O Declínio Do Império Americano

Um dos personagens de Oscar Wilde – não lembro qual, agora – dizia que só fala mal da sociedade quem não consegue frequentá-la, e acho que esse poderia bem ser o adágio do filme de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano. 

O filme começa com uma entrevista à Rádio CBC da professora de História da Universidade de Montreal, Dominique St. Arnaud, em que conta a Diane sobre seu novo livro, Variações sobre a idéia de felicidade, que discute sua tese: a fixação da sociedade moderna na autoindulgência. 

Na próxima cena, quatro professores universitários conversam animadamente sobre assuntos diversos enquanto preparam um early dinner. Ao mesmo tempo, na academia de ginástica da Universidade, quatro mulheres, incluindo Diane e Dominique, colegas dos professores,  também conversam animadamente sobre os problemas de relacionamento entre homens e mulheres.

 


A partir da metade do filme, as mulheres chegam, e o grupo de amigos inicia um jantar animadíssimo. Todo o filme, extremamente dialógico, gira em torno desses oito professores universitários, Historiadores diga-se de passagem, que num agradável fim de tarde almoçam e conversam sobre seus relacionamentos, o amor, o sexo, as angústias e variações do que seria a tal da Felicidade. 

À medida que o jantar avança, os homens e as mulheres conversam principalmente sobre suas vidas sexuais, com os homens sendo abertos sobre seus adultérios, incluindo Rémy, que é casado com Louise e que já se relacionou com quase todas á mesa. A maioria das mulheres do círculo de amigos já fez sexo com Rémy, embora ele não seja atraente, mas elas escondem isso de Louise para poupar seus sentimentos, afinal todos são mais que amigos, todos pertencem ao mesmo departamento.  

Ainda no ginásio, quando as amigas conversavam, Louise revela que esteve em uma orgia com Rémy, mas acredita que ele geralmente é fiel. Claude é o único amigo homossexual no jantar. Ele também fala abertamente sobre sair com outros homens de maneira imprudente, mas com medo de doenças sexualmente transmissíveis, enquanto secretamente teme estar infectado por AIDS – problema  que ainda assolava a todos na década de 80. Dominique, por sua vez, fala sobre sua teoria que dá conta do declínio da sociedade, com Louise antagonizando-a e  expressando ceticismo. Para contra argumentar contra Louise, Dominique revela que fez sexo com Rémy e seu amigo Pierre, causando um colapso emocional e um mal estar geral no jantar.

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar.

Pela manhã, era como se a noite anterior não tivesse passado de um samba de Paulinho,  um grande pagode na casa do Vavá: “Vi muita nega bonita, fazer partideiro ficar esquecido, mas apesar do ciúme, nenhuma mulher ficou sem o marido”. E Louise se senta ao piano, toca, e todos se abraçam, e os relacionamentos voltaram ao normal, afinal e contas são todos amigos, e acima de tudo, lavou tá novo

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles a liberação sexual, valor moral da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar. No fundo Demy mostra que na prática, a teoria é outra. 

Pessoalmente acho sensacional como Denys Arcand se auto define. Um périmé catholique. Mais interessante, como ele retrata os valores americanos, já que americanos tem um grande preconceito contra os canadenses. Os canadenses não são servis como outros grupos imigrantes, e talvez por isso os americanos os consideram bárbaros caçadores de alces e ursos. Os canadenses por sua vez, não estão nem aí para os americanos. E isso é interessantíssimo quando visto aqui de dentro. Mas no filme Dominique, prevendo um colapso no "Império Americano", baseado na autocomplacência, na condescendência, na tolerância e indulgência consigo,  afirma ironicamente que Quebec, apesar de falar francês e se colocar olimpicamente na periferia, embarca de roldão nessa decadência dos costumes. 

Denys Arcand coloca em xeque os relacionamentos modernos, marcados por problemas amorosos e sexuais. Ele faz um estudo crítico dos anseios e frustrações de uma classe média intelectualizada e escrava dos divãs de analistas. Quatro professores universitários, três deles casados e um gay, preparam um jantar em uma casa de campo. Conversam sobre sexo. Enquanto isso, suas mulheres estão juntas em um clube e, da mesma forma, dividem seus segredos. Quando se encontram no jantar, estão prontos para o embate.

