela turma estranha para longe, antes que aquilo pudesse respingar nos negócios, Maria Esther, o irmão e o companheiro, partem para o Continente Africano, com uma câmera na mão, muitas idéias na cabeça e um generoso cheque de 5 mil dólares.  
 
Retornaram ao Brasil indo morar numa praia hippie na Bahia, fora dos holofotes. Ali, ainda produzem o curta Céu Sobre Água, que foi o último filme do autor, onde Maria Esther aparece em cenas realmente poéticas, boiando grávida na água. Nessa década Agrippino teve duas filhas, uma com Maria Esther (Manhã, sim colocou o nome na filha de Manhã) e outra do relacionamento com justamente Maria do Rosário (Chara, sim Chara, uma analogia ao nome do cigarro de maconha, chamado “charo”). Pelo abuso de drogas ou não, seus sintomas esquizofrênicos foram se agravando, e o casamento acabou pouco tempo depois do nascimento da filha do casal. Cada um foi para seu lado e a menina, ainda pequena foi ser criada pelo irmão de Agrippino.
Em 1979, volta a morar com Claudemira, numa convivência muitíssimo difícil, inclusive com episódios de surtos onde quebrava os objetos da casa e agredia fisicamente a mãe que vem a falecer 1988, depois do relançamento de PanAmérica e de uma mostra de filmes realizados por Agrippino. Ambas, as quais, o escritor não compareceu. Neste mesmo ano foi lançado um documentário extremamente poético chamado Sinfonia PanAmérica. Agrippino já alheio a tudo, morando em Embu, se isolava cada vez mais.
 
Por essas e por outras, importantes escritores como Nelson Oliveira e até mesmo Sérgio Sant’anna reverenciaram e prestaram constantes homenagens à obra Lugar Público e a sua reinvenção da narrativa fragmentada do nouveau roman, pautado no objetivismo e no antipsicologismo dos personagens -  sem aquela narrativa chata que caracteriza o gênero. Sérgio Sant´anna em artigo no Caderno Mais!  do jornal Folha de São Paulo (em fevereiro de 1997) diz literalmente que a literatura de Agrippino é “exasperadamente reiterativa e antipsicológica” e se pergunta: “Subliteratura? Não: superliteratura (a fronteira é tênue, bicho)”
 
Por essas e por outras, em Muito dentro da Estrela Azulada, disco de 1978, Caetano diz indiretamente, claro, que graças a Agrippino, os novos baianos passeiam na garoa paulista e que as Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo de Zumbi, mexem fundo naquilo que acontece no seu coração quando cruza a Ipiranga e a avenida São João. Mais claro que isso, impossível. Ou não.
 
O chamado “guru do Tropicalismo” já estava completamente pancado da cabeça, desde a década de 1980. Diagnosticado com esquizofrenia, se isolou em na cidade de Embu das Artes, distante 22 quilômentros do Centro de São Paulo. A casa não tinha nem rádio nem televisão   - que o escritor quebrou provavelmente numa neura, na época em que a mãe estava viva. O escritor passava boa parte do dia enrolado em trapos e mantas velhas, na varanda de sua casa, olhando para a rua e escrevendo. Recebia pouquíssimas visitas, um ou outro documentarista ou estudante de graduação querendo resgatar algo do buraco negro que se tornou sua cabeça. Escreveu até morrer de infarto, aos 69 anos, em julho de 2007, deixando 173 cadernos numerados, e um romance inédito, chamado Os Favorecidos de Madame Estereofônica. Enfim, coisas do Agrippino.  


OZUALDO CANDEIAS




Título Ozualdo Candeias
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

 

Nasceu em 5 de novembro de 1922, e foi registrado nas cercanias de Cajubi, nos arredores de São José do Rio Preto. Mas não sabe se nasceu em São Paulo, ou se nas cercanias de Campo Grande, a caminho de Cuiabá. Era filho de agricultores, e passou a infância e juventude entre São Paulo e Mato Grosso. Seu pai Antônio Ribeiro Candeias, era imigrante português, que veio com nove anos para o Brasil e foi trabalhar em fazendas no noroeste do estado de São Paulo, próximo a Ribeirão Preto. Homem de educação elementar, o pai, chegou a ter uma pequena frota de taxis e uma pensão para nordestinos que chegavam na cidade.

O filho bandonou a escola ainda no primário e foi trabalhar campo. Na idade do alistamento militar, serviu ao Exército como recruta no Mato Grosso. Depois se mandou para o Rio de Janeiro onde passou pouco tempo.

Dentre os inúmeros trabalhos que teve ao longo da vida, foi office-boy, vendedor de sorvete, lustrador de móveis, trabalhou em fábrica de cama, fábrica de armário, fábrica de bolsas, foi metalúrgico, vendedor de sorvete. Trabalhou também como metalúrgico, operário e funcionário público, chofer de táxi e caminhoneiro. 

Não. Seu nome não é Osvaldo. É Ozualdo, com “Zê” e “U”, no lugar do “Ésse” e do “Vê”. Ozualdo Ribeiro Candeias foi o mito do Cinema Marginal – expressão cunhada pelo jornalista e crítico de cinema Jairo Ferreira. E quem o conheceu, era unânime em afirmar que ele cara meio bruto, quase rude, desses metidos a machão, que fala palavrão e cuspe no chão.  

Casou pela primeira vez no final dos anos 1940, conseguiu um emprego público na prefeitura, como fiscal de obras. Comprou um caminhão e começou a fazer entregas, primeiro em São Paulo, depois Rio de Janeiro e Mato Grosso.

