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O Balzaquiano Flaubert: 140 anos de pura malemolência


Ernest Pinard foi um ministro do Interior francês, facilmente olvidável, a não ser por alguns detalhes de sua biografia. Nivelados por baixo, Pinard e Sérgio Moro guardam alguma semelhança. Ambos tinham ambição maior que seus estômagos, e ambos tiveram carreiras meteóricas.


Pinard decidiu ingressar no judiciário e, em maio de 1849, sendo nomeado procurador adjunto em Tonnerre. Em dezembro de 1851, ele se tornou procurador adjunto em Troyes e, em dezembro de 1852, em Reims. Em outubro de 1853, foi nomeado procurador adjunto no Tribunal do Sena em Paris onde aí sim começou uma espécie de Lava Jato dos bons costumes franceses.

 

Apenas para contextualizar, Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, Sobrinho de Napoleão,  que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac – uma espécie de Haddad das bandas de lá. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas. E é justamente aqui que Marx escreve "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.


Com a faca e o queijo na mão, Pinard não pensou duas vezes.  Lascou de processar todo mundo. De repente quis moralizar tudo. Em 1857, foi a vez de Baudelaire, por causa dos poemas de Flores do Mal; depois,  Eugénie Sue por seu Os Mistérios do Povo,  e por fim, Gustave Flaubert por Madame Bovary. 



Contra Baudelaire, ainda conseguiu banir 7 poemas do conjunto do Flores do Mal, por temática, ora veja você, lésbica (!) e sadomasoquista (!). Diga-se de passagem, a proibição permaneceu até 1948!  


Já contra Flaubert, o distinto se deu mal. Flaubert não só foi absolvido, como o processo  rendeu uma excelente publicidade à sua preciosa história de adultério, decadência e miséria provinciana que enredava seu Madame Bovary.


Pinard bem podia ser um personagem secundário de Flaubert, em A Educação Sentimental  -  escrito poucos anos depois do processo levantado por ele em sua opération lava jatô pessoal.  Eu particularmente desconfio, se me permitem, dada a licença poética, que  Jacques Arnoux tem algo dos cornos cuspidos e escarrados Ernest Pinard. Mas se  nem Lukács, nem Bourdieu falaram nada dos cornos que menino Moreau colocou na testa de Sr. Arnoux, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 


O fato é que em Pinard passou para a história com justiça poética: como apenas uma anedota verborrágica e censória. E nos anos 1980, ainda que alguns intelectuais tentassem imputar em Flaubert vários delitos de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, abuso de menores e algumas  outras vigarices, Flaubert permaneceu um gênio da descrição, do mal e da minúcia. Para mim, A Educação Sentimental, mais até que Madame Bovary, é um clássico de formação para um jovem. Ele tem um força incontida, indomesticável, que busca o absurdo e a beleza em cada descrição dos meandros psicológicos dos personagens.


Este mês se celebra 140 anos de morte de Flaubert. Flaubert continua Flaubert, e o malandro Ernest Pinard, não passou de um burocrata da Segunda República francesa. Mas ainda assim, conseguiu cavar uma vaguinha como procurador geral francês em Douai,e terminar a vida com uma aposentadoria legal … Moro, muito mais perigoso que Pinard, ainda está aguardando o desfecho do nosso 18 Brumário, pra ver se ele também consegue beliscar alguma daquelas prebendas prometidas lá atrás, durante o golpe do impeachment, na negociação com MPF da República das Araucárias, jogada no ventilador pelo The Intercept,  no episódio da prisão de Lula nas vésperas da eleição, impedindo sua candidatura… enfim, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 

O Pai Goriot



Rapaz da Provença, Eugênio Rastignac é moço ambicioso. Vive numa casa de cômodos onde conhece o Sr. Vautrin que lhe mostra o caminho das pedras a procura de um casamento nobre, passa por humilhações e avanias. O que há de mais terrível nessa sua ambição pela ascensão rápida é a falta de dinheiro que ele tenta contornar aproximando-se de Goriot. Aproximando-se do patriarca Goriot – ex-comerciante, que enriqueceu tremendamente com a especulação de trigo em tempos de crise, inquilino da pensão Vauquer, na zona central da cidade,  o velho é um espectro que havia sido, e no momento do romance não passa de um homem bronco -  humilhado pelas filhas, genros e serviçais -, aproveitando-se da fragilidade e isolamento deste, Rastignac procura se tornar amante de uma das filhas do velho, a Baronesa Nucingen. Sr. Vautrin, nababo de se babar e um dos inquilinos da Pensão de Vauquer, passa a lhe emprestar dinheiro de maneira cordial, e nos diálogos entre os dois Vautrin solta essa pérola tautológica da Literatura Universal....

