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Sunset Park


Terminada a leitura do último livro de Paul Auster, Sunset Park – ainda sem tradução par ao português -, é minha vez de dizer que é impossível transmirtir o que eu também senti, não apenas às primeiras páginas, mas nos seus capítulos seguintes que percorrem, esmiúçam, radiografam a alma de uns dez personagens em quase todas suas poucas grandezas e muitas misérias.

O livro centra-se na estória de Miles Heller, um jovem de 28 anos, e que aos vinte rompeu todos os laços o ligavam a familia e a Nova Iorque. Deixou a universidade e embrenhou-se pelo meio dos Estados Unidos, deixando uma breve e enigmática nota de despedida aos pais. Por muito tempo ninguém ouviu falar dele. Desde então peregrinando de cidade em cidade, fixou-se na Flórida, dedicando-se a trabalhos pesados, de baixa qualificação e baixo soldo. Vive uma vida simples trabalhando como “trashing out,” o único trabalho que parece prosperar num país afetado brutalmente pela crise da bolha imobiliária. Seu trabalho consiste em limpar os imóveis liquidados – outrora pertencentes a pessoas que não puderam arcar com suas hipotecas - prestes a retornarem aos bancos.

Solitário e deslocado em qualquer dos mundos que possa habitar, Miles, para além de limpar e pintar as casas desapropriadas, fotografa-as, retendo em suas máquina digital as pistas das vidas dispersas que um dia pertenceram àquele lugar, os fantasmas de pessoas que ele nunca conheceu ou conhecerá e que estão presentes nos objetos dessas casas, agora, vazias e abandonadas. Dos restos do desespero do pouco que ficou para trás, abandonados na solidão silenciosa de uma casa cheirando a mofo, suas fotografias não servem para nada. Seus anos de estudo na universidade, menos ainda. É um cara sem ambição, que vive com o mínimo necessário para viver e que mantém relações escassas com o mundo. Miles encontra o conforto para esse mundo em desolação na sua máquina digital, nos livros, que compra em edições baratas em sebos, e evidentemente, nos braços de Pilar Sanchez, sua namorada latina, com certos traços de Lolita, a quem conheceu exatamente quando ela lia, pela primeira vez, o The Great Gatsby num parque. Ele, já na terceira leitura, já que o pai o presentara quando tinha 16 anos, lançou toda a sua lábia literária para conquistar a moça de generosas ancas.

Miles, se apaixona por Pilar, mas como ela é menor, passa a ser chantageado pela irmã da moça para que roube objetos das casas nas quais ele trabalha, caso contrário ela o denuncia à polícia como um pervertido. Sem escolha, Miles retorna para NY a convite de seu amigo Bing, que vive numa casa abandonada no Brooklyn, em Sunset Park.

Na casa vivem Bing, um cara que se dedica a consertar objetos obsoletos, tais como relógios, máquinas de escrever e aspiraradores de pó; Alice, uma estudante de doutorado que prepara uma tese sobre o filme de William Wyler, The Best Days of Our Lives, como a síntese da história recente americana; e Ellen, que trabalha ironicamente numa agência imobiliária enquanto tenta sua carreira de pintora. Todos têm um quê de frustração. Todos, em certa medida, precisam uns dos outros naquela casa.

Juntar-se aos companheiros de Sunset Park, é tentador. Mas tem um preço alto para Miles que é o de reencontrar a cidade e a família que deixou para trás. Nesse estranho retorno ao passado Miles reencontrará o pai - um dos temas recorrentes na literatura de Auster – Morris, o um dia bem sucedido editor independente que agora vive as consequências da crise financeira que abate o mercado editorial; a madrasta, que o responsabiliza pessoalmente pela morte de seu filho; a mãe, Mary-Lee, uma atriz auto-centrada, sedutora – jogando com o próprio filho - com algo de beckettiana, que nunca deu muita atenção para o guri; e o padrasto, que tem de se sujeitar a dar aulas na Universidade da California por ter tido sua carreira de cineasta independente frustrada pela crise.

Confesso que me assustei, pois para um escritor americano que, ainda que escreva de NY – ou seja, um lugar que não pertence aos Estados Unidos -, escreve para um público alérgico a personagens derrotados, pior, avesso a personagens que não se redimem do meio para o final, o livro deixa falsas pistas. Auster, nesse livro, resvalou. Quase me deixou a sensação que iria usar do artificio baixo de justificar a fuga de Miles expondo desde o começo as premissas examinadas para compor sua ‘fuga’: ou seja, a morte acidental de seu meio-irmão, na qual ele esteve envolvido.