Nessas andanças pelo interior, já com o primeiro filho pequeno, teve uma ideia maluca de comprar uma câmera, pois segundo ele, nos caminhos apareciam muitos discos voadores. Convenceu dois produtores a bancar a maluquice, que naquela época custava caro. Eram filmes reversíveis de trinta metros, e a câmera mais barata era a clássica Keystone de 16mm, comercializada a partir dos anos 1930. Viajava com a câmera dentro do caminhão, pelas estradas do Brasil. O vendedor lhe deu umas noções básicas, mas nesses primeiros meses queimou rolos e rolos de filmes com seu amadorismo. Então, passou a ler tudo que lhe caía nas mãos sobre como começar a usar a tal Keystone. Descobriu o que era um fotômetro, diafragma, montagem de produção. Fez esforços tremendos para ler os catálogos e os mais de vinte livros em inglês e francês, sendo engolido por tudo aquilo.

A mãe, pragmática, nunca foi simpática à carreira de cineasta do filho, tanto que quando ganhou o primeiro prêmio com Cinema, a mãe perguntou “quanto é que te deram?”, ele respondeu “nada”, ela “prêmio sem dinheiro, que diabo é isso?”.

Quando assistiu Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, em 1955, e o bangue-bangue Matar ou Correr, de Carlos Manga, deixou aquela estória fiada de filmar disco voador para trás. E foi fazer Cinema.

Nesse mesmo ano lança o curta-metragem Tambau - Cidade dos Milagres. Filmado em 16mm, já podemos perceber nesse documentário sua atenção dada aos miseráveis e deserdados de toda a sorte, que tentam na figura do padre milagreiro Donizetti, um fio de esperança. Enquanto um narrador irônico fala, o diretor percorre com a câmera o movimentado mercado da fé que funciona fora da igreja, com seus santinhos, revistas contando os milagres, garrafas de água-benta, fitinhas milagrosas.

Ainda com o financiamento do governo do estado de São Paulo, Candeias dirigiu mais dois curtas documentais: Polícia Feminina lançado em 1959 e Ensino Industrial, três anos mais tarde.

Mas foi apenas na década de 1960 que deixou os filmes institucionais, e passou a dar-se a conhecer como um dos pioneiros do cinema marginal nacional.

Em 1963, trabalhou no roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos, junto com José Mojica Marins, o Zé do Caixão. E com quem trabalhou no anos seguinte como assistente de direção em À Meia Noite Levarei Tua Alma, com que trabalhou no ano seguinte, como assistente de direção.

Seu primeiro longa-metragem de ficção, A Margem, de 1967, foi realizado praticamente por conta própria, com evidentes falhas técnicas de sincronização de som, roteiro, e dureza das imagens. Foi um filme de baixíssimo orçamento, como quase tudo que ele realizou e por isso mesmo com as falhas características desse tipo de montagem. Os críticos sempre atribuíram a seus filmes, um certo primitivismo e dureza – aliás, dizem as más línguas, que Ozualdo era sempre num primeiro contato, muito mal humorado e seco.

Entretanto, o filme beira a obra prima, e desde a primeira cena, do barco a remo, atravessando as margens do Rio Tietê, já dialoga com obras como Limite, de Mario Peixoto. É absolutamente impossível, não fazer esse tipo de conexão entre os dois filmes, e portanto, entender com quem e com que tipo de tradição, Ozualdo queria dialogar. O enredo girava em torno a história de duas prostitutas, uma branca e uma negra, um cafetão e um homem com problemas mentais. Ainda que as cenas sejam todas fragmentadas - por conta muitas vezes dos restos de rolos de filmes que não davam para filmar um plano de sequência completo -, A Margem é um filme extremamente coerente e bem contado, toda permeada pela trilha jazzística do grupo Zimbo Trio. 

Ainda em 1974, filma e monta a estória de ZéZero, um agricultor pobre do interior de São Paulo, que vive no campo, trabalha duro e não vê perspectiva em nada. Surge, então, uma mulher fina, bonitona, sedutora, que mostra ao protagonista Zé Necas todas aquelas maravilhas da cidade grande: bilhete de loteria, jornal, cinema, fotos de mulher com biquini, cartela do Baú da Felicidade, e tudo aquilo que é bom, mas que pode ferrar um cara. Ou seja, o protagonista não toma outra decisão que não a errada. Abraça com vontade a idéia de sucesso, glamour, vida social e da grana fácil. E chegando na cidade, obviamente a coisa não é bem como ele pensava.

O filme era de fato subversivo na década de 70, e nunca foi exibido. Não por ter sido censurado, mas pelo fato de Candeias ter-se recusado a exibi-lo à Censura Oficial. Exibir ZéZero era, de fato, contestatório e passível de prisão. O caráter marginal e grotesco do filme fica muito evidente nas últimas cenas.

De tanto apostar, ZéZero, ganha na Loteca  -  espécie de loteria federal do Estado. Recebe o dinheiro e decide voltar para o campo. Quando chega ao seu lugar de origem, descobre que muitos parentes e amigos tinham morrido, não restando quase ninguém. Consternado, o protagonista se pergunta o que faria com tanto dinheiro. Nesse momento aparece antiga mulher do princípio do filme, como que fantasiada com fitas de negativos de filme enrolados por todo o corpo. E diz: “enfia no c…”

Ou seja, se você fosse Ozualdo, faria como ele fez. Nem perderia seu tempo preenchendo os formulários do Ministério da Justiça e Polícia Federal para pedir autorização de exibição, de uma fita que evidentemente seria censurada. Até por que sempre sem dinheiro, sem financiamento, tendo que volta e meia fazer filmes institucionais para sobreviver, até quando fosse possível, Ozualdo, ao logo da década de 1970 partiu para o cinema pornográficos e a pornochanchada, para poder sobreviver.

Ele não se tornou um mito na Boca do Lixo, paulista, onde para o bem e para mal se produziam obras primas e fenomenais porcarias fílmicas, à toa.  Ele tinha um cuidado quase fetichista por cada plano do filme -mesmo nas pornochanchadas. Antes mesmo de mergulhar de cabeça no universo das prostitutas, proxenetas, do sexo explícito, ainda fez montagens excepcionais como uma versão caipira para o Hamlet de Shakespeare, que tinha no papel principal de Hamlet, David Cardoso – ator que estourara no ano anterior como Augusto, no filme A Moreninha.