“Uma fortuna rápida é o objetivo de cinquenta mil rapazes que se acham na mesma situação que você. Você é apenas uma unidade neste número. Avalie os esforços que terá de fazer e a ferocidade do combate. Como não há cinquenta mil bons lugares, vocês terão que devorar-se uns aos outros, como aranhas num frasco. Sabe como se faz uma carreira aqui? Pelo brilho da inteligência ou pela habilidade da corrupção. Eh preciso penetrar nessa massa humana como uma bala de canhão, ou insinuar-se no meio dela como uma peste. A honestidade não serve para nada. Todos se curvam sob o poder do gênio. Odeiam-no, tratam de caluniá-lo, por que ele recebe sem partilhar. mAS curvam-se se ele persiste. Numa palavra, adoram-no de joelhos quando não o puderam enterrar na lama. A corrupção representa uma força por que o talento é raro. Assim como a corrupção é a lama da mediocirdade que abunda, e você sentirá sua picada por toda a parte. Verá mulheres cujos maridos só têm seis mil francos de vencimentos, gastarem mais de dez mil em vestidos. Verá empregados de mil e duzentos francos comprarem terras. Verá mulheres se prostituirem para passear em carruagens dos filhos dos pares de França, que podem correr Longchamps pela avenida do centro. Você viu esse pobre animal do pai de Goriot obrigado a pagar a letra de câmbio endossada pela filha, cujo marido tem cinquenta mil francos de renda. Aposto minha cabeça contra esse pé de alface que você encontrará um vespeiro na casa da primeira mulher que lhe agradar, mesmo que seja rica, bela e jovem. Todas elas vivem procurando iludir as leis, em guerra com os maridos a propósito de tudo. Eu não acabaria mais de falar se fosse preciso explicar-lhe os negócios indecorosos que se fazem por amantes, por vestidos, pelos filhos, pelo lar ou pela vaidade, raramente por virtude, pode estar certo. Assim, o homem honesto é o inimigo comum. Mas que pensa você que seja um homem honesto? Em Paris, o homem honesto é aquele que se cala e se recusa a partilhar. Não falo desse pobres idiotas que em toda a parte cumprem seu dever sem jamais serem recompensados por seus trabalhos, e que eu denomino a Santa Confraria dos Sapatos Velhos de Deus. Eh certo que neles reside a virtude em todo o esplendor de sua estupidez, mas neles também reside a miséria. Já estou vendo as caretas dessas honradas pessoas se Deus nos fizesse brincadeira de mau gosto de não comparecer no Juízo Final. Portanto, se você quiser obter fortuna imediatamente, é preciso já ser rico ou parecê-lo.”

Le Colonel Chabert


O conto Le Colonel Chabert foi escrito em 1832, logo após a revolução de julho 1830. Apesar de uma curta estória, Balzac envolve como ninguém o contexto histórico com a urdidura de uma trama melancólica – e diria com muita descontextualização pré-kafkaniana. Coronel Chabert era um herói de guerra que ao lado de Napoleão Bonaparte participara de campanhas vitoriosas. Entretanto, Napoleão morrera em 1822, após a derrota de Waterloo e o ostracismo de Santa Helena. Agora, temos Louis-Philippe d'Orléans no poder – aliás, curiosidade, a filha de D. Pedro I, a infanta Chiquinha de Bragança acaba casando-se com o filho de Louis-Philippe - que com muita dificuldade tenta conter a onda liberal que varre a Europa e desencadeará na Primavera dos Povos.

O problema é que assim como Napoleão de fato está morto, o Coronel Chabert está apenas teoricamente morto. Chabert tinha sido atacado por dois oficiais russos na Batalha de Eylau em 1807 e dado como morto. Neste meio tempo, entre a vida e a morte, um amigo dos campos de batalha, Boutin, fora a Paris levar a notícia da convelescência de Chabert à sua esposa, a jovem Rose Chapotel. Vivinho da Silva, escreve umas quatro cartas a sua esposa que capitunamente – advérbio de modo para Capitú – mantém segredo sobre as cartas e dá entrada na papelada do espólio. Após alguns anos, Chabert descobre que a senhora Chabert casara-se com o Conde de Ferruad passando a ser senhora Ferruad.