Me assustei mais ainda com a tentativa de Auster impor uma relevância política à voz dos subalternos, num esforço de engajamento no mundo em recessão. Felizmente essa segunda impressão foi logo desfeita pelos fetiches do próprio escritor que sempre cria um oprimido, para além de outsider, sempre com algum traço artístico.

Desaponta, sem dúvida, a falta de profundidade psicológica de personagens tão interessantes como Bing, Elen e Alice. A insistência nos detalhes sobre a história do Baseball, como amálgama da relação entre pai e filho, por vezes também se torna enfadonha. Mas em todo o caso, não deixa de ser um livro sobre a inocência da juventude, sobre a estranha sensação de estar vivo, como algo desconfortável.

Marota tradução do primeiro parágrafo...
"Por quase um ano, ele vem tirando fotos de coisas abandonadas. São pelo menos duas ordens de serviço por dia, e as vezes seis ou até mesmo sete, e a cada vez que entra numa casa, se depara com as coisas, com os inumeráveis objetos deixados para trás por famílias que partiram. Os ausentes fugiram com pressa, envergonhados, confusos, e certamente onde quer que vivam agora (se é que encontraram um lugar para viver e não estão vivendo nas ruas) seus lares são menores do que perdido. Cada casa é uma estória de fracasso – de falência, de inadimplência, de dívida - e ele assumiu que deveria documentar os últimos e persistentes traços dessas vidas para demonstrar que essas famílias desaparecidas estiveram ali uma vez, que os fantasmas dessa gente que nunca verá e que nunca conheceu, estão ainda ali, presentes nos restos de coisas desfeitas de suas casas vazias[...].”

"For almost a year now, he has been taking photographs of abandoned things. There are at least two jobs every day, sometimes as many as six or seven, and each time he and his cohorts enter another house, they are confronted by the things, the innumerable cast-off things left behind by the departed families. The absent people have all fled in haste, in shame, in confusion, and it is certain that wherever they are living now (if they have found a place to live and are not camped out in the streets) their new dwellings are smaller than the houses they have lost. Each house is a story of failure — of bankruptcy and default, of debt and foreclosure — and he has taken it upon himself to document the last, lingering traces of those scattered lives in order to prove that the vanished families were once here, that the ghosts of people he will never see and never know are still present in the discarded things strewn about their empty houses."

Nota. Foto. Casa Abandonada. Barrio de Campos. Galiza/Janeiro/2011.
Música do dia. Barracão. CD. Brasileirinho. Grandes Encontros do Choro Contemporâneo.

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Everyman


Não quero divagar sobre o fascínio que Roth exerce, ao narrar fatos tão prosaicos na vida de um homem comum. Mesmo escrevendo um livro apenas razoável - que passa longe da temática da tensão entre as duas américas que o destacou. O livro começa com o enterro do homem sem nome, que poderia ser qualquer homem, pois seguindo a lógica de que a morte iguala todos, o protagonista só pode se chamar Everyman....

Around the grave in the rundown cemetery were a few of his former advertising colleagues from New York, who recalled his energy and originality and told his daughter, Nancy, what a pleasure it had been to work with him. There were also people who'd driven up from Starfish Beach, the residential retirement village at the Jersey Shore where he'd been living since Thanksgiving of 2001-the elderly to whom only recently he'd been giving art classes. And there were his two sons, Randy and Lonny, middle-aged men from his turbulent first marriage, very much their mother's children, who as a consequence knew little of him that was praiseworthy and much that was beastly and who were present out of duty and nothing more. His older brother, Howie, and his sister-in-law were there, having flown in from California the night before, and there was one of his three ex-wives, the middle one, Nancy's mother, Phoebe, a tall, very thin whitehaired woman whose right arm hung limply at her side. When asked by Nancy if she wanted to say anything, Phoebe shyly shook her head but then went ahead to speak in a soft voice, her speech faintly slurred. "It's just so hard to believe. I keep thinking of him swimming the bay-that's all. I just keep seeing him swimming the bay." And then Nancy, who had made her father's funeral arrangements and placed the phone calls to those who'd showed up so that the mourners wouldn't consist of just her mother, herself, and his brother and sister-in-law. There was only one person whose presence hadn't to do with having been invited, a heavyset woman with a pleasant round face and dyed red hair who had simply appeared at the cemetery and introduced herself as Maureen, the private duty nurse who had looked after him following his heart surgery years back. Howie remembered her and went up to kiss her cheek.