No filme A Herança, pode-se ver o mesmo cuidado com a expressão caipira brasileira – que passava longe das irrelevâncias caricaturais do cinema de Mazzaropi, porém não sem menos ironia, para o espectador atento. Essa certa nostalgia rural era sincera, mesmo que algumas cenas beirasse o grotesco - como de fato acontece no mundo rural. O filme todo tem pouquíssimos diálogos, recheado de atuações duvidosas dos atores, e cenas extremamente toscas como a cruza de cães, e a famosa cena do monólogo, em que Hamlet dialoga com o crânio de Yorick, o falecido bobo da corte - na versão tubi-ornot-tubi de Orzualdo, o crânio de Yorick dá lugar à cacaça da cabeça de um boi. O filme culmina com uma moda de viola, num circo, onde toda a cidade iria assistir a um espetáculo. Praticamente a única cena em que há áudio com voz, e nesta os cantadores, contratados por Hamlet, desmascaram a suposta farsa do casamento da mãe com o padrasto. O filme ainda tem no papel de Fortinbrás, o ator Agnaldo Rayol! 

Uma coisa há de se admitir. Entre coragem e cara de pau, esse cuidado – ou descuido - para além de estético tinha uma razão. Dizem que pela falta de orçamento, acabava fazendo filmes com restos de fitas, que amigos de outras produtoras passavam para ele. Assim, ia os emendando e formando suas fitas. Nessas condições, ele sabia que os erros eram fatais, e talvez por isso mesmo queria realizar todas as fases do filme, desde a produção e orçamento até a montagem final. Se tornou sobrevivente daquele cinema brasileiro heróico e tosco.

Ozualdo, numa entrevista justificou o filme:

“Eu achava que pegando o Shakespeare e passando para o bang-bang, os produtores, que eu sempre achei uns caras inteligentes, poderiam se interessar por esse tipo de coisa. Era um espetáculo e poderia ser o que também chamam de ‘cultura’. Daí eu fiz uma espécie de adaptação, mas quebrei a cara. Ninguém se interessou. Noventa por cento das pessoas que entendem de Shakespeare e de Hamlet só sabem dizer ‘Ser ou não ser‘. Por causa dessa fita, eu tive de andar me defendendo por que eu estava avacalhando com Shakespeare. Era uma transferência que eu estava fazendo: uma Ofélia poderia ser negra porque seria mais brasileiro. Mas quando eu dizia transferência de valores ou de situação, ninguém entendia”.

Ozualdo, com todo o respeito, meteu seu dedo bem fundo nos filmes eróticos da Boca do Lixo. Consta nos créditos de várias produções como As Mulheres do Sexo Violento (1976), de Francisco Cavalcanti; Agnaldo, perigo a vista (1969), de Reynaldo Paes de Barros; Sinal Vermelho As fêmeas (1972), de Fauzi Mansur; A Noite do desejo (1973), de Fauzi Mansur; Com a cama na cabeça (1973), de Mozael Silveira; Maria sempre Maria (1973), de Eduardo Llorente; dentre muitos outros que pode-se não ter a mínima idéia.

Foi um cineasta que construiu narrativas com baixos orçamentos, com personagens baseados em roteiros, mesmo que pouco elaborados, presentes sua vida cotidiana das ruas, dos  seus habitantes do centro, com suas prostitutas e a arquitetura dos casarões decadentes das imediações do bairro da Luz – entregues a uma imensa cracolândia nos dias atuais.   

Atores esquecidos, diretores, escritores, roteiristas, técnicos, enfim, uma infinidade até de atores e atrizes famosos na televisão brasileira, ainda hoje, participaram dessas produções de baixo custo. Muitos famosos e famosíssimos escondem ou desconversam que passaram pelas telas – e por que não pelas camas -  da Boca do Lixo. Mas isso é outra estória.   

Ozualdo Candeias, não. Literalmente nunca deixou de ser maldito. Sua identidade com essa região era tamanha que, já aposentado, durante os últimos anos de sua vida, era uma figura facilmente vista na adjacências da Estação da Luz, já decadente, e para a qual ele mesmo tinha se mudado para um apartamento na Av. Rio Branco. Era quase onipresente nos botequins, falando de cinema ou qualquer outro assunto. E morou nas proximidades da região até seus últimos dias.

Em 2010 Moura Reis publica uma longa entrevista de Ozualdo Candeias para a Coleção Aplausos Cinema Brasil onde o diretor mostra bem quem era: “Levo uma vidinha meio barata, sem muitas exigências, que dá para ir tocando, quase sem terra. Teto, eu tenho. Comprei esse teto trabalhando em uma fita americana. Não lembro o título nem o nome dos caras que vieram filmar no Brasil e tinham que contratar certo número de técnicos brasileiros. Entrei como câmera, iluminador e outras coisas mais, contratado por dez semanas. Eles foram me pagando por semana e no final juntei um troco, não me lembro se 40 mil ou 60 mil na moeda da época, e comprei um mocó aqui perto, na Rio Branco com Duque de Caxias. Gosto de morar no Centro, que tem uma arquitetura muito bonita. […]E gosto do Centro, daqui da Boca e deste boteco. […] Conheço o Teixeira há muitos anos e venho sempre aqui. Gosto da vizinhança. Converso com as pessoas.” 

Sua biografia conta com 11 filmes como Diretor, 13 filmes que participou como fotógrafo, 6 como produtor, 7 como ator, e um como Assistente de Direção -  justamente com José Mojica Marins. 

Morreu em 2007, às 15 horas de uma quinta-feira, aos 88 anos, vítima de insuficiência respiratória no Hospital Brigadeiro, no bairro Bela Vista, deixando 4  filhos, netos, 3 ex-esposas uma penca ex-mulheres. 


http://revistazingu.blogspot.com/2007/03/doc-filmografia.html


O Declínio Do Império Americano

Um dos personagens de Oscar Wilde – não lembro qual, agora – dizia que só fala mal da sociedade quem não consegue frequentá-la, e acho que esse poderia bem ser o adágio do filme de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano. 