A estória vai ficando clara quando Chabert decide, numa manhã de fevereiro, procurar o jovem advogado Derville - que aparece em algumas outras obras como em O Pai Goriot [resumo em caminho] - , que dormia num dos quartos de seu étude, enquanto seus auxiliares rascunhavam petições e revisavam o trabalhos recém-chegados. Uma das petições era fina e i-ro-ni-ca-men-te sobre uma longa peça jurídica, em que o rei Luís XVIII restituía a seus servidores todos os bens não vendidos que estivessem sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários. Entre piadas de mau gosto e o humor dos médicos legistas os auxiliares riam de suas próprias invenções e esperavam que o juiz encarregado do processo ficasse impressionado com a argumentação que teciam.

O Coronel Chabert, a princípio não causa boa impresão a Derville. Sua aparência esfarrapada, degradada e carcomida pelo tempo, causou uma certa reulsa ao jovem procurador, que via em seu rosto pálido a aparêcia triste dos que tinham perdido tudo. Derville, que defendia os interesses de seus clientes no Tribunal de Pimeira Instância do departamento do Sena, era considerado um dos melhores jurisconsultos de Paris. Sua clientela era importante e é pintado por Balzac como um jovem bom, mas que tem um sentido de oportunidade e um faro para o dinheiro bastante apurados. Chabert quer seu dinhero e mais que isso, sua honra restituida. Para isso contata a Derville, que lhe adianta uma pequena monta de dinheiro para que o Coronel pudesse viver com mínima dignidade até um possível acordo entre as partes. No entanto Derville é também procurador do Conde de Ferruad e para evitar um escândalo, propõe às partes um acordo.

Cheque: se Rose Chapotel reconhecesse Chabert, terá de anular seu casamento com o Conde de Ferruad, com quem tem dois filhos. Chabert, não tendo nenhum familiar próximo que pudesse identificá-lo, baseado nos documentos de defunção vindos de Heilsberg, só conta com Rose. Ela, capitunamente, dá uma de João-sem-braço, (perdoe o trocadilho) finge-se de morta, apela para a hipócrita condição de mãe de dois filhos tentando convencer a Chabert de sua fragilidade e condição oprimida. Derville propõe um acordo pois a situação de Hyacinthe Chabert era delicada. Nem seus bens, nem sua honra estavam sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários, portanto a restituição não seria feita por decreto. Além disso, vários motivos tornavam tudo mais complicado. Primeiro, supondo que Rose o reconhecesse, ela incorreria no crime de extra matrimonium corneamentus por ricardisse bigâmica, já que está casada legitimamente com o Conde Ferruad com quem tem dois filhos – e obviamente ela não incorreria no risco. Segundo, os juízes poderiam muito bem anular o primeiro casamento que sem filhos expunha um vínculo frágil entre Chabert e Rose. Terceiro, sendo Chabert generoso e idealista, fizera um testamento endereçando uma quarta parte da herança para obras de caridade. A “viúva” não incluíra no espólio nem prataria, mobiliário, ou dinheiro, apenas propriedades. Portanto, mesmo que reavesse algo, Chabert ficaria com uma mínima parte. Por último... a justiça naquele tempo, na França, era morosa... Chabert era um ansião... assim, Derville propõe um acordo amigável, anulando o registro de óbito e seu casamento. Com isso, por influência do conde Ferraud, Chabert seria reinscrito nos registros do exército, obtendo o grau de general Juruna - na gíria da caserna - com direito a uma pensão.

No dia do acordo, Chabert e Rose frente a frente, não houve acordo. O tempo fechou. Armou-se o maior barraco. Ela o acusava de impostor, ele, por sua vez, afirmara que ela era protitutamente quenga da mais alta piranhuda espécie no Palais Royal. Verdade ou não, ela sente-se ofendida e sai do escritório do advogado chorando, correndo e fazendo beicinho. Porém, fica do lado de fora de sua carruagem esperando por Chabert. Na saída aproxima-se de Chabert toda edulcorada, cheia de lesco-lesco, fazendo questão ele fosse com ela à casa de campo em Crosley. Durante o trajeto, procurou chegar ao coração mole do milico, mostrando o quanto seria desgastante para todos aquela situação. Ficaram lá por três dias, fazendo o quê, eu não sei, nem Balzac revela. Mas o fato é que não chegaram a um acordo. E como madame Ferraud não era flor que se cheirasse, armou uma cena com os criados da propriedade.

