Um Sonâmbulo na Corda Bamba

Os estóicos diziam que não somos aquilo que nos acontece. O que para nós, chamamos de acaso, e que portanto é visto com descaso, não era visto assim pelos os gregos. Para estes, os acontecimentos não aguardados se confundiam com sinais, com a auto-estima, como alguma coisa atravessada pelo divino. Restava-nos viver como amadores tateando nu labirinto de sinais. O livro de José Luiz Passos, “O Sonâmbulo Amador”, mostra-nos até que ponto os fatos são decididos por nós, e até que ponto são decididos por uma força maior onde o acaso detona uma série de sonhos, visões mal acabadas e irrealidades que como amadores tentamos desvendar. “O Sonâmbulo Amador” conta a estória de um funcionário de uma tecelagem no interior de Pernambuco. Jurandir, seu nome, é cidadão simples que está prestes a fazer uma viagem à capital do estado para resolver uma pendência burocrática. O protagonista aprender com a dor. Se solidariza com o sofrimento de um do operário da empresa onde  trabalha que teve o rosto desfigurado por um acidente de trabalho. Na função de porta-voz de uma espécie e cipa, Juandir tentará interceder por ele, na capital, e conseguir algum amparo pecuniário para a sua condição. 

Antes de viajar para Recife, Jurandir se depara com duas situações não de todo ordinárias. Primeiro, briga com uma colega de trabalho chamada Minie, com quem teve um caso e ainda mantem uma relação um tanto mal resolvida. Logo em seguida constata que ao chegar em casa, a mulher tinha transformado o quarto do filho num escritório. Isso basta para explicar o que está por vir. Jurandir começa sua viagem de carro para a capital. No meio do caminho para. Sai e  ateia fogo na Kombi.  O leitor tem a certeza de que Jurandir tem plena consciência de suas circunstâncias. Mas logo no capítulo seguinte, temos a certeza que o livro de Jose Luiz começa com a certeza estóica de que não somos, de fato, aquilo que nos acontece.

Muitas vezes, a dor, a violência, a tragédia esmagam a compreensão. Aristóteles dizia que o máximo do prazer apenas é atingido no exato instante do máximo de uma dor. Portanto, quem não tivesse essa dor tão forte e não tivesse, o corpo, ou a consciência, tomados por essa espécie de luz que ilumina o momento máximo da dor, que por exemplo poderia ser a perda de um filho, não saberia o que é o prazer.

No capítulo seguinte, como num desses sonhos mal explicados, Jurandir já aparece num manicômio. A trágica morte do filho adolescente, poderia ter esmagado sua compreensão. Mas na instituição psiquiátrica surgem os cadernos onde Jurandir descreve suas experiências tentando encontrar um norte argumentativo, no qual realidade e irrealidade entrelaçam-se iludindo o leitor amador num jogo de sono e vigília.


A partir daí o cotidiano dentro da clínica, sua vivência com Madame Góes, o enfermeiro Ramires e o Dr. Ênio começam a se confundir com seus sonhos. Nesse momento a narrativa adquire a tonalidade estranha e interessante de um filme de David Lynch. O passado, o presente, os sonhos, e a impossibilidade de futuro vão se fundindo e se confundindo numa também  impossibilidade narrativa. Interessante, e algumas vezes cansativa, a leitura destes sonhos nos induz a pensar que o que Jurandir busca é na verdade uma liberação de seus traumas através dos exercícios escritos sugeridos pelo Dr. Ênio. Através de reparações, ele tenta dar novos sentidos aos pesos do estigma que carrega: a falta de estrutura familiar, a perna manca por um acidente provocado, a perda do filho, o amor estranho e contemplativo que por um lado alimenta pela esposa, e o desejo que o consome pela amante sensual, o rosto do garoto que se queima... uma série de frustrações que vão se acumulando ao longo da vida, onde as tentativas de reparações não lhe trazem equilíbrio, e as tentativas de narra-las acontecem de forma fragmentária com frases curtas em poucos detalhes. Quando há detalhes, estes se tornam confusos, como os primeira hora da manhã quando tentamos rememora-los e colocá-los de uma maneira lógica, numa narrativa que se pretenda ser aquilo que nos acontece no sonho.

Os riscos que José Luiz Passos correu com esse livro, tanto no que escreve como no que procura esconder de sua escrita, em sua maneira própria de escrever, foram muitos. Risco maior foi arcar com a possibilidade de cair na travessia da corda bamba, em pleno sono. E neste contabilizamos o de tentar mostrar que, mesmo num contexto onde um protagonista tem sua humanidade anulada pela perda de um ente, da liberdade e da própria capacidade de concatenar conscientemente fatos e argumentos, ainda assim, consegue chegar ao outro levando uma idéia de justiça e de grandeza moral.

Mé e forévis, forever!