O filme começa com uma entrevista à Rádio CBC da professora de História da Universidade de Montreal, Dominique St. Arnaud, em que conta a Diane sobre seu novo livro, Variações sobre a idéia de felicidade, que discute sua tese: a fixação da sociedade moderna na autoindulgência. 

Na próxima cena, quatro professores universitários conversam animadamente sobre assuntos diversos enquanto preparam um early dinner. Ao mesmo tempo, na academia de ginástica da Universidade, quatro mulheres, incluindo Diane e Dominique, colegas dos professores,  também conversam animadamente sobre os problemas de relacionamento entre homens e mulheres.

 


A partir da metade do filme, as mulheres chegam, e o grupo de amigos inicia um jantar animadíssimo. Todo o filme, extremamente dialógico, gira em torno desses oito professores universitários, Historiadores diga-se de passagem, que num agradável fim de tarde almoçam e conversam sobre seus relacionamentos, o amor, o sexo, as angústias e variações do que seria a tal da Felicidade. 

À medida que o jantar avança, os homens e as mulheres conversam principalmente sobre suas vidas sexuais, com os homens sendo abertos sobre seus adultérios, incluindo Rémy, que é casado com Louise e que já se relacionou com quase todas á mesa. A maioria das mulheres do círculo de amigos já fez sexo com Rémy, embora ele não seja atraente, mas elas escondem isso de Louise para poupar seus sentimentos, afinal todos são mais que amigos, todos pertencem ao mesmo departamento.  

Ainda no ginásio, quando as amigas conversavam, Louise revela que esteve em uma orgia com Rémy, mas acredita que ele geralmente é fiel. Claude é o único amigo homossexual no jantar. Ele também fala abertamente sobre sair com outros homens de maneira imprudente, mas com medo de doenças sexualmente transmissíveis, enquanto secretamente teme estar infectado por AIDS – problema  que ainda assolava a todos na década de 80. Dominique, por sua vez, fala sobre sua teoria que dá conta do declínio da sociedade, com Louise antagonizando-a e  expressando ceticismo. Para contra argumentar contra Louise, Dominique revela que fez sexo com Rémy e seu amigo Pierre, causando um colapso emocional e um mal estar geral no jantar.

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar.

Pela manhã, era como se a noite anterior não tivesse passado de um samba de Paulinho,  um grande pagode na casa do Vavá: “Vi muita nega bonita, fazer partideiro ficar esquecido, mas apesar do ciúme, nenhuma mulher ficou sem o marido”. E Louise se senta ao piano, toca, e todos se abraçam, e os relacionamentos voltaram ao normal, afinal e contas são todos amigos, e acima de tudo, lavou tá novo

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles a liberação sexual, valor moral da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar. No fundo Demy mostra que na prática, a teoria é outra. 

Pessoalmente acho sensacional como Denys Arcand se auto define. Um périmé catholique. Mais interessante, como ele retrata os valores americanos, já que americanos tem um grande preconceito contra os canadenses. Os canadenses não são servis como outros grupos imigrantes, e talvez por isso os americanos os consideram bárbaros caçadores de alces e ursos. Os canadenses por sua vez, não estão nem aí para os americanos. E isso é interessantíssimo quando visto aqui de dentro. Mas no filme Dominique, prevendo um colapso no "Império Americano", baseado na autocomplacência, na condescendência, na tolerância e indulgência consigo,  afirma ironicamente que Quebec, apesar de falar francês e se colocar olimpicamente na periferia, embarca de roldão nessa decadência dos costumes. 

Denys Arcand coloca em xeque os relacionamentos modernos, marcados por problemas amorosos e sexuais. Ele faz um estudo crítico dos anseios e frustrações de uma classe média intelectualizada e escrava dos divãs de analistas. Quatro professores universitários, três deles casados e um gay, preparam um jantar em uma casa de campo. Conversam sobre sexo. Enquanto isso, suas mulheres estão juntas em um clube e, da mesma forma, dividem seus segredos. Quando se encontram no jantar, estão prontos para o embate.

Outro filmaço que preciso rever é o Invasões Bárbaras, 2003, com os mesmo protagonistas, 17 anos depois.


Sam Peckinpah Again!

(Filme e postagem de 2011, mas... me peguei assistindo o Peckinpah again, ontem) 

Western Crepuscular ou Tráiganme la cabeza de Alfredo García 

"El Jefe" é milionário “fazendeiro”,  mejicano e cheio de capangas mejicanos,  descobre que sua filha Teresa está grávida. O cidadão em vez de ficar feliz por ser avô, fica furioso. Primeiro por que por que a criança vai nascer sem pai, segundo por que a menina era virgem – veja bem, estamos falando de caras mexicanos, ano de 1974, com outro diapasão. El Jefe, então, aplica uns safanões na menina para saber quem seria o pai da criança. Entre uma bordoada e outra a moça acaba revelando que o pai é Alfredo Garcia, justamente o homem que El Jefe tinha preparado para ser seu sucessor – ai você pensaria… ahh, Freud explica.

Para lavar a honra tanto da filha como de sua película apassivadora, contrata dois pistoleiros maus e internacionais, que na verdade encontram-se na outra margem do Rio Grande, e oferece 1 milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do tal Alfredo Garcia.

Dois pistoleiros chegam a um bar do baixo meretrício mejicano en Ciudad de Méjico, onde encontram o pianista Bennie, um ex militar americano que vendo a pinta dos pistoleiros se faz de desentendido. Eles oferecem um bom tutu pela informação do paradeiro de Alfredo Garcia, mas querem como prova a cabeça de Garcia. O pianista já andava meio na bronca com Garcia pela folga com a cantora Elita, seu trelêlê oficial,  e fica de dar a resposta aos bandidos. Bennie vai atrás de Garcia e se certifica que ele estivera com Elita. Mas a cantora lhe diz que Garcia foi embora para sua cidade no interior do México, onde sofreu um acidente de carro e morreu. 