Outro filmaço que preciso rever é o Invasões Bárbaras, 2003, com os mesmo protagonistas, 17 anos depois.


Fury and sound

Yoknapatawpha "Country", um país bem grande da  América do Sul, é um lugar onde a vida vale muito pouco, e parece uma ficção relatada por um desbocado retardado mental, cheio de Som e Fúria.

Moral da arte pela arte

Em junho de 1936. Atenção: mês de junho. Federico García Lorca  foi perguntado o que ele pensava da Arte pela Arte. Ele respondeu que "já nenhum homem verdadeiro acredita no conceito da arte pura, de arte pela arte". E acrescentou: "Neste momento dramático do mundo, o artista deve chorar e rir com o seu povo". Dois meses depois, em agosto, o poeta foi fuzilado de costas pelos fascistas que, tomaram pelas armas Granada e enterraram o corpo numa vala comum. Atenção: Fuzilado de costas. As circunstâncias do encobrimento desse assassinato foram exaustivamente pesquisadas pelo historiador irlandês Ian Gibs, autor de biografia com farto material sobre Lorca.

Sam Peckinpah Again!

(Filme e postagem de 2011, mas... me peguei assistindo o Peckinpah again, ontem) 

Western Crepuscular ou Tráiganme la cabeza de Alfredo García 

"El Jefe" é milionário “fazendeiro”,  mejicano e cheio de capangas mejicanos,  descobre que sua filha Teresa está grávida. O cidadão em vez de ficar feliz por ser avô, fica furioso. Primeiro por que por que a criança vai nascer sem pai, segundo por que a menina era virgem – veja bem, estamos falando de caras mexicanos, ano de 1974, com outro diapasão. El Jefe, então, aplica uns safanões na menina para saber quem seria o pai da criança. Entre uma bordoada e outra a moça acaba revelando que o pai é Alfredo Garcia, justamente o homem que El Jefe tinha preparado para ser seu sucessor – ai você pensaria… ahh, Freud explica.

Para lavar a honra tanto da filha como de sua película apassivadora, contrata dois pistoleiros maus e internacionais, que na verdade encontram-se na outra margem do Rio Grande, e oferece 1 milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do tal Alfredo Garcia.

Dois pistoleiros chegam a um bar do baixo meretrício mejicano en Ciudad de Méjico, onde encontram o pianista Bennie, um ex militar americano que vendo a pinta dos pistoleiros se faz de desentendido. Eles oferecem um bom tutu pela informação do paradeiro de Alfredo Garcia, mas querem como prova a cabeça de Garcia. O pianista já andava meio na bronca com Garcia pela folga com a cantora Elita, seu trelêlê oficial,  e fica de dar a resposta aos bandidos. Bennie vai atrás de Garcia e se certifica que ele estivera com Elita. Mas a cantora lhe diz que Garcia foi embora para sua cidade no interior do México, onde sofreu um acidente de carro e morreu. 

Mas é claro (!)  que Bennie não acredita nessa estorinha fiada de Elita.  E no melhor estilo brasileiro compra um terçado e parte com Elita rumo à cidade onde Garcia foi enterrado, para conseguir a prova da morte de Garcia, ou seja, literalmente a cabeça de Alfredo Garcia. 

Mas como isso tudo é uma estória de western pop crepuscular pensada por Peckinpah, o mais gótico dos diretores do gênero, os assassinos não confiam em Bennie e sem ele saber o seguem até a um vilarejo no interior do Méjico, onde então ocorrerá a emboscada e a pendenga semi-final. Afinal, pensa comigo. Por que eles vão pagar ao cara, se pode embolsar a grana e ainda matar o infeliz do Bennie, não é mesmo. Isso é Óbvio. O filme foi um dos mais baratos do Peckinpah, e justiça seja feita, fez milagres. Se o Peckinpah tivesse metade da grana e dos amigos do Tarantino...

