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O peso de uma pedra, como se diz

Não que fosse totalmente desconectado com a realidade. Claro que admitindo isso significaria ter que confessar que o fim trágico de Agladze, o protagonista de “There Once Was a Singing Blackbird”, filme de Otar Iosseliani, não foi obra de um ardil secreto. As sutilezas, que muitas vezes tentamos negar, sobre o total desconhecimento das ações e acontecimentos que determinam nossas vidas, iludindo-nos que um fim pré-determinado, ou um fim já traçado, exista, leva-nos a crer que a fatalidade da morte de Agladze estivesse talvez em conexão com alguma forma de acaso ou destino a prazo fixo. Me recuso a aceitar isso pelo simples fato de que se assim fosse, uma discussão sobre a responsabilidade de nossos atos seria superflua. Para todos os efeitos, Agladze, como músico levava de certa forma uma vida lúdica, como num desenho mágico, com um andar tímido e displicente de um sábado pela manhã, e portanto, muitas vezes sua vida poderia ser encarada encarada com inútil - o que é um detalhe que passa longe da solução que Otar impôs ao seu filme. Sendo assim, admitindo que sua vida não valia nada, a morte de Agladze, tal como Àlvaro de Campos dissera pelo aniversário da morte de Sá Carneiro, não despertaria a mágoa dos outros, pois por ele poucos chorariam já que não faria falta a ninguém.



Alguns detalhes tornam sua inutilidade mais complexa. Agladze é um músico jovem e mulherengo, uma espécie de Don Juan moderno, que seduz pelo jogo de seduzir e em seu rastro deixa alguns corações partidos. Nem por isso as mulheres o reprovam. Simplesmente, elas não o levam a sério. Os amigos tampouco. Apesar disso, apesar de levar uma vida boêmia, de ter muitos amigos, é um tanto desconectado com a realidade. O que torna a personagem muito simpática é sua maneira de levar a vida de forma irônica flanando pelas ruas de Tbilisi com um passo bêbado, flertando com as mulheres com um olhar contrito porém sagaz, encontrando-se com amigos distantes da realidade enrijecida e erudita do conservatório. Na orquestra onde toca é um músico que mescla insegurança e displicência. Erra nas marcações da partitura deixando o austero maestro impaciente por conta de sua conduta descuidada. Quando não está no conservatório, esta as voltas com os amigos, namoradas, casos e ex-namoradas. Topógrafos, relojoeiros, vizinhos amantes de futebol e jovens operárias. Esse era o universo de Agladze. A sua conduta profissional, se espelhada em sua vida, revela muito, pois vive sem responsabilidades maiores, ainda sob o teto de um quarto de dormir - que é estúdio, escritório, e quarto de costura já que além de tudo tem dotes de - na casa da mãe.

E foi assim, sem sentido que no dia anterior a sua morte, após visitar seus amigos na relojoaria, pregar um prego na parede para que o relojoeiro pudesse pendurar sua toca; após encontrar-se com uma ex-namorada; após visitar uns vizinhos do apartamento da frente que se reuniram para assistir um jogo, ir até a varanda conversar com o menino com dotes de inventor e olhar pelos telescópio em seu predio os vizinhos, sua casa, sua mãe; retira-se. Aparentemente não se interessa por futebol – um grave erro desse rapaz. Vai para casa. Dorme. Desperta no dia seguinte com a insatisfação cotidiana. Caminha com seu passo bêbado para o seu destino. Flerta com uma moça como se fosse a única. Atravessou a rua com seu passo desconectado. Atravessou a rua entre os carros. E ouve-se o ruído de freios. E acaba no chão como um pacote tímido.

Ou seja, com ou sem destino, morre na contramão atrapalhando o tráfego. Sem dúvida, apesar do tom cômico, um dos filme mais trágicos da juventude de Otar.
Nota. Titulo em francês. "Il était une fois un merle chanteur"

Música do dia. Construção. Chico

Mais Otar

Pastoral (1976) é um filme de roteiro simples, talvez se eu pudesse ousar afirmar sem a sofisticação onírica da obra de Tarkovski. Um filme russo com legendas em francês pode intimidar, mas não este. Como aos poucos descubro, os filmes de Iosseliani são filmes sem palavras quase, portanto quase sem legendas, e por isso percebe-se que o que conta mesmo são os gestos, as relações entre pessoas, a sensorialidade dos sons. São filmes com princípio meio e fim.
Pastoral conta a historia de um grupo de músicos que por alguma razão burocrática e muito estranha é mandado de Tbilisi para um retiro de veraneio numa comunidade rural. Uma das musicistas do quarteto parece ter alguma relação de parentesco com os donos da casa, dada a calorosa recepção. Parece pois no fim paga pela estada. Na casa habita uma grande familia composta pelos avos, pais e netos.