Mas é claro (!)  que Bennie não acredita nessa estorinha fiada de Elita.  E no melhor estilo brasileiro compra um terçado e parte com Elita rumo à cidade onde Garcia foi enterrado, para conseguir a prova da morte de Garcia, ou seja, literalmente a cabeça de Alfredo Garcia. 

Mas como isso tudo é uma estória de western pop crepuscular pensada por Peckinpah, o mais gótico dos diretores do gênero, os assassinos não confiam em Bennie e sem ele saber o seguem até a um vilarejo no interior do Méjico, onde então ocorrerá a emboscada e a pendenga semi-final. Afinal, pensa comigo. Por que eles vão pagar ao cara, se pode embolsar a grana e ainda matar o infeliz do Bennie, não é mesmo. Isso é Óbvio. O filme foi um dos mais baratos do Peckinpah, e justiça seja feita, fez milagres. Se o Peckinpah tivesse metade da grana e dos amigos do Tarantino...

Com orçamento enxugadíssimo e um roteiro barato, não deu outra, Bennie encontra a sepultura de Alfredo Garcia e ao tentar desenterrá-lo é atacado pelas costas. Quando desperta, está enterrado. Com muito esforço consegue se desenterrar, mas constada que sua amante, Elita, enterrada ao seu lado está morta.  Bennie ao ver a sepultura de Garcia aberta, constata que o corpo não tinha a cabeça, levada enquanto esteve desacordado e então passa a desconfiar que se os dois assassinos de aluguel o seguiram até aquele fim de mundo, e levaram a cabeça de Alfredo Garcia, por que a cabeça do morto vale muito mais na mão dos sicários que na dele. 

Enfim, depois tremenda troca de tiros, ele recupera a cabeça de Garcia e a coloca num saco com gelo e dirige com a cabeça no banco do lado. 

O monólogo de Bennie com a cabeça morta de Alfredo Garcia é uma cena surreal, mas fantástica. Talvez o ponto alto do filme seja esse convívio de Bennie com a cabeça decepada. 

O filme tem várias reviravoltas. Os matadores Sappensly e Quill acabam fazendo uma emboscada, quando Bennie vai devolver a cabeça à família de Alfredo Garcia. Quill mata toda a familia de Garcia, mas é morto por Bennie. Sappensly, desolado como um matador olhando para seu parceiro morto, diz que não pagará Bennie, e também toma um caroço na cabeça. 

E nesse meio tempo, Bennie continua conversando com a cabeça. Chega ao hotel, lava-a e pretende levá-la ao Jefe, com o pretexto de receber os US$ 10K.  Em meio a mais tiros, Bennie finalmente consegue o endereço do Jefe. 

Consegue chegar justo no dia do batizado do rebento. O Jefe estava até feliz. Bennie se apresenta, entrega a cabeça e relata quantas pessoas morreram por aquela cabeça. Quando o Jefe diz para ele pegar seu dinheiro, jogar a cabeça para os porcos e ir embora, ele lembra que Elita se incluía naquele monte de mortes em vão, e aí é possível ver como o semblante de Warren Oates muda ao constatar que tudo aqui tinha sido em vão. 

Ai meu amigo... acho que não era nem mais o Beniie que estava ali, e sim o Oates, vaqueiro do Kentucky, amigo do Steve McQueen.  Foi tiro pra todo lado. Bennie, enfurecido,  mata um monte de capanga do Jefe. 

A mocinha entra com o filho no colo e pede que mate seu pai. Ele pega a cabeça e vai em direção a porteira da fazenda levando o Jefe, junto a Teresa. 

Chegando na porteira, ele se vira pra Teresa e diz assim mesmo do jeito que eu estou te falando: “Agora, você coisa da criança, que do teu pai cuido eu…”  UAU ! podia terminar ai né! Mas não…. Isso é um filme de Sam Peckinpah.

Como esses mafiosos, traficantes, milicianos tem sempre capangas pra caramba, surgiu mais um monte do nada e rasgaram Bennie com rajadas de metralhadoras. 

Nota. Sam Peckinpah já foi partícula apassivadora em tiranicídia contenda entre meu concunhado e eu. Enquanto eu dizia que o cinema americano não era autoral, ou seja, não tinha uma linha de cineastas que faziam filmes classificáveis pelo toque de Midas da linha autoral, o concunhado dizia que havia Peckinpah: "brutalidade mimética, estética da violência e ódio fiduciário". Dito assim, de maneira tão bonita, pode até ser.






Música do dia. El Justiciero. Mutantes.

Heráclito


Em 1935, o Partido Comunista botou o bloco na rua, chamou os revolucionários e achou que podia para fazer uma revolução. Não deu. E entre as maiores vítimas da tentativa de insurreição estava o ex-deputado alemão Harry Berger, que veio para o Brasil em 1935 junto com sua mulher Elise, para orientar comunistas urentes a conduzir massas ignotas à conquista do poder.   Se não me engano é ele que no livro Olga tem o dedo esmagado por um alicate de quebrar nozes assim que entra no carro da Polícia Especial de Vargas. O casal comeu o pão que o diabo amassou em terras tupiniquins. Elise foi estuprada na frente do marido e logo em seguida mandada de volta para a Alemanha, onde morreria num campo de concentração.
O destino de Berger foi inacreditável. Torturado com choques e porradas sem fim, foi deixado por um ano numa cela sem sol, sem corte de cabelo, sem banho, com pouca comida.... O tratamento desumano que Berger recebeu levou ao advogado Sobral Pinto a solicitar ao juiz responsável pelo caso a comparação de Berger a um cavalo. Levou o responsável pelo caso a concordar que:  se o Estado reconhece até os direitos dos animais, por que não haveria de aplicar o mesmo tratamento a um ser humano?
Este é um dos pontos mais interessantes do documentário “Sobral – O Homem que Não Tinha Preço”. Heráclito Sobral Pinto foi um homem vazado num molde que se perdeu ao longo da história do Brasil.  Torcedor do América, católico fervoroso e conservador, defendeu presos políticos do Estado Novo e da ditadura militar, incluindo o líder comunista Luis Carlos Prestes e foi responsável até mesmo pelo resgate de sua filha Anita Leocádia. Anos mais tarde atuou na defesa de Juscelino Kubitschek,  mesmo, conservador que era, sendo politicamente alinhado à UDN. Nos anos 80, já em idade avançada, ainda teve fôlego para subir ao palanque das Diretas Já. 