Na cerimônia, após as elegias de praxe, quando os poucos amigos e familiares lançam as últimas pás de terra sobre o caixão o narrador começa a contar a estória deste herói diferente. Everyman começa com a morte de um homem sem nome e termina com uma ladainha sobre o definhamento senil, o pior dos castigos que as Moiras nos destinam. Mesmo tergiversando e escrevedo sobre temas tão... mórbidos, Roth é ainda o velho Philip Roth. Quando li algumas resenhas sobre o livro, diziam ser Everyman um livro baseado num poema medieval... suspeito que Everyman pode ser qualquer homem por outras razões. Everyman é o nome da joalheria de seu pai erguida após a II Guerra num lugar de New Jersey chamado Elizabeth. Nunca chegou a ser um império a tal joalheria, pois a clientela era composta pelos Bruttis, sporchis e cattivis, por operários e estivadores dos portos de Jersey. Na verdade, o pai nunca se preocupara com as idéias de grandeza. Preocupava-se em fazer amigos, em vender a crédito fácil anéis de noivados com pequenos diamantes, tendo como único prazer ver os filhos crescerem, e ser chamado para os casamentos dos noivos para quem vendia suas jóias. Um homem que fazia da amizade um bem. Sua preocupação era dar aos filhos o exemplo. Os dois irmãos, portanto, como era de se esperar seguiram caminhos opostos. Um, tornou-se banqueiro, outro, nosso Everyman, ainda que não tão bem sucedido economicamente como o irmão, tornou-se publicitário famoso e realizado na profissão.

Sabe-se também que por suas, vamos dizer assim urgências sexuais, pôs por terra três casamentos - e nesse ponto se parece muito com Alex Portnoy e a Jerry Levov, personagem secundário de Pastoral Americana. É um tipo paranóico e hipocondríaco que desde pequeno entra e sai de hospitais passando por cirurgia que vão desde uma hérnia aos 9 anos à uma série de pontes safena já na idade adulta. Em tempo, hodiernamente – eta palavrinha escrota -, um tipo que representa um pesadelo ao bloco “obamacare” no Congresso (risos).

Em suma, Philip Roth insiste no tema do envelhecimento e das urgências sexuais na terceira idade. Cá pra nós uma temática meio recorrente em suas linhas ultimamente. Nesse mesmpo caminho, mantém um leve aroma presente nos livros anteriores ao idealizar a infância e ver na imagem paterna a figura do herói, e na figura do irmão uma espécie de espector protetor que causa conforto inveja ao protagonista. Agora, acrescenta um novo componente, o tema da proximidade da morte. E parece que o principal motivo que levou ao escritor que já passa dos 70 anos a escrever essa obra foi a sucessiva perda de amigos, dentre eles Saul Bellow. Inclusive, o primeiro capítulo foi escrito no dia seguinte ao funeral, onde estavam presentes o próprio Roth e Leon Wieseltier, editor literário da New Republic e amigo de Bellow.
http://www.nytimes.com/2006/04/25/books/25roth.html

O livro é uma espécie de exercício de meditação sobre a morte, e as vezes se torna meio maçante pois na tentativa de escapar do aspecto metafísico da finitude, Roth passa a descrever a morte, e o medo da morte, como um drible na dicotomia entre Tânatos e Eros, realcionando-a a algo essencialemente físico adscrito à mesa de operações. Há uma generalização exagerada na série de inúmeras intervenções cirúrgicas pelas quais o protagonista é obrigado a se submeter. Entretanto, Roth tem uma capacidade incrível de manter o fio da narrativa teso ao retratar um protagonista que chega à terceira idade solitário e frustrado, e com isso sutilmente esmagar qualquer ilusão sobre as opções que uma pessoa toma na vida, mesmo as mais banais como a de ter um caso com uma modelo sueca, sentir inveja dos companheiros de trabalho, mentir para a esposa, ou mesmo tomar um copo d´água.

Enfim, um livro que tenta nos convencer que morremos todos os dias e só nos não nos damos conta disso.

Música do dia. Carmem. Egberto Gismonti. Música de Sobrevivência.