Ela queria internar o Coronel como louco no hospício de Charenton. Para isso precisava da assinatura de Chabert num documento onde este admitia sua falsa identidade. Derville longe, não sabia de nada. Ela manda trazer os filhos tentando mostrar a Chabert que ela era uma mãe dedicada, sofredora e penitente, e que se ele continuasse com a demanada ele prejudicaria seus filhos. Ele até aventou a hipótese de virar arrimo de família, habitando a quinta, tendo uns tostões para o jornal e o tabaco. Mas ela tinha outros planos. Encarregou Delbec, um velho secretário, a providenciar, junto ao tabelião de Saint-Leu-Taverny, um documento vago para ser assinado por Chabert. Estes partem para Saint-Leu-Taverny, mas chegando ao cartório e vendo os termos do documento, Chabert decide voltar para a quinta sem assinar nada. Decide pensar no que fazer. Ficar a sós com Rose. Ele espressara seu desprezo por ela e partira.

A situação de Chabert é tão humilhante quanto compassiva. Derville é informado por Delbec que seu cliente reconhecera sua falisade ideológica. Derville decepcionara-se com seu cliente até que algum tempo depois, procurando por um advogado no prédio da Polícia Correcional, encontra a Hyacinthe, condenado por vagabundagem a dois meses de prisão em Saint-Denis. Aproximou-se dele que com um ar estóico e altivo explicou o que se passara naqueles dias na quinta.

Derville entra em parafuso com sua profissão dizendo que “nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar.” E num monólogo ilustrativo expõe sua visão bucólica sobre a condição humana, “Vi morrer um pai, num sótão , sem vintém, abandonado por duas filhas a quem dera quarenta mil libras de renda. Vi queimar testamentos; vi mães roubando seus filhos, maridos reduzindo esposas à miséria, mulheres matando seus maridos e servindo-se do amor que lhes inspiravam para fazê-los loucos ou imbecis, para poderem viver em paz com seus amantes. Vi mulheres dando ao filho do primeiro leito gostos que deviam conduzi-lo à morte, a fim de enriquecer o filho do amor. Não posso dizer-lhe tudo que vi, porque vi crimes contra os quais a justiça é impotente. Finalmente, todos os horrores que os romancistas julgam inventar estão sempre abaixo da verdade. Você conhecerá essas belas coisas. Quanto a mim, vou viver no campo, com minha mulher.”

Música do dia. A Trombone on Tereza Street. Ian Guest. in Vittor Santos, Renewed Impressions.

Eugénie Grandet


Eugenia Grandet ou Eugénie Grandet, novela de Honoré de Balzac é parte do projeto da Comédia Humana. De um modo geral a estória trata de Eugenia, a portagonista, filha de um rico e ambicioso homem de província e de como essa prosaica, trivial e até ingênua mulher contorna a realidade de uma vida familiar solitária e sem desafios. A composição dos personagens que giram em torno a Eugenia é de uma riqueza psicológica que só mesmo Balzac poderia criar. A moça é bela e apesar de passar dos 20 anos ainda mantém uma certa inocência dada pela combinação das convenções sociais da vida no interior e a constante vigilância da mãe, uma mulher infeliz e, segundo a descrição de Balzac, não lá muito dotada de beleza física. Pela lenda que corre na cidade de Saumur, o pai, o senhor Grandet, possui uma fortuna incalculável e isso desperta a cobiça das famílias locais em torno da mão se sua jovem filha, ainda que esta se mantenha fiel ao seu jovem primo Charles que chega de Paris após a falência e morte do pai.

É uma estória de trama simples, mas que retrata de maneira bem cinematográfica a escalada de um plebeu que nada mais vê a sua frente que o brilho enriquecedor do ouro. A ganância do senhor Grandet é inescrupulosa. Chega a ser caricata mas não de todo inverossímil, pois mostra bem a trajetória de um novo rico de província que coloca a ascensão social e financeira acima de sua própria família, da esposa, da filha única Eugénie, e da empregada Nanom - que de certa forma participa dos meticulosos gestos mesquinhos de seu senhor para salvar sua própria pele.

É nesse cenário de uma casa solitária, monótona e melancólica, que a introspectiva Eugenia habita, até que seu primo Charles chega de Paris. Nesse momento da chegada do sobrinho, o senhor Grandet recebe a trágica carta anunciando o suicídio do pai de Charles, seu irmão. Charles que chegara com hábitos cosmopolitas, roupas estranhas e extravagantes jamais vistos pelas mulheres, havia sido enviado a Saumur pois seu pai falira e não tendo mais condições de criar o filho, envia-o aos cuidados do tio. A monotonia em que Eugenia vivia logo se apaga. A jovem passa a querer agradar o rapaz a todo o custo, ordenando que a empregada preparasse pratos especiais, providenciando velas para que ele pudesse ler à noite... Tal mudança de comportamento é notada pelo avarento Grandet.