O documentário de Paula Fiuza tem partes engraçadas e tocantes: sua incapacidade para ganhar dinheiro, ou melhor saber ganhar dinheiro mas não saber como cobrá-lo de seus clientes, mesmo estando tão próximo ao poder, e sua culpa, que se arrastou até o fim de sua vida, por ter tido uma... “amiga”... nos anos de juventude. Sâo elementos humanos que tornam Heráclito um mito brasileiro.

Assistir este documentário dias antes de uma eleição presidencial como esta que passou, pode não ser aconselhável. Pode causar danos irreversíveis à tentativa desesperadora de dar sentido à nossa obtusa alma nacional. 

Um banho de tcheco

A Tchecoeslovaquia sempre foi para mim um pais misterioso. As vezes sonho com Praga que deve ser linda e deve ter a impressão digital de Kafka em cada xícara de café servida no Café Slavia, onde ele e Max Brod se reuniam para falar coisas seríssimas. Sempre me disseram que Kafka era um cara denso. Quando li  Metamorfose, achei umas partes engracadíssimas, uns personagens curiosos, caricaturais, tão surreal que os conflitos entre Gregor Samsa e o mundo pareciam convincentemente miméticos. Quando li O Processo, ai pelo final dos anos 80, numa edição ruim da Ediouro, me certifiquei que Kafka fazia firula narrativa com a seriedade. Cheguei a assistir o filme do Orson Welles da década de 1960. Parecia muito sério e claustrofóbico. Mas não pegava bem comentar com meus amigos de faculdade que eu via justamente nesse revés a proficiência de Kafka. Eles eram inteligentes e densos pra caramba. Iam rir de mim. Pior, iam pensar que eu era uma pessoa... assim... dessas...” leves”,  e se afastariam de mim, nunca mais me convidariam para uma cerveja, a não ser, lógico, que eu pagasse. Anos depois, me caiu nas mãos a biografia que Max Brod escreveu sobre Kafka e percebi que havia, para além da cumplicidade entre os dois amigos, sim uma espécie de humor surrealista naquilo tudo. E como dizia o saudoso Millor, o humor compreende o mau humor, o mau humor é que não compreende nada.


Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção  e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil -  que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim, sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení), exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário  chamado Matchmaking Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A comédia Leaving de Vaclav Havel estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem,  guarda muito da expressão cênica teatral. O enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger, interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai. Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta.  Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um pomar de cerejeiras.

Vaclav Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da cadeia para assumir a presidência  da Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia. Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele mesmo,  escreveu-o na decada de 1980 - tá bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.

Vilem Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente da casa)  que independe em larga medida do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a vida a política da ficção.

Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.

Who's Camus Anyway

Filme Who’s Camus Anyway é um filme surpreendente.  Retrata a dinâmica de uma comunidade de jovens que vivem da árdua tarefa de fazer cinema. O filme se passa nos últimos cinco dias de filmagem que o grupo de estudantes universitários – orientados por um professor - leva adiante. A estória filmada trata de um estudante que é levado a assassinar uma velha pelo simples prazer de matar. A referência implícita a Raskolnikov passa por nossas cabeças, evidentemente, mas não deixa muitas raízes por não importar a estória contada em si, mas a preparação de toda a produção em torno ao filme.

O diretor Mitsuo Anagimachi mostrou sem dúvida o totem de uma experiência insular única que combina nuances das pequenas perversidades da vida acadêmica com a experiência individual dos que trabalham na industria cinematográfica. As experiências individuais acabam interferindo na dinâmica do filme. Matsukawa é um jovem diretor que respira cinema, mas sua doce e sufocante namorada, que não entende nada de cinema, apenas se preocupa com uma coisa: casar. Ele se nega, pois só se casaria depois de realizar uma grande obra. Yukari, a namorada obsessiva, diz que se o pegar com outra mulher o mata, e chega a aventar a hipótese de colocar seu esperma num banco – e ele diga-se de passagem aceita com a condição de que ela lhe dê o dinheiro para comprar um Final Cut Pro, um desses softwares de edição da vida. Os companheiros de filmagem não levam a relação a sério, primeiro por que vêem Matsukawa não como um exemplo maior de fidelidade, e segundo por que enxergam a Yukari como uma cópia xerox de Isabelle Adjani em The Story of Adele H.. O professor Najako, que presta orientação aos pupilos, é um personagem à parte. Fascinado por uma jovem estudante, a quem vê passar todos os dias, é apelidado de Aschenbach pelos alunos, o personagem de Morte em Veneza. Aliás o professor, em sua crise da meia idade, protagoniza uma cena da tão ou mais humilhante que a vivida por Aschenbach no filme de Visconti. Sabendo que um de seus estudantes pendurados por nota, é amigo da menina, manipula para que o rapaz propicie um almoço entre os dois, professor e aluna. No final do almoço, após ser sutilmente humilhado pelo casal – que sugere inclusive um ménage à trois, desde que pudessem ganahar uma bolsa de estudos para Paris - , volta para seu escritório dá pra beber.

O filme nos mostra como um filme de baixo orçamento é feito. Tudo começa pelo orçamento, pela seleção dos atores, pelo set mais barato de filmagem, pelo cenário mais barato...enfim, começa não da estória em si, mas das limitações materiais impostas à produção. É como passar a assistir filmes com essa dimensão que nos daria uma noção muito mais real de como se faz cinema – e que os americanos inverteram em nossas cabeças.