Quem já passou dos 40 anos lembra bem o que estava fazendo às 19:00hs, no primeiro domingo do mês de agosto de 1984. Estava assistindo Os Trapalhões! Naquele hiato entre o domingo de sol e aquela música horrenda do Fantástico a nos lembrar da segunda-feira, entrava o melhor programa da televisão brasileira para a molecada. Intelectuais de plantão irão dizer que o programa promovia violências intelectuais contra minorias étnicas, raciais e de gênero. Ô da poltrona, à época eu tomava cascudo dos guris mais velhos e cheguei a cair na porrada na porta da escola sem saber que isso era bullying por que o que importava para nós era  exatamente isso, Samba, Mé e Trapalhões!
A biografia do jornalista Juliano Barreto sobre Antônio Carlos Bernardes Gomes, o “Mussum”, lançado pela grande editora LeYa, é muito legal. Eu sei que o termo “legal” é impreciso, mas é o que me vem à cabeça quando lembro que não consegui levantar o forévis da cadeira enquanto não terminei o livro. O livro resgata memórias de um tempo em que as fotos coloridas ainda eram em papel fotográfico meio avermelhado e a família sempre aparecia meio desbotada. Não chega a ser uma ótima biografia, pois fiquei com um gosto de querer saber mais da história do Mussum e de sua vida pessoal. Mas reconheço o esforço do jornalista ao tentar resgatar o passado de um cidadão que nasceu pobre, filho de mãe solteira negra e analfabeta, batalhadora, e com no máximo uma certidão de nascimento, deve ter sido hercúloe.
A biografia  conta com partes de como cresceu num colégio interno esbanjando simpatia, trabalhando como mecânico, morando em cortiços para sobreviver, enquanto a fama não o tocava. Sempre enchendo a cara, mas sempre pontual, nas segunda-feira pela manhã, independente do tamanho da ressaca que o afligisse o homem era uma muralha. Partes tristes como quando teve que romper com Os Originais do Samba, e deixar para trás os amigos de longa data, para se dedicar aos Trapalhões, e inúmeras partes engraçadíssimas que te fazem rir sozinho. Em resumo, a biografia mostra  um grande homem por trás do humorista, mostra sua generosidade, sua impressionante capacidade de trabalho, e até mesmo sua relação com suas ex-mulheres que  - se recusaram a detraí-lo mesmo após a fama.
Sua trajetória televisiva, vista criticamente,  mostra o esteriótipo de um homem negro alcoólatra. O problema deste tipo de análise eram as segundas-feiras pois quando chegávamos à escola, as conversas inocentes sempre passavam pelo mé e pelo forévis de alguém. É inquestionável a presença de Mussum em nossas vidas, mesmo na das pessoas que juram de pés juntos não terem assistido Os Trapalhões.

Música do dia. Ray Charles and Betty Carter. Cocktails for two

Heráclito


Em 1935, o Partido Comunista botou o bloco na rua, chamou os revolucionários e achou que podia para fazer uma revolução. Não deu. E entre as maiores vítimas da tentativa de insurreição estava o ex-deputado alemão Harry Berger, que veio para o Brasil em 1935 junto com sua mulher Elise, para orientar comunistas urentes a conduzir massas ignotas à conquista do poder.   Se não me engano é ele que no livro Olga tem o dedo esmagado por um alicate de quebrar nozes assim que entra no carro da Polícia Especial de Vargas. O casal comeu o pão que o diabo amassou em terras tupiniquins. Elise foi estuprada na frente do marido e logo em seguida mandada de volta para a Alemanha, onde morreria num campo de concentração.
O destino de Berger foi inacreditável. Torturado com choques e porradas sem fim, foi deixado por um ano numa cela sem sol, sem corte de cabelo, sem banho, com pouca comida.... O tratamento desumano que Berger recebeu levou ao advogado Sobral Pinto a solicitar ao juiz responsável pelo caso a comparação de Berger a um cavalo. Levou o responsável pelo caso a concordar que:  se o Estado reconhece até os direitos dos animais, por que não haveria de aplicar o mesmo tratamento a um ser humano?
Este é um dos pontos mais interessantes do documentário “Sobral – O Homem que Não Tinha Preço”. Heráclito Sobral Pinto foi um homem vazado num molde que se perdeu ao longo da história do Brasil.  Torcedor do América, católico fervoroso e conservador, defendeu presos políticos do Estado Novo e da ditadura militar, incluindo o líder comunista Luis Carlos Prestes e foi responsável até mesmo pelo resgate de sua filha Anita Leocádia. Anos mais tarde atuou na defesa de Juscelino Kubitschek,  mesmo, conservador que era, sendo politicamente alinhado à UDN. Nos anos 80, já em idade avançada, ainda teve fôlego para subir ao palanque das Diretas Já. 

O documentário de Paula Fiuza tem partes engraçadas e tocantes: sua incapacidade para ganhar dinheiro, ou melhor saber ganhar dinheiro mas não saber como cobrá-lo de seus clientes, mesmo estando tão próximo ao poder, e sua culpa, que se arrastou até o fim de sua vida, por ter tido uma... “amiga”... nos anos de juventude. Sâo elementos humanos que tornam Heráclito um mito brasileiro.

Assistir este documentário dias antes de uma eleição presidencial como esta que passou, pode não ser aconselhável. Pode causar danos irreversíveis à tentativa desesperadora de dar sentido à nossa obtusa alma nacional. 

Discursos dos Eleitos

O Ilusão da Semelhaça renasce como Fawkes hoje...

Quando soube que Ronald Reagan não escrevia seus próprios discursos, confesso que passei a desconfiar do óbvio: o ator lia os scripts feitos sob medida pela equipe de Larry Speakes. A saia justa de Speakes em Reagan ao anunciar que os discursos do chefe eram um bando de citações clonadas e adaptadas às circunstâncias, nunca foi confirmada por Reagan que, ao contrário, preferiu desmentir o subordinado, afirmando que nunca confiou muito no seu Press Secretary. Mas o mais estranho de tudo é que, independente de quem as escreveu, duas frases de Reagan não me saem da cabeça hoje:
 

Status quo, you know, is Latin for “the mess we’re in”
 

I think the best possible social program is a job.