Charles ao saber da falência e suicídio do pai, entra em depressão profunda o que causa verdadeira comoção nas mulheres da casa. Eugénia, ainda abalada e compadecida pela notícia invade sorrateiramente o quarto de Charles que estava adormecido e lê algumas de suas missivas. Numa destas, pede a um amigo para vender seus pertences e pagar todas suas dívidas, já que irá tentar a vida nas Índias. Noutra, descobre que Charles tem uma namorada em Paris o a torna apreensiva. Entretanto, ignorando a dor do sobrinho, o senhor Grandet, articula sua ida às Indias com o intuito de se livrar de uma boca a mais na casa. O intuito avaro do homem contrasta com o sentimento de misericórdia e admiração da filha, Eugenia e da mãe desta. E percebendo as articulações do pai, Eugenia dá a Charles umas moedas de ouro, presente de seu pai, para que ele recomeçe a vida nas Indias.

Agora, do meio para o fim de um livro que é impossivel largar, a ironia fina de Balzac começa a operar. Charles, após anos nas Índias fica tal qual Grandet, com perdão da má palavra um somítico. Como se o individualismo e a escrotice de Grandet tivessem passado por osmose, ao passo que Eugenia passa a adquirir certos rasgos de personalidade do pai, Charles, distante, viajando por anos em mares das Indias e das Américas, se embrutece e esquece o amor que prometera a Eugenia. Nessas viagens faz dinheiro comercializando escravos negros e chineses e praticando a usura. O embrutecimento, talvez decorrente de suas atividades, torna a relação com a prima uma relação distante e meramente financeira, já que ela emprestara seu primeiro capital para iniciar a viagem.

Enquanto isso, Eugénia perde mãe e logo em seguida o pai. O espólio a torna tão quanto uma mulher rica, uma mulher em busca – continuando o legado da nossa miséria - da solidificação da fortuna do pai. De uma maneira mais branda, é verdade.

Alguns anos se passam até que recebe uma carta de Charles contando que se casaria com uma das herdeiras dos Aubrion, em Paris. Destruída toda a ilusão vê quão falsa foi sua espera e sua esperança. Descide então se casar por conveniências com o advogado Bonfons, não sem antes imbuí-lo de uma missão: ir a Paris e saldar as dívidas do primo. Porém, quis o destino que o rapaz morresse após breve trajetória política, revelando que este, não o destino, mas Bonfons não fosse o homem tão respeitoso que ela pensava se tratar. O rapaz tinha, como dizia-se no tempos antigos “amigas”.

Um romance simples, mas Balzac possui uma capacidade de descrição psicológica e corrosiva do endurecimento da alma diante das ascensões materiais. O livro termina num tom um tanto melancólico, nem tanto pela aura de contorno romântico com a qual Balzac envolve a jovem, mas pela forma com que Balzac optou por conduzir a estória em dois campos sem tramas paralelas ou zonas cinzentas. Balzac nos faz viajar em dois continentes isolados, um mundo da ambição patriarcal e um mundo de ingenuidade onde a protagonista, Eugenia, gradualmente se anula, e que raramente se cruzam.
No meio do livro ainda há uma esperança. O leitor embarca na possibilidade do romance açucarado de Eugenie e Charles, quando esta tenta com suas parcas armas de sedução conquistar Charles. Essa é a mesma esperança de Stefan Zweig na biografia de Balzac quando lá pelas tantas diz, “A pequena Eugenia Grandet, em si trivial e um pouco ingênua, ao não se sujeitar ao olhar ameaçador de seu pai avarento por um torrão de açúcar no café de seu querido Charles demonstra tanto valor como Bonaparte quando atravessa precipitadamente a ponte do Lodi com a bandeira na mão.” Só para constar -até para mim que não sabia -, a batalha de Lodi foi o episódio no qual Napoleão derrota o marechal Beaulieu abrindo caminho austríaco para que as tropas francesas cheguem a Milão. A comparação é, sem intermitência, não sem intencionalidade, pois antes da virada do século ninguém sabia no que Napoleão se transformaria. Tampouco no que Eugenia viria a se tornar após a morte dos pais. Mas no final, com Eugenia já balzaquiana - perdoem o tocadilho - e portanto sem a ingenuidade de outrora, as famílias locais começando a confabular novamente sobre a da mão da jovem viúva, não há como não lamentar o legado da nossa miséria.