Cada cena do filme parece ter sido pensada cuidadosamente, de forma que nunca se sabe ao certo se uma sequência que começa é do filme em si ou do filme sobre o filme. A própria trilha sonora, dando contorno e impacto a determinadas cenas mais dramáticas, foi capaz de evidenciar o cunho emocional de determiandas cenas. No fundo, as estórias que se imbricam umas com as outras e com a própria estória do filme a ser filmado tornam todo o filme de Mitsuo Anagimachi uma grande tapeçaria de Robert Altman. O hiperrealismo do estranho é de grande importância, por exemplo no impacto emocional causado no protagonista após cada cena em que se entrega de corpo e alma ao papel do personagem encarnado, arriscando perder todo o senso de realidade – coisa pra lá de Stanislavski! É como se os personagens do filme - e do filme filmado – só pudessem sentir a partir do princípio que regia a razão de Meursault, a partir apenas de uma realidade física em si. Daí que nas últimas impressionantes sequências do filme, já não se sabe se estamos assistindo a cena final do filme filmado ou do filme narrado. Por isso, muito bem sacadaa última cena, onde todo o cast limpa o sangue do tapete da sala....

František Vláčil

O AFI exibe em todo o mês de abril e maio uma série de filmes do cineasta tchevo František Vláčil chamada  Poetry of the Past: The Visionary Films of František Vláčil. The Devil´s Trap é o segundo filme de uma trilogia que conta ainda com Marketa Lazarova e O Vale das Abelhas, ambos de 1967. The Devil´s Trap, particularmente,  se passa na região da Boemia no século XVI, ou seja em pleno contexto da inquisição, e nele há o componente do peso da religião, do conflito ideológico e a revolta individual.
Logo na abertura uma série de dissonantes acordes cappella, e uma imagem que pode chocar puritanos e pessoas devotas fraquinhas. Uma imagem retorcida de Cristo, à frnte de uma paisagem árida e em segundo plano uma  minúscula figura humana caminhando num deserto à distância. A mensagem é clara: a religião impondo-se sobre o homem, e a qualquer um ai que desafia o status quo.
A estória propriamente dita começa quando o governante local Valecský de Valce, tipicamente caracterizado como fanfarrão glutão, ordena que um terreno seja escavado para a construção de um celeiro, na tentativa de evitar os efeitos da seca do ano anterior. O ferreiro Spálený, com conhecimentos da terra muito mais amplos que que os do governante, e até com certo ar previdente,  acha que o local indicado para as fundações é inadequado e sua divergência com as autoridades começa a levantar suspeitas de que ele e seus antepassados tinham um pacto com o diabo. Os rumores vinham desde seus avós, quando os suecos, numa tentativa de invadir a aldeia, queimaram a casa, mas a família escapara ilesa. O “milagre” condenara-os e as divergências entre o governante local e o ferreiro se tornam públicas quando Spálený separa uma briga entre seu filho e um dos guardas do administrador – que tenta seduzir a futura nora de Spálený. Spálený afastando a contenda, contraria o governante que tem sua diversão interrompida.
Uma figura tão interessante como repentina é a do padre Prokus que chega sem anunciar como um representante da inquisição. Não fica claro se ele foi chamado e chegou por acaso, mas a sua presença favorece os interesses corruptos do governante local que visa construir o celeiro, e evidentemente neutralizar as críticas do ferreiro Spálený. O padre é muito mais cuidadoso com a imagem de Spálený que o governante. Contornando cuidadosamente as indulgências, sabe que em última instância a Igreja pode tirar algum proveito dos talentos previdentes do ferreiro. Para a cidade, em seus sermões, evita o confronto, e nos bastidores investiga sem cessar os supostos poderes do homem.
Todo o filme tem um sentido bastante alegórico. Há uma série de imagens aparentemente desconexas que acabam fazendo sentido no decorrer da estória. O trigo cortado por trabalhadores com foices e um corte imediato para uma cena onde um jarro de água cai enquanto Filip, filho de Spálený, está num momento íntimo com Martina. Noutra cena, pilhas de velas acumuladas ajudam a iluminar o trabalho noturno de Spálený. Os amantes repetidamente separados, primeiro por uma parede de pedra grossa, e depois pela própria terra, como Martina percorre os campos enquanto o rapaz percorre um labirinto de cavernas e reservatórios subterrâneos em busca de seu pai. Ou seja, vários objetos, planos e sequências  possuem  significado simbólico que enfatizam uma certa incursão no realismo mágico.

I am Love

De todos os filmes concorrentes ao Oscar deste ano, assisti justamente ao que não tinha a menor chance de levar nada. I am Love. Sinceramente, algumas sacadas boas sobre as pequenas alucinações de butique de Emma – Tilda Swinton -  e mais nada.

O filme, na verdade, conta a estória de uma família milanesa, podre de rica e que tem a fortuna proveniente do ramos da tecelagem. Os Recchi, como já disse são ricos pra cachorro, e o patriarca celebrará seu aniversário. A nora, Emma, mantém tudo neuroticamente organizado dentro e fora da casa. A roupa dos serviçais – rico chama assim a seus empregados -, a disposição dos convivas à mesa, enfim nada escapa. A ocasião é importante pois na celebração o velho Edoardo passará o controle da fábrica para o filho Tancredi. Emma é filha de um dono de antiquario de São Petersbugo que a encontra e a leva para a Itália. Os dois tem três filhos, Edoardo Jr., prestes a se casar com Eva; Gianluca e Elisabetta, que estura arte em Londres.