Luz de Agosto



Luz em Agosto é um desses livros que nos deixa sem ar. Mesmo numa leitura avulsa, setenta e sete anos após o seu lançamento, a força e o impacto que suas palavras, expressões, inúmeros personagens e de sua inventividade corrosiva nos deixa com a glote por um fio de ar e faz a pulsação do leitor disparar. Dizer que Faulkner buscou em Luz em Agosto uma narrativa polifônica é uma redundância barata, pois esta era a marca do autor que imprimiu, basicamente a mesma técnica em Sound and Fury e em muitos outros de seus livros e contos. Não só a marca do autor, mas quase de uma época. Neste mesmo período, contemporâneos de Faulkner, tais como Virginia Woolf e Joyce escreviam com a mesma pungência dando voz ao fluxo de consciência de seus personagens.

Um dos muitos méritos de William Faulkner foi o de ter a ousadia de penetrar seu cutelo no coração do puritanismo norte-americano. Mais, é como se Faulkner tivesse dito a Deus, ô cidadão, fica de fora que em Yoknapatawpha mando eu. Ou num sentido mais prosaico, nesse universo puritano, é como se o nome de Deus fosse evocado a todo o instante, mas qualquer idéia que o associasse aos atributos de generosidade e solidariedade ficasse de fora, deixando o papo para os mortais.

A construção da estória em vários eixos narrativos é talvez a inovação de Faulkner. Um destes eixos está centrado no personagem principal Joe Christmas, a princípio tido como homem um branco que acredita ter sangue negro. Atormentado ou motivado por tal crença, Joe, age de maneira alheia aos valores dos brancos e instiga a intolerância racial que campeia no sul dos Estados Unidos. Num segundo eixo, uma outra personagem importante é Lena Grove, uma adolescente grávida que vem do Alabama e chega a Jefferson, a cidade ficcional criada por Faulkner em Yoknapatawpha County, a procura de Lucas Burch, o rapaz que a deixou grávida. No exato momento de sua chegada, a casa de Joana Burden, mulher de quem Joe Christmas foi amante, esta em chamas. Um terceiro eixo encontra sentido no reverendo Hightower, que é o personagem que ata as narrativas esparsas.

Joe Christmas é um personagem à parte. Um homem sem passado específico, uma espécie de órfão, que pouco a pouco vai se tornando uma espécie de pária, sem destino específico, à procura de sua identidade a ponto de quase perder de vez a razão nessa procura. Para o bom leitor, é um personagem que carrega um estigma que o força a ser indiferente por seu semelhante. Este mesmo estigma é usado para justificar seus atos violentos. É um personagem trágico e altivo que não se dobra às circunstâncias. Joe chega a Jefferson três anos antes do início da novela, ou seja, da chegada de Lena à cidade, ou seja, do incêndio e assassinato de Joanna Burden. Assim que chega, começa a trabalhar na lavoura, e este trabalho cria uma cortina de fumaça para a sua real atividade que é a de distribuição de àlcool durante a Lei Seca. E notório na cidade que Christmas é um homem que fabrica bebida clandestinamente durante a Prohibition - que vigorara nos EUA durante toda a década de 1920. Suas atividades ilícitas não chegam a chocar, pois acaba fornecendo birita a muita gente na cidade. As coisas mudam quando este passa a ser suspeito do assassinato da velha solteirona, de quem fora amante por algum tempo, quandoBrown, seu cúmplice na destilaria clandestina, de olho nos negócios do sócio, interrogado e pressionado, delata o companheiro. O sangue negro encoberto de Christmas, delatado pelo o assecla, desperta o ódio da comunidade. No mesmo dia em que a casa arde, chega à cidade Lena Grove.

Lena, após a morte do pai, vai morar com um irmão casado e cheio de filhos. O irmão é um homem rude, ‘doçura, delicadeza e idade florescente e quase tudo mais – exceto uma espécie de inteireza tenaz e deseperada e uma triste herança de orgulho familiar – tinham desparecido com a dureza do trabalho’. Após sofrer humilhações e ser constantemente chamada de meretriz, Lena foge de casa a procura do pai de seu filho, Lucas Burch. Sem destino certo acaba vindo parar em Jefferson, mais precisamente na serralheria de Mr. Breads, onde Byron Bunch trabalha. As proximidades dos nomes de Bunch e Burch acabam gerando um certo mal entendido fonérico – impressionantemente possível com o sotaque sdo sul dos Estados Unidos - , prontamente preenchido e aumentado pelos locais. Para muitos Buch é o pai da criatura que Lena carrega. O problema é que algo está fora do lugar nessa estória, mesmo para os mais interessados em tocar com a aldraba a porta do chisme. Bunch é um homem que segue à risca a ética puritana. É um homem trabalhador que dedica-se, inclusive aos sábados, a carregar carroças de tábuas e aos domingos, e após a jornada de trabalho anda mais de trinta milhas para ensaiar o coro de uma igreja. Seu amigo Hightower é o único que sabe de sua dedicação e entrega ao trabalho e à fé, e portanto seria algo diacrônico ser o pai da criança. Byron Bunch é um homem de poucas palavras, não por expressão de sabedoria, mas por inabilidade em usá-las. E um homem inculto. Faulkner é sutil ao contornar os detalhes seu intelecto, finalizando seus diálogos sempre com alguma reticência e evocando várias vezes sua admiração pela eloquência de Hightower.

