Um banho de tcheco

A Tchecoeslovaquia sempre foi para mim um pais misterioso. As vezes sonho com Praga que deve ser linda e deve ter a impressão digital de Kafka em cada xícara de café servida no Café Slavia, onde ele e Max Brod se reuniam para falar coisas seríssimas. Sempre me disseram que Kafka era um cara denso. Quando li  Metamorfose, achei umas partes engracadíssimas, uns personagens curiosos, caricaturais, tão surreal que os conflitos entre Gregor Samsa e o mundo pareciam convincentemente miméticos. Quando li O Processo, ai pelo final dos anos 80, numa edição ruim da Ediouro, me certifiquei que Kafka fazia firula narrativa com a seriedade. Cheguei a assistir o filme do Orson Welles da década de 1960. Parecia muito sério e claustrofóbico. Mas não pegava bem comentar com meus amigos de faculdade que eu via justamente nesse revés a proficiência de Kafka. Eles eram inteligentes e densos pra caramba. Iam rir de mim. Pior, iam pensar que eu era uma pessoa... assim... dessas...” leves”,  e se afastariam de mim, nunca mais me convidariam para uma cerveja, a não ser, lógico, que eu pagasse. Anos depois, me caiu nas mãos a biografia que Max Brod escreveu sobre Kafka e percebi que havia, para além da cumplicidade entre os dois amigos, sim uma espécie de humor surrealista naquilo tudo. E como dizia o saudoso Millor, o humor compreende o mau humor, o mau humor é que não compreende nada.


Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção  e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil -  que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim, sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení), exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário  chamado Matchmaking Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A comédia Leaving de Vaclav Havel estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem,  guarda muito da expressão cênica teatral. O enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger, interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai. Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta.  Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um pomar de cerejeiras.

Vaclav Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da cadeia para assumir a presidência  da Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia. Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele mesmo,  escreveu-o na decada de 1980 - tá bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.

Vilem Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente da casa)  que independe em larga medida do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a vida a política da ficção.

Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.

Um comentário:

Mingau Ácido (Marcelo Garbine) disse...

Identifiquei-me muito com o seu texto, Chico. Já li tudo do Kafka, assisti a todos os filmes do Orson Welles e sinto uma afinidade muito grande com República Tcheca. Praga está na lista dos lugares que pretendo conhecer. Gostaria de convidar você para - quando tiver um tempinho - ler o meu texto "Eu queria morar na República Tcheca" - http://marcelogarbine.com.br/publicacao/22/eu-queria-morar-na-republica-tcheca