No jantar, a grande supresa é que o velho passa o controle da empresa para o filho e para o neto Edoardo Jr.. Mas como são podres de ricos, são discretos. O suposto mal estar se filtra pela emoção de ter o velho ainda vivo. Na festa, lá pelas tantas, aparece Antônio, que apesar de cozinheiro e pobretão tem uma inverossimil amizade com Junior, a quem venceu numa corrida naquele dia. Os dois têm inverossimeis planos de abrir um restaurante juntos e quando Junior apresenta o rapaz à mãe, uma gourmet, primeiro ela se sente atraída pela comida e depois pelo rapaz. A paixão há muito reprimida, transforma-a. A mulher entra numa vertigem de despertar sexual, e o vórtice a faz perder os limites. Passa a ir constantemente a San Remo visitar Antônio. E nessas muitas idas, corta o cabelo e  faz revelar o segredo de uma sopa que está no ramo da família russa muitas gerações.

Num dos jantares, no qual Antônio era o cozinheiro principal, o filho de Emma, Junior, que já andava com a pulga atrás da orelha com sua mãe, olha para a sopa de  entrée e lembra-se automaticamente do cabelo cortado da mãe, encontrado na casa de Antônio.  O jantar celebrava a passagem do controle acionário da empresa para um grupo indiano, portanto era um jantar de negócios, onde esse tipo de descontrole não seria aceitável no impertivo categórico que regia os Recchi.

Afastando um pouco a objetiva, vê-se uma Tilda Swinton polivalente, falando inglês, italiano e russo com fluência num papel que exigia a mais absoluta economia de emoções. Exagere os zoom-out e o filme não passa de uma cópia moderna e mal acabada de dois outros filmes, um o clássico  Il Gattopardo do Visconti; e o outro o impagável  The Royal Tenenbaums, do Wes Anderson.

E por falar nisso...


Melhor filme
Cisne Negro
O Vencedor
A Origem
O Discurso do Rei – VENCEDOR
A Rede Social
Minhas Mães e meu Pai
Toy Story 3
127 Horas
Bravura Indômita
Inverno da Alma
Melhor diretor
Darren Aronovsky – Cisne Negro
David Fincher – A Rede Social
Tom Hooper – O Discurso do Rei – VENCEDOR
David O. Russell – O Vencedor
Joel e Ethan Coen – Bravura Indômita
Melhor ator
Jesse Eisenberg – A Rede Social
Colin Firth – O Discurso do Rei – VENCEDOR
James Franco – 127 Horas
Jeff Bridges – Bravura Indômita
Javier Bardem – Biutiful
Melhor atriz
Nicole Kidman – Reencontrando a Felicidade
Jennifer Lawrence – Inverno da Alma
Natalie Portman – Cisne Negro – VENCEDORA
Michelle Williams – Blue Valentine
Annette Bening – Minhas Mães e meu Pai
Melhor ator coadjuvante
Christian Bale – O Vencedor – VENCEDOR
Jeremy Renner – Atração Perigosa
Geoffrey Rush – O Discurso do Rei
John Hawkes – Inverno da Alma
Mark Ruffalo – Minhas Mães e meu Pai
Melhor atriz coadjuvante
Amy Adams – O Vencedor
Helena Bonham Carter – O Discurso do Rei
Jacki Weaver – Animal Kingdom
Melissa Leo – O Vencedor – VENCEDORA
Hailee Steinfeld – Bravura Indômita
Melhor longa animado
Como Treinar o Seu Dragão
O Mágico
Toy Story 3 – VENCEDOR
Melhor filme em lingua estrangeira
Biutiful
Fora-da-Lei
Dente Canino
Incendies
Em um Mundo Melhor – VENCEDOR
Melhor direção de arte
Alice no País das Maravilhas – VENCEDOR
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte I
A Origem
O Discurso do Rei
Bravura Indômita
Melhor fotografia
Cisne Negro
A Origem – VENCEDOR
O Discurso do Rei
A Rede Social
Bravura Indômita
Melhor figurino
Alice no País das Maravilhas – VENCEDOR
I am Love
O Discurso do Rei
The Tempest
Bravura Indômita
Melhor montagem
Cisne Negro
O Vencedor
O Discurso do Rei
A Rede Social – VENCEDOR
127 Horas
Melhor documentário
Lixo Extraordinário
Exit Through the Gift Shop
Trabalho Interno – VENCEDOR
Gasland
Restrepo
Melhor documentário em curta-metragem
Killing in the Name
Poster Girl
Strangers no More – VENCEDOR
Sun Come Up
The Warriors of Qiugang
Melhor trilha sonora
Alexandre Desplat – O Discurso do Rei
John Powell – Como Treinar o seu Dragão
A.R. Rahman – 127 Horas
Trent Reznor e Atticus Ross – A Rede Social – VENCEDORES
Hans Zimmer – A Origem
Melhor canção original
“Coming Home” – Country Strong
“I See the Light” – Enrolados
“If I Rise” – 127 Horas
We Belong Together – Toy Story 3 – VENCEDOR
Melhor Maquiagem
O Lobisomem – VENCEDOR
Caminho da Liberdade
Minha Versão para o Amor
Melhor Curta-metragem de animação
Day & Night
The Gruffalo
Let’s Pollute
The Lost Thing – VENCEDOR
Madagascar, Carnet de Voyage
Melhor Curta-metragem
The Confession
The Crush
God of Love – VENCEDOR
Na Wewe
Wish 143
Melhor Edição de som
A Origem – VENCEDOR
Toy Story 3
Tron – O Legado
Bravura Indômita
Incontrolável
Melhor Mixagem de som
A Origem – VENCEDOR
Bravura Indômita
O Discurso do Rei
A Rede Social
Salt
Melhor Efeitos especiais
Alice no País das Maravilhas
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte I
Além da Vida
A Origem – VENCEDOR
Homem de Ferro 2
Melhor Roteiro adaptado
A Rede Social – VENCEDOR
127 Horas
Toy Story 3
Bravura Indômita
Inverno da Alma
Melhor Roteiro original
Minhas Mães e meu Pai
A Origem
O Discurso do Rei – VENCEDOR
O Vencedor
Another Year