Gail Hightower, é um homem que tendo sido reverendo, era obrigado a viver uma vida de aparências ao lado da esposa. Um homem fanático pelo passado de seu avô Confederado, julgado sumariamente por ser pego roubando um frango numa granja, e que proclama sermões inflamados causando desconforto na cidade evocavando constantemente a saga e o infortúnio do avô. Entretanto, não por ser difuso tampouco por ser repetitivo que Hightower é preterido, mas por que foi abandonado pela mulher, encontada morta pouco tempo depois. Os rumores que se seguiram o fizeram perder não apenas a mulher, mas sua reputação e sua congregação. Este passado distante ainda reverbera em sua vida eremita pois as desconfianças da preconceituosa sociedade local de Jefferson, que lhe vira as costas, são um componente fundamental para entender o destino de Joe Christmas, personagem principal dessa obra monumental.
Byron Bunch é o único que rompe esse círculo de isolamento e o visita eventualmente. Numa destas visitas Bunch pede que Hightower sirva de álibi a Joe Christmas, que ao escapar da prisão pelo suposto assassinato de Joanna Burden, se refugia na casa do reverendo. Interessante pois em nenhum momento do livro - ao menos que me lembre - fica claro que foi realmente Joe Christmas o assassino de Joanna Burden e tampouco é muito bem explicado - talvez eu necessite de uma segunda leitura - esse pedido de Bunch a Hightower, salvo por vagas razões. Sabe-se que quando Christmas foge do posto policial e se refugia na casa de Hightower, este o aceita, ainda que já seja tarde demais pois Percy Grimm ja anda em sua cola. Sabe-se também que Bunch é visto nas redondezas da casa de Joanna Burden enquanto a mesma ardia, mas nada é afirmado categoriacamente.

Mais interessante ainda é a falta de certezas em que Faulkner imerge o leitor evitando ser categórico sobre a relação entre Joe Christmas e Joanna Burden. A princípio, aquela era uma relação conflituosa, pois ao passo que Burden se dizia defensora dos ideais abolicionistas e fazia vista grossa para os pequenos roubos que Christmas efetuava, entrava em conflito com os demais habitantes da cidade por protegê-lo. Joe Christmas, por sua vez passa a sentir desprezo por Burden, uma mulher já em idade de menopausa, sem possibilidade de ter filhos e por isso mesmo entregue ao fanatismo religioso. Joe, que era órfão, tinha sido criado e abusado, física e psicologicamente, por uma família religiosamente conservadora.

Faulkner se utiliza de um recurso absolutamente original. Em cima dos fluxos de consciência, sejam eles falsos ou verdadeiros, de um personagem, Faulkner cria outras direções. Assim, vai instaura enredos intermináveis sobre o que o preconceito cristalizado na fala de um personagem cria a respeito de outros. Tendo em vista que a novela não é organizada de maneira linear, e é interrompida contantemente por flashbacks, o foco narrativo muda de um personagem para outro. Mesmo que um personagem desconheça a verdade dos fatos, tem sua própria versão moral sobre os mesmos. Neste sentido, apenas resta ao leitor a dedução das pistas deixadas pelo autor.

Impressiona também como é possível encontrar ainda hoje, numa novela de 1932, elementos de uma América ainda presente naquele tempo. Afinal, muitos dos elementos de identidade do americano não mudaram desde então: os constantes dogmas puritanos resgatados para afirmar a crença no protestantismo; a prática constante da desconfiança contra a alteridade como subterfúgio para a busca da própria identidade; a divisão de uma sociedade de classes em raças... Enfim todos fios de uma espécie de destino do qual um povo todo não pode escapar. Sina? Não sei. Mas é nesse ambiente em que os derrotados de todo o tipo deixam aflorar o fanatismo religioso numa pasma tentativa de fugir ao que o destino, de trágico, reservou, que se passa Luz de Agosto - e é sobre ele que se tenta reconstruir uma América pós-Era Bush.