Com orçamento enxugadíssimo e um roteiro barato, não deu outra, Bennie encontra a sepultura de Alfredo Garcia e ao tentar desenterrá-lo é atacado pelas costas. Quando desperta, está enterrado. Com muito esforço consegue se desenterrar, mas constada que sua amante, Elita, enterrada ao seu lado está morta.  Bennie ao ver a sepultura de Garcia aberta, constata que o corpo não tinha a cabeça, levada enquanto esteve desacordado e então passa a desconfiar que se os dois assassinos de aluguel o seguiram até aquele fim de mundo, e levaram a cabeça de Alfredo Garcia, por que a cabeça do morto vale muito mais na mão dos sicários que na dele. 

Enfim, depois tremenda troca de tiros, ele recupera a cabeça de Garcia e a coloca num saco com gelo e dirige com a cabeça no banco do lado. 

O monólogo de Bennie com a cabeça morta de Alfredo Garcia é uma cena surreal, mas fantástica. Talvez o ponto alto do filme seja esse convívio de Bennie com a cabeça decepada. 

O filme tem várias reviravoltas. Os matadores Sappensly e Quill acabam fazendo uma emboscada, quando Bennie vai devolver a cabeça à família de Alfredo Garcia. Quill mata toda a familia de Garcia, mas é morto por Bennie. Sappensly, desolado como um matador olhando para seu parceiro morto, diz que não pagará Bennie, e também toma um caroço na cabeça. 

E nesse meio tempo, Bennie continua conversando com a cabeça. Chega ao hotel, lava-a e pretende levá-la ao Jefe, com o pretexto de receber os US$ 10K.  Em meio a mais tiros, Bennie finalmente consegue o endereço do Jefe. 

Consegue chegar justo no dia do batizado do rebento. O Jefe estava até feliz. Bennie se apresenta, entrega a cabeça e relata quantas pessoas morreram por aquela cabeça. Quando o Jefe diz para ele pegar seu dinheiro, jogar a cabeça para os porcos e ir embora, ele lembra que Elita se incluía naquele monte de mortes em vão, e aí é possível ver como o semblante de Warren Oates muda ao constatar que tudo aqui tinha sido em vão. 

Ai meu amigo... acho que não era nem mais o Beniie que estava ali, e sim o Oates, vaqueiro do Kentucky, amigo do Steve McQueen.  Foi tiro pra todo lado. Bennie, enfurecido,  mata um monte de capanga do Jefe. 

A mocinha entra com o filho no colo e pede que mate seu pai. Ele pega a cabeça e vai em direção a porteira da fazenda levando o Jefe, junto a Teresa. 

Chegando na porteira, ele se vira pra Teresa e diz assim mesmo do jeito que eu estou te falando: “Agora, você coisa da criança, que do teu pai cuido eu…”  UAU ! podia terminar ai né! Mas não…. Isso é um filme de Sam Peckinpah.

Como esses mafiosos, traficantes, milicianos tem sempre capangas pra caramba, surgiu mais um monte do nada e rasgaram Bennie com rajadas de metralhadoras. 

Nota. Sam Peckinpah já foi partícula apassivadora em tiranicídia contenda entre meu concunhado e eu. Enquanto eu dizia que o cinema americano não era autoral, ou seja, não tinha uma linha de cineastas que faziam filmes classificáveis pelo toque de Midas da linha autoral, o concunhado dizia que havia Peckinpah: "brutalidade mimética, estética da violência e ódio fiduciário". Dito assim, de maneira tão bonita, pode até ser.






Música do dia. El Justiciero. Mutantes.

O qUiNzE



Cordulina viu pelo bafo do marido e pela fúria das apóstrofes, tão desacostumadas no seu natural sossegado, que ele tinha bebido demais. E interpelou-o:
— Mas Chico, pra que é que você toma quando vai no Quixadá? Toda a vez que vem de lá é nesse jeito!
— Besteira, mulher!... Tomei nada! Matei o bicho! A vontade que eu tinha era estar mesmo bebinho, pra me esquecer de tudo quanto é desgraça!...