Sentimentos



O historiador Arno Mayer em seu grande livro The Persistence of the Old Regime: Europe to the Great War, sustenta que na Europa do século XIX, mesmo com toda a modernização da Segunda Revolução Industrial, mesmo com todo o avanço no campo econômico, era lenta no campo social. Lenta por que haviam forças remanescentes do Antigo Regime que somente viriam a cair a partir da Primeira Guerra Mundial.

Recentemente, lendo L'Éducation Sentimentale, onde Flaubert narra de maneira inviolavelmente distanciada as circunstâncias da Revolução de 1848 e o nascimento, em plena chapa quente, do "Manifesto Comunista", percebi que a tese de Meyer pode não ser de todo errática.

A força da tradição a qual Mayer se refere trata fundamentalmente da persistência que a classes aristocráticas, encalacradas nas esferas de poder do Estado, tiveram na deflagração da I Grande Guerra. Com o fim da Guerra, era necessário uma nova diplomacia que não cometesse os mesmo erros de Versailles - bom com a guerra dos Balcãs, vimos que o buraco seria mais embaixo. Fato é que a Velha Diplomacia, dos tratados secretos, das viradas de mesa dos bastidores cedeu lugar à Nova Diplomacia pautada na teses de Lênin e de Woodrow Wilson.

A falência desse, digamos assim, antigo regime, criou uma certa ilusão nas classes médias contemporâneas de que viveriam felizes para sempre no mundo dourado da meritocracia. O cidadão então pensou que bastava ganhar dinheiro para os comprar para se tornar um incluído no seleto grupo aristocrático, absorvendo assim seus valores. O"self-made men" burguês, incluto e iletrado, cedeu ao bosta, pois passou a frequentar o tal do shopis centis e incorreu num erro mais grave. Passou a viver ignorando ou em alguns casos pensando ilududamente que procedência, sobrenome, proveniência e todas as metáforas do antigo regime cairíam totalemente. Pensou, erroneamente, que podia ser igual ao cara que vem de berço. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, e o enterro do Velho Mundo que o conflito arrastou consigo, quase tudo mudou, mas ter nascido em bom berço - e no caso brasileiro, ter um nome com mais de 6 sobrenomes - ainda ajudou muito para abrir portas.

Um dos grandes intelectuais do Século XX a desvendar essa face cruel da sociedade, foi o Pierre Bourdieu. Desmascarando a "ideologia da igualdade de oportunidades" - ideia que tem que ser dita bem baixinho, com muita delicadeza, quase sussurrando para não ferir os brios dos marxistas – Bourdieu marotamente substituiu a idéia que determina um burguês. O poder de uma classe social, ao menos no campo literário, para Bourdieu, não é determinado pela posse material da propriedade privada ou voilá pela posse dos meios de produção, mas sim pelo uso de um poder subjetivo que vai se construindo pouco a pouco. O poder simbólico. Um poder permeado pelas idéias de esferas de valor, influência, ascendência, autonomia. Ou seja, o que determina a importância literária de um livro, não seria produção material do objeto livro em si, mas a produção de seu valor. Em outras palavras, escrever todo mundo é capaz, publicar um livro talvez seja fácil também pois te um monte de palha no mercado, mas então se escrever é, com algumas regras básicas, aparentemente possível, e se publicar também, o que determina o sucesso de um livro? Para Bourdieu o que definiria isso seria o tal valor agragado que está para além da produção material da obra.

Boa parte da teoria em torno ao que ele chama de habitus, vem sendo trabalhada por Bourdieu desde os anos 1960, quando o sociólogo, que era na verdade antropólogo, estudava a dinâmica de matrimônios arranjados e seu impacto na dinâmica econômica das tribos de Kabyla, no norte da Argélia. No livro Les règles de l’art. Genèse et struture du champ litéraire, Bourdieu estuda exatamente o L'Éducation Sentimentale de Gustave Flaubert.

Depois de quase 3 meses de idas e vindas, anotações e leituras paralelas... terminei o livro L'Éducation Sentimentale de Gustave Flaubert e o Las Reglas del Arte, já que mon frances est tres bizarre pa podê lê nu orriginale.

Por que tanto tempo? Este não é um livro de fácil leitura, tampouco um livro como qualquer outro. São pelo menos 25 personagens medíocres que aparecem e desaparecem no contexto de dois grande grupos. Primeiro, os personagens que orbitam o universo do protagonista, Frederic Moreau. Segundo, os personagens que giram em torno da familia Arnoux, com quem Frederic trava contato ainda nos tempos de universidade.

Frédéric Moreau. O protagonista e o nosso jovem herói. Um provinciano francês que em seus altos e baixos termina como um dos membros da classe média francesa.