A falta de ar é apenas uma metáfora para mostrar o quanto se precisa de fôlego e sentido para ler a Faulkner.
(continua...)


Nota. Na minha tradução portuguesa de Armando Ferreira de anos atrás está grafado Luz de Agosto

The Brief Wondrous Life of Oscar Wao



Deixe-me ser claro: Um livro que tem como protagonista um adolescente, obeso, mulato, dominicano, onanista, vivendo em Nova Iorque, ruim de jogo comas as mulheres e ainda por cima nerd viciado em ficção científica, tinha tudo para ser um desastre editorial. Brief wondrous life of Oscar Wao de Junot Diaz, não é. Ao contrário. Apesar de não ser uma obra prima, é um livro bem legal. Um livro bacana e cheio de humor, pois o protagonista Oscar carrega consigo uma maldição, o fukú, que afeta a maioria dos dominicanos do sexo macho e que precisam conquistar e ter muitas mulheres para poder conquistar para ter mais mulheres, e assim ter mais mulheres para poder conquistar. O rapaz é simplesmente um fracasso não apenas com as meninas, mas em quase tudo que faz. Uma espécie de inútil na familia. Tão inútil, tão inútil, que, por pena, o deixam em paz.

Ele é um tipo de garoto que treme nas aulas de educação física, não gosta de esportes, mas que usa palavras incrivelmente sofisticadas em conversas com amigos que ele sabe, mal terminarão o estudo secundário - isso o torna estranho até mesmo dentro de seu habitat natural. Uma das máculas em seu curriculum de jovem suburbano de Paterson, New Jersey, é o fato que terminou o High School sem ter nunca tido sexo. Para piorar, até seus amigos mais nerd, tinha conseguido sair com alguma menina. E ele, virgem...

No College, sua irmã Lola e seu namorado Yunior, fazem de tudo para por o pobre Oscar na linha. Pressionam de todo o lado para que ele faça ginástica, coma menos e melhor, se entrose com as meninas.... Yunior é o camarada que finalmente vaticina que Oscar sofre de “a high-level fukú”, ou seja ziquizira da brava e que precisa reverter essa maldita situação que se arrasta em sua família. O problema é que Oscar é um cara tão introspectivo que, ao contrário de lutar, acaba se refugiando na sua solidão e ainda mais em seus livros e em seu universo paralelo.

Mas enganam-se, entretanto, aqueles que pensam ser o livro uma versão latina dos filmes de adolescentes idiotizados nos Colleges. Junot, dá vários cortes na história de Oscar e amplia o foco para as origens da família do jovem, ainda sobre o regime do sanguinário Trujillo.

Junot Diaz contrabalança bem o humor com o drama, especialmente por que por trás da vida dos irmãos Oscar e Lola, há uma mãe latina, autoritária, violenta e compassiva, que aos poucos vai sendo devorada por um câncer e que usa a doença para submeter mais e mais aos filhos – seu único elo com a vida. Aos poucos descobrimos os meandros psicológicos da vida da mãe, Belícia de León, mulher trabalhadora e sempre ausente, e descobrimos mais sobre o pai que nunca apareceu. O pai, que tinha sido torturado pelos algozes de Trujillo enquanto a mãe tinha tivera um caso amoroso justamente com um dos homens próximos de Trujillo, o tal de Gangster, até finalmente ser resgatada por um primo da familia e levada aos Estados Unidos. Descobrimos, então, mesmo que não diretamente, por que Oscar se refugia em seu mundo de ficção científica e sua irmã no universo gótico das letras e da estética do Robert Smith, The Cure - aquele cara esquisitão que nos 80 cantava Boys Don't Cry.