O calor das boas vindas logo se desfaz, pois por alguma razão a sofisticação da música e dos ensaios, não altera a rotina dos moradores. Estes apenas acham estranha a música, tocada pelo quarteto, que de longe chega aos seus ouvidos, mas seguem suas vidas com a lida do campo, com a ordenha das vacas e o pastoreio das cabras. A azáfama do campo revela que os moradores da vila não tem tempo para aquela estranha e sofisticada música e aos poucos são os músicos que revelam-se envoltos pelas questões locais, como as brigas de vizinhos pelo desvio água que corre num dos córregos de uma propriedade, pela janela que um constrói de frente para a casa do outro, pelos pequenos golpes que um dos vizinhos pobres dá para sobreviver, enfim, pelas questôes cotidianas que fazem realmente sentido para os que vivem ali.

A vida calma, vista pelos visitantes como bucólica, é corroída não por determinação governamental autoritária, mas pelos desentendimentos cotidianos, pelas controvérsias locais, ou mais que isso, simplesmente pelo tempo. A única conexão entre os dois grupos, os moradores e os músicos, é dada pela ação de uma adolescente, um tanto sonhadora, que durante o dia cuida dos irmaos menores da casa e ainda encontra tempo para ler durante a noite e ter aulas de piano. E aos poucos tanto os músicos quanto os expectadores, vamos nos transformando em antropólogos relutantes tentando encontrar os sentidos funcionais da comunidade e do país inteiro na resolução dos pequenos conflitos, que nem de longe tem desfechos sentimentais.
Aos poucos, dependendo dos olhos de quem assiste, surge um possível envolvimento entre um dos músicos e a jovem da casa; ou dependendo dos olhos de quem se distrai, as nuances dos Kulaks e dos Kolkhoses vão surgindo, quando um dos capatazes impede que um velho colete pasto para seus cavalos, tomando-lhe a foice, ou melhor dizendo, em linguagem mais revolucionária expropriando-lhe o instrumento de produção. Enfim, um filme que de cacos e de reconstituição de lacunas, levanta imensas dúvidas aparentes na tentativa de sinalização dos contraste entre um universo de origem dos músicos, urbano, e um universo remoto, o campo. Uma das últimas cenas, quando a menina veste-se com a melhor roupa e arranja uma cesta de maçãs para a despedida dos músicos, é tocante. Quando a cellista chega a casa, com seus pais e avó tem-se a impressão de que todos aqueles do campo estão arqutipiticamente ali, no momento em que o pai pega uma das maçãs da cesta e a come, ao som do cello da filha. Uma cena de pura poesia. Uma poesia sem palavras quase, portanto quase sem legendas, onde o que conta mesmo são os gestos, as relações humanas com princípio meio e fim.

April


Uma especie de segunda-feira de manhã. Uma cidade antiga desperta lentamente. As janelas dos sobrados vao se abrindo pouco a pouco. Por tras das janelas, os moradores, a maioria deles musicos, despertam a cidade com recitais. Um casal jovem imensamente apaixonado nao consegue encontrar um espaco para namorar, pois ha uma imensa mudanca na cidade. Carregadores passam todo o tempo com moveis e caixas por todos os lugares em que o casal decide pousar organizando a mudanca para um complexo habitacional nas cercanias da pequena cidade. A paixao dos dois eh tamanha que sua energia faz a aguas das torneiras correrem soltas, as bocas do fogao e as lampadas do novo apartamento onde vivem acenderem.

O filme April (1961), de Otar Iosseliani, tem alguns aspectos ainda mais surreais. Apesar do filme de apenas 45 minutos ser quase todo mudo, ha uma sonoplastia estranha. Os instrumentos musicais nao emitem seus sons originais, a agua nao faz ruido de agua saindo da torneira e portas que nao rangem como deveriam ranger, por exemplo. Por esse amor ser tao forte e nao permitir que os instrumentos funcionem e as luzes acendam, a vida cotidiana vai se transformando num tormento. Subitamente, aquilo que parecia um sonho passa a se transformar, sob o mesmo cenario de sons de natureza metalica, num pesadelo.

Otar Iosseliani eh georgiano – por acaso a terra natal de Stalin. Este foi o terceiro filme da carreira de Iosseliani, e um de seus muitos filmes banidos pelas autoridades do Partido Comunista, sob a alegacao de extremo formalismo. Desapontado com as decisoes, decidiu trabalhar embracado por dois anos e depois como metalurgico. Apenas em 1966 retorna a sua carreira, com Falling Leaves, um filme onde o contraste entre os valores tradicionais e modernos esta presente de maneira marcante. Um tanto mais real e oficialesco, e muito menos lirico que Pao de Manuel de Oliveira, Falling Leaves, conta historias estanques ao redor do quotidiano de dois jovens homens, um idealista e outro ambicioso e oportunista, que comecam a trabalhar numa fabrica de vinhos, onde aos poucos o quotidiano dos trabalhadores, que repetem os mesmos gestos mecanicos ao produzir o vinho, mostra a diferenca essencial dos niveis hierarquicos e das herancas filiais. Um filme um tanto longo e desconjuntado que mescla imagens documentais e narrativa filmica, numa gramatica nem sempre compreensivel como em April - uma especie de pequena obra-prima.

"For me, the best film -- the true film -- is the kind which requires no translation."
Otar Iosseliani , Georgian filmmaker