Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil - que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim,
sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas
metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení),
exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa
noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho
de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário chamado Matchmaking
Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns
de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A
comédia Leaving de Vaclav Havel
estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como
uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem, guarda muito da expressão cênica teatral. O
enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger,
interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua
excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades
de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé
esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e
uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de
prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai.
Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o
poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A
astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais
que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e
Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a
penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como
quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta. Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um
pomar de cerejeiras.
Vaclav
Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a
resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da
cadeia para assumir a presidência da
Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia.
Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um
apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele
próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele
mesmo, escreveu-o na decada de 1980 - tá
bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que
esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento
géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu
com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em
paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No
fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso
do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.
Vilem
Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o
exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra
Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e
um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu
no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois
jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a
decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares
de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação
social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela
belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário
deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não
primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo
imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente
da casa) que independe em larga medida
do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa
impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a
vida a política da ficção.
Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.
Um comentário:
Identifiquei-me muito com o seu texto, Chico. Já li tudo do Kafka, assisti a todos os filmes do Orson Welles e sinto uma afinidade muito grande com República Tcheca. Praga está na lista dos lugares que pretendo conhecer. Gostaria de convidar você para - quando tiver um tempinho - ler o meu texto "Eu queria morar na República Tcheca" - http://marcelogarbine.com.br/publicacao/22/eu-queria-morar-na-republica-tcheca
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