Jacques Arnoux. Editor, industrial do ramo de porcelanas, especulador, avalista, conquistador e principalmente chavelho.

Mme. Arnoux. Mãe de dois, Marthe Arnoux e Eugène Arnoux, meio Capitú, consorte, sem sorte, por querer esquentar seus pés justamente com Frédéric Moreau.

M. Roque. Um mediano prorietário de terras e espécie de guarda-livros (essa palavra ainda existe?) de M. Dambreuse. Pai da adorável Louise Roque, que tem o terrível defeito de só pensar em uma coisa na vida: casar.

Louise Roque. Adorável filha de M. Roque, que por só pensar em casar, apaixona-se por Frederic, mas casa-se com Deslauriers, um dos elhores amigos de Frederic.

M. Dambreuse. Banqueiro, aristocrata, provavelmente gordo e hipertenso. Casado com Mme Dambreuse, mulher mais jovem e cheia de fugor, com quem Frederic tem um caso e parte de suas dívidas pagas.

Mme Dambreuse. Esposa do banqueiro provavelmente gordo, diabético ou hipertenso Dambreuse. Jovem e cheia de fugor, a viuva tem um caso com Frederic.

Charles Deslauriers. Estudante de direito e melhor amigo de Frederic. O oposto de outros amigos de Frederic tal como Cisy. E ambicioso e inteligente. Tem ambição mas carece das relações sociais que possam catalisar suas ambições. Pela falta delas, vive num universo de inocência colegial pois ao mesmo tempo que tem ambições estéticas, ignora determiandos mecanismos sociais tais como o esnobismo. Flaubert é cruel com nosso amigo: “Por ser pobre, ambicionava o luxo em suas formas mais transparentes”

Baptiste Martinon. Estudante de direito. Tem berço pois é filho de um fazendeiro. Mesmo tendo berço e dinheiro, é retratado com workaholic e talvez por isso, ou apesar disso, termina como Senador, no fim da novela.

Marques de Cisy. Um nobre que nas horas vagas é estudante de direito. Flaubert o retrata como um personagem bonito, co boas relações e com dinheiro, mas pouco inteligente.

Sénécal. Professor de matemática, puritano, provavelmente careca e um Republicano dogmático.

Dussardier. Comerciante dono de um pequeno comércio. Um republicano idealista, mas sem muita fundamentação teórica.

Hussonet. Jornalista e crítico teatral, que com as manifestações do 1848 acaba por controlar a impensa e os teatros.

Regimbart, O Cidadão padrão. O revolucionario que de tão revolucionário se tornou um chuavinista. Com seu discurso tão revolucionário, se tornou uma sombra patética e incosistente do que foi.

Pellerin, um pintor com mais teorias que talento e que passa a ser fotógrafo - possso estar iludido como sempre, ams Luiz Antônio Assis Brasil escreveu recentemente um livro ( O pintor de Retratos) ondeseu portagonista Sandro Lanari, lembra vagamente Pellerin.

Mlle Vatnaz, quase feminista, quase escritora, quase atriz, e competente cortesã.

M. e Mme Oudry, e Dittmer, conviva de Arnoux

Delmar, ator, cantor e nada mais.

Catherine, governanta de M. Roque.

Eléonore, mãe de Louise Roque.

Tio Barthélemy, o tio que Frédéric mais ama e que quer que morra logo, para herdar a herança prometida.

Rosanette Bron, "A Marechala" courtesã, última esposa e viúva de M. Audry.

Clémence. Amante de Deslauriers.

Marquês Aulnays. Padrinho de Cisy; M. de Forchambeaux, seu amigo, Barão de Comaing, outro amigo; M. Vezou, o tutor.

Cécile. "sobrinha" de M. Dambreuse. Na verdade filha ilegítima.

Mas sua complexidade e corrosiva sutileza não residem na quantidade de personagens, mas na interseção destes, e na magistral maneira como Flaubert conduz a obra mostrando como o personagem principal refuta paulatinamente a realidade deixando quase que exclusivamente os outros personagens da novela tomarem das principais decisões e diratem os rumos da novela. Bourdieu chega a dizer que “Frederic não consegue comprometer-se nem com o mundo dos jogos da arte tampouco com o mundo do dinheiro, como propõe sua realidade social. Refuta a Illusio como ilusão de realidade, se refugia na ilusão verdadeira, cuja a form por excelência é a ilusão novelesca em suas formas mais extremas".