Em O Quinze, de Rachel de Queirós.

Kafka e o confinamento horizontal

Certo dia, ao acordar após sonhos estranhos, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso inseto. Mas, Gregor é vocacional, não se preocupa com sua transformação, e sim com o fato de estar atrasado para o trabalho.

 

Chega ao trabalho e sem se dar conta de seu aspecto meio escroto, Gregor, após muitas dificuldades, consegue abrir a porta do local. Todos se assustam, inclusive o gerente, que sai correndo. Samsa avança em direção a ele, forçando-o a entrar de volta no escritório. Após esse episódio, Gregor é demitido. Demitido nessas circunstâncias com esse aspecto, sua família o rejeita e sua única alternativa é o confinamento social HORIZONTAL. Entendeu?

 

A partir daí, Gregor, que sem conseguir fazer nada, ouve sua família discutindo aos berros como vão fazer para se sustentar a casa. Agora, tinham uma renda a menos na casa, e como pagariam a educação dos filhos, as aulas de violino da menina…

 

A propósito, em alguns momentos de seu drama, a irmã mostra certa compaixão por ele levando uma comida, e tal.

 




Nisso, Gregor sente uma forte angústia por não poder fazer nada, nem opinar sobre o que fazer. A família compadecida com a falta de espaço do quarto, retira os móveis, mas na operação de retirada, Samsa tenta fugir, no que é impedido pelo pai que lhe atira uma série de maçãs.

 

No final das contas os Samsa, (sem contar com a opinião de Gregor, claro) decidem sublocar  um quarto para complementar a renda. O quarto é alugado por três inquilinos, que vivem na casa por um tempo. Num certo dia, Ana esquece a porta, que ligava a sala ao quarto de Gregor, aberta.

 

Justo na hora da jantar, Greta tocava o seu violino para os inquilinos. Gregor, do seu quarto, ouve inebriado o som e segue em direção à sala de jantar. Nos primeiros momentos, ninguém o percebe, mas após alguns segundos um dos inquilinos o vê e grita de pavor.

Sr. Samsa tenta afastar os inquilinos de modo que não vejam o inseto e ao mesmo tempo fazer com que a criatura volte para o seu quarto.

 

Depois desse incidente, Greta, a única que ainda via Gregor com certa compassividade e não como um monstro horroroso que atormentava a sua família, perde toda a compaixão e chega à conclusão que eles devem se livrar dele.

 

Kafka ainda fala várias vezes sobre a maçã, atirada pelo pai, e encravada nas costas de Gregor, que vai apodrecendo gradualmente em suas costas.

 

Depois é o que se sabe. O personagem de Kafka, confinado HORIZONTALMENTE não tem de se levantar cedo para ir trabalhar, continua vivendo confinado no seu quarto,  deitado no canto mais escuro e convencido de que se transformara em algo muito diferente de um homem. Como se recusa comer, acaba morrendo, com o corpo exaurido e seco, encontrado pela dona diarista.

 

Após sua morte, a família sente um grande alívio. Ana acabar de limpar o quarto do falecido, a família sai da casa feliz. Já não pensavam na morte de Gregor e viam uma certa esperança num futuro próximo, em que poderiam comprar uma casa mais confortável.

 

Os três períodos da relação da família perante Gregor são sintomáticos. No primeiro, a família sente medo mas deixa-o ali pela na casa; no segundo aceita-o, mas esconde-o do mundo; já no terceiro, odeia-o, vê ele como um peso desnecessário e quer livrar-se dele a qualquer custo.