O livro ganhou o Pulitzer de 2008 com uma linguagem que para o nativo americano sem uma noção mínima do espanhol caribenho poderia emperrar a leitura em vários momentos. Poderia, salvo pela habilidade narrativa de Junot. Não deixa de ser surpreendente a subjetividade dessas bancas de jurados - como o Barros apontou bem. E pelo que li pela internet, Junot demorou uns oito anos para terminar o livro. Cheguei ao final do livro com a forte impressão de que o tal do fuku, foi uma sacada genial de Junot Diaz para reinventar uma narrativa romântica. Fuku, uma espécie de revigoramento do mito de Eros e Psique. Ou seja, para ter o amor de Eros, Psique jamais poderia ver seu rosto. Oscar, o protagonista, de certa forma, passando às secas o largo estío da adolescência, sem nunca poder ter visto a cara do amor na sua forma erótica, diga-se de passagem, calejando suas pobres mãos - se é que me faço entender com uso de tão calhorda metáfora - , foi o único que pôde entender de fato que peso os raios do tal de fuku tiveram em sua vida. Enfim, é um livro bem legal, apesar de ser milimetricamente comercial, com todas as questões conceituais que fazem do multi-culturalismo americano babar nas gravatas - e mais importante que tudo, não é uma obra-prima.

American Pastoral

Quem lê Roth, aprende a lê-lo com reverência.

Neste livro, Roth apela para seu alter ego ficcional, Nathan Zuckerman. Desde já digo que é um livro de difícil resumo, por ser uma obre de mestre.

Zuckerman retorna a Newark, onde viveu, e encontra vários de seus companheiros desiteressantes de infância e juventude (por exemplo, Erwin Levine, filhos de 43, 41 e 31. Netos de 9, 8, 3, 1 e 6 semanas...) para um encontro de ex-alunos da escola secundária. Lá, entre outros, está Jerry Levov, irmão de Seymour Levov “o sueco” Levov, o mais destacado dos jovens de então. Zuckerman sabe por Jerry que Seymour Levov morrera pouco tempo antes da reunião. Segundo a imagem que ficara dos anos 60, guardada na memória de todos, Seymour mostrava-se como um atleta exemplar, um filho bom, honesto, um jovem próspero e empreendedor, um exemplo a ser seguido por todos os jovens judeus de New Jersey. Um tipo que além de exemplar foi sortudo. Herdeiro de uma fábrica de luvas, a Newark Maid, erguida do nada por seu pai, ainda de quebra casou-se com Dawn, ex-Miss New Jersey com quem teve uma filha, Meredith. Meredith seria adorável se não tivesse tido uma gagueirinha de infância.

Essa sua Arcádia ecumênica, silogismo de uma nação inteira, ansiada como um eterno dia de Ação de Graças, onde todos comem o mesmo peru, todos riem das mesmas piadas com a boca cheia de mashed potato e gravy escorrendo pelos cantos da boca, e se comportam da mesma maneira, começa a ruir. Começa a ruir exatamente no momento em que aquela menininha encantadora que tentava imitar a voz e os trejeitos de Audrey Hepburn, se torna uma adolescente problemática e emocionalmente instável, e começa a participar ativamente do Weatherman Organization, um movimento que entre 1969 e 1974 mandou pelos ares umas 4 duzias de predios ao redor dos Estados Unidos.

- - Ainda na festa Zuckerman indaga (tradução miserável):
"A filha, que o conduzia para fora da ansiada pastoral americana, era sua antítese e sua inimiga, a fúria, a violência, o desespero de tudo que era contrário à pastoral, a fera americana indígena."

Zuckerman apesar de se apresentar na festa como subdelegado da turma 4B e membro do comitê organizador do baile de gala - sem filhos ou netos e que ha mais de 10 anos havia sofrido uma operação de bypass quíntuplo – não para de pensar na estória contada por Jerry. Zuckerman passa a saber do drama do sueco ao ter a filha foragida e perseguida pela polícia. E decide escrever a história.

- - Num momento de inflexão da estória, Zuckerman, em meio a uma música da reunião começa a divagar, se separa de si "me ausentei da reunião e sonhei..., sonhei uma crônica realista. Começei a contemplar sua vida, não sua vida como um deus ou semi deus, cujos triunfos alguém poderia se regozijar na juventude, mas sua vida como um outro homem qualquer, atacável, e inexplicavelmente como o equivalente do "eis aqui este homem" [...]"

Para construir essa autópsia de Levov, Roth dá voz a Zuckerman na primeira parte, Paraíso Lembrado, mas do capítulo A Caída e o Paraíso Perdido, quem fala é o alter ego um do outro propriamente. Roth narra a história da família de Levov, de como a fábrica foi construída pelo patriarca, de como o sueco tomou os negócios nos punhos prescindindo do irmão – que preferiu tornar-se o oposto do irmão, um cirurgião mulherengo e invejoso, casando-se várias vezes e indo viver em Miami - as consequencias da Guerra do Vietnã.