Esta novela é uma obra-prima. Talvez não tão rica em termos de adultérios e reviravoltas como Madame Bovary, mas talvez mais interessante para um leitor contemporâneo e urbano, pois não há nela a tentativa da protagonista de fugir de sua condição banal e vazia da vida provinciana vivida por Emma Bovary, em Rouen, na Normandia. Não há um marido como o entediante marido de Bovary. Não há, entre conquistas e decaídas, a série de amantes que Bovary vai colecionando ao longo de sua vida. O que há em L'Éducation Sentimentale, uma novela não menos polêmica mas totalmente diferente da publicada doze anos antes, é a visão sobre o fracasso de uma geração inteira que vê pela primeira vez seus ideais fundados na Revolução Francesa, rumarem ralo abaixo. De certa forma, incitou a literatura realista com a criação de personagens percebem a sua vida medíocre e lutam para se ver finalmente “livres”.


O tema do aultério é sem dúvida recorrente em suas páginas. A novela de tom irônico e pessimista, retrata vinte e sete anos da vida de Frederic Moreau e de sua paixão por uma mulher mais velha, Madame Arnoux. No início da novela, Frederic Moreau, um jovem provinciano, estudante de direito, passa parte de sua juventude de estudos em Paris da década de 1840. Certo dia conhece Mme. Arnoux, esposa de um editor de uma revista de arte e um comerciante de quadros com uma loja em Montmartre. E se apaixona por ela.

Frederic é um jovem sonhador e indeciso sobre que carreira seguir, dentre as muitas que se abririam na burocracia estatal, assim que terminasse a faculdade de Direito. O problema é que é um jovem sonhador, com algumas veleidades literárias, artísticas e mundanas. Outro porblema, por ter tido tudo tão fácil, nunca se esforçou para alcançar nenhum de seus objetivos. Por uma capacidade intuitiva, pensava que poderia ter tudo que quisesse, bastava que para isso fosse para Paris e se relacionasse com a burguesia e a aristocracia. E nesse ponto cabe uma observação no que tange à oposição social na amizade de Frederic e Deslauriers. Frederic é tão pobre quando Deslauriers, porém tem a possibilidade de se tornar um herdeiro, e isso os diferencia, da mesma forma que diferencia os que herdam e os que apenas tem a aspiração de possuir. Bourdieu, em sua análise estruturalista, diz que essa é a diferença essencial entre os burguês e o pequeno burguês.

Para penetrar nesse estreito mundo, tenta se oncluir no círculos dos Dambreuse, banqueiro, aristocrata, provavelmente gordo e hipertenso, casado com Mme Dambreuse, mulher mais jovem e cheia de fugor. Ledo engano. Mesmo atado às formalidades típicas de um provinciano, Frederic, em sua cordialidade, tenta estreitar as distâncias pessoais que o separam de outros parisienses, priorizando os laços afetivos, criando uma intimidade com aqueles com quem se relaciona. Essa busca pela intimidade com seus pares, alheia aos fatos e às diferenças que os distanciam, poderia possibilitar sua ascendência, não fosse sua tendência à mediocridade. Com a acolhida fria que recebe nos altos círculos, volta a desaparecer na incerteza, em seu ócio e em sua solidão. Paralelamente, frequenta outros grupo de jovens estudantes e boêmios: Martinon, Cisy, Sénécal, Dussardier e Hussonnet. No contexto desse grupo é convidado a ir à casa dos Arnoux, onde reencontra a Madame Arnoux e demosntra sua atração. Entretanto, ela aparentemente não corresponde à suas iniciativas.

Parte então de férias para sua Nogent natal. De sua mãe, recebe a notícia de que a situação finaceira da família é delicada, mas há uma luz: a morte de um tio velho e cheio da grana. A situação precária, não o abala, especialmente por que conhece a Louise Roque, que se apaixona por ele. Mas o dândi já frequentava a cidade, e agora com a possibilidade dos bolsos cheios de dinheiro, não havia muito espaço para Louise.

De volta a Paris, passa a frequentar mais e mais a casa dos Arnoux. Torna-se tão íntimo que passa a dividir segredos com Arnoux. De fato, Flaubert dá um pontapé na idéia de moralidade dos românticos por considerá-la um ultraje, mais do que um modelo a seguir. Frederic conhece a amante de Arnoux, a cortesã Rosanette. E nesse contexto de noitadas e cafés, aproveitando-se da derrocada econômica e de suas dívidas,algumas das quais Frederic fora avalista, este aproveita-se da situação para tornar-se amante de Rosanette e dos encantos da vida luxuosa.

(CONTINUA)
Música do dia. Sentimentos do disco "Memórias - Cantando" - Paulinho da Viola.