 

Nesse momento político meta-pós-apocalíptico-carnavalesco-pandêmico brasileiro(!) em que não há nem esquerda combativa, nem oposição coerente, nem imprensa confiável, nem Supremo imparcial, nem Legislativo  mínimamente ético, nem porra nenhuma, o meio social degradado gera uma consciência social igualmente degradada. Posso até estar enganado, mas esse nosso nazifascisminho moreno que se apossou de um meio social totalmente degradado é um falso axioma por que o raciocínio do fascista moreno é todo baseado em falsas verdades.  Formado por uma tropa de choque vinda de um lumpesinato, bastante semelhante às milícias militares de baixa patente e segmentos fanatizados de cultos religiosos, sem falar na classe média temerosa de seu empobrecimento e rancorosa em seus preconceitos temos hoje uma família Samsa muito unida. O único problema, é que o inseto que apodrece no quarto somos nós, os que não foram e nem querem se incluir. 


A faca não corta o fogo

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então eu indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
?e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega


Herberto Helder in, "a faca não corta o fogo" 2008

O Balzaquiano Flaubert: 140 anos de pura malemolência


Ernest Pinard foi um ministro do Interior francês, facilmente olvidável, a não ser por alguns detalhes de sua biografia. Nivelados por baixo, Pinard e Sérgio Moro guardam alguma semelhança. Ambos tinham ambição maior que seus estômagos, e ambos tiveram carreiras meteóricas.


Pinard decidiu ingressar no judiciário e, em maio de 1849, sendo nomeado procurador adjunto em Tonnerre. Em dezembro de 1851, ele se tornou procurador adjunto em Troyes e, em dezembro de 1852, em Reims. Em outubro de 1853, foi nomeado procurador adjunto no Tribunal do Sena em Paris onde aí sim começou uma espécie de Lava Jato dos bons costumes franceses.

 

Apenas para contextualizar, Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, Sobrinho de Napoleão,  que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac – uma espécie de Haddad das bandas de lá. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas. E é justamente aqui que Marx escreve "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.


Com a faca e o queijo na mão, Pinard não pensou duas vezes.  Lascou de processar todo mundo. De repente quis moralizar tudo. Em 1857, foi a vez de Baudelaire, por causa dos poemas de Flores do Mal; depois,  Eugénie Sue por seu Os Mistérios do Povo,  e por fim, Gustave Flaubert por Madame Bovary. 



Contra Baudelaire, ainda conseguiu banir 7 poemas do conjunto do Flores do Mal, por temática, ora veja você, lésbica (!) e sadomasoquista (!). Diga-se de passagem, a proibição permaneceu até 1948!  


Já contra Flaubert, o distinto se deu mal. Flaubert não só foi absolvido, como o processo  rendeu uma excelente publicidade à sua preciosa história de adultério, decadência e miséria provinciana que enredava seu Madame Bovary.


Pinard bem podia ser um personagem secundário de Flaubert, em A Educação Sentimental  -  escrito poucos anos depois do processo levantado por ele em sua opération lava jatô pessoal.  Eu particularmente desconfio, se me permitem, dada a licença poética, que  Jacques Arnoux tem algo dos cornos cuspidos e escarrados Ernest Pinard. Mas se  nem Lukács, nem Bourdieu falaram nada dos cornos que menino Moreau colocou na testa de Sr. Arnoux, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 


O fato é que em Pinard passou para a história com justiça poética: como apenas uma anedota verborrágica e censória. E nos anos 1980, ainda que alguns intelectuais tentassem imputar em Flaubert vários delitos de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, abuso de menores e algumas  outras vigarices, Flaubert permaneceu um gênio da descrição, do mal e da minúcia. Para mim, A Educação Sentimental, mais até que Madame Bovary, é um clássico de formação para um jovem. Ele tem um força incontida, indomesticável, que busca o absurdo e a beleza em cada descrição dos meandros psicológicos dos personagens.


Este mês se celebra 140 anos de morte de Flaubert. Flaubert continua Flaubert, e o malandro Ernest Pinard, não passou de um burocrata da Segunda República francesa. Mas ainda assim, conseguiu cavar uma vaguinha como procurador geral francês em Douai,e terminar a vida com uma aposentadoria legal … Moro, muito mais perigoso que Pinard, ainda está aguardando o desfecho do nosso 18 Brumário, pra ver se ele também consegue beliscar alguma daquelas prebendas prometidas lá atrás, durante o golpe