O inferno de Levov, nas palavras de Zuckerman, começa com uma eternidade de memórias. Zuckerman de repente se sente condenado a recordar e recordar numa sessão de psicanálítica sem fim, e sem catarse possível, onde foi que o sueco Levov errou. Interessante que as ações de Levov, sempre pautadas no bem e na justiça, não bastam para definir sua conduta; o julgamento e a ação dos outros personagens são igualmente decisivos para determinar seus destinos desencantados.

Ao contrário, por exemplo, de sua espécie de discípulo Coetzee, Roth, em sua fúria, não arrasa apenas com seu protagonistas, mas desintegra a todos... como se todos, aos poucos, fossem decaindo moralmente, dissolvidos num ácido comum à todas as bìlis, forçados a perder suas esperanças na vida. Como se qualquer deslumbre fosse no fundo uma farsa por carecer de compreensão. Por exemplo, quando pai e filha se reúnem finalmente em 1973, numa fabrica abandonada, onde a filha vive em condições físicas desumanas, Levov vê seu mundo desabar num poço de desgostos, pois sempre manteve uma remota e idílica idéia sobre a inocência da filha. Merry, numa cena de uma violência incrível, diz ao pai que não havia apenas mandado pelos ares o prédio dos correios local, mas colaborado em inúmeras outras explosões ao redos dos Estados Unidos. Levov, poucas horas depois, numa festa entre amigos surta como nas melhores cenas de Tennessee Williams.

Um livro ótimo já que Roth não apenas não tem pena de seus personagens, como tampouco de seus leitores, pois acima de tudo nos deixar uma incômoda pergunta: Seremos nós verdadeiramente responsáveis pelas pessoas que cativamos?

Outra ótima resenha é a do Barros.
http://barrosbar.blogspot.com/2009/01/philip-roth-pastoral-americana.html

IAD-LHR-MAD-SCQ - - SCQ-MAD-LHR-JFK-DCA

Um dos gratos momentos que passei na minha última e interminável viagem - de quarenta horas, cinco escalas e duas malas perdidas - foi aquele que passei lendo a Philip Roth. O Roth salvou boa parte dos atendentes de Costumer Service da Iberia e da British Airways. Salvou-os da minha indignação resignada contra as empresas de aviação que a cada dia se parecem mais com as de transportes coletivos públicos terrestres. Além disso devo a ele, pessoalmente, o fato de não estar respondendo frente aos tribunais de Haia pela minha primeira tentativa de homicídio culposo - pois eu estava absolutamente convencido que eu deveria dar no mínimo um soco na cara do atendente da Iberia que em Madrid disse-me que a culpa pelos meus vôos cancelados não era da empresa e sim minha, por não ter previamente conferido meus emails antes de sair de casa.

Neste clima, li a primeira novela do Roth chamada Goodbye, Columbus. Uma pequena novela explosiva. Uma visão da vida sem compaixão, numa forma de escrever sem espaço para o auto-engano já no primeiro livro da juventude.

A trama se desenvolve em Newark e seus arredores. Neil Krugman é um jovem bibliotecário, sem um futuro muito bem definido. Vive com uns tios em New Jersey, nos arredores de Newark. No clube em que frequenta, conhece a Brenda Patimkin, herdeira de um industrial do ramo da porcelana de Short Hills. Nestas mesmas férias de verão, os dois se envolvem amorosamente de tal maneira e com tal força que seria difícil saber o que o destino reservaria a ambos.

Brenda é oriunda de uma família de judeus ortodoxos. É o tipo de menina fútil, bem vestida, consumista, universitária, vaidosa a ponto de se submeter a cirurgias plásticas e absolutamente aberta aos encantos de Neil, seu completo oposto. Neil, um tipo ácido, com alguma dose de idealismo sufocado por um pragmatismo desvelado, é um jovem contido e lacônico. A estória é narrada por Neil que, com seus rasgos psicológicos e inteligência aguçada, se aproxima dos Patimkins e traça uma radiografia crua da família. Por Neil, Roth fotografa a vida dos subúrbios americanos como ninguém. Das linhas de Roth, narradas por Neil, não escapa nada: sexo, racismo, distinção de classes, opressão feminina, traumas familiares, conflitos entre pais e filhos, hipocrisia, inveja... enfim todos os elementos que circundam um bom romance que vai da iconoclastia à ternura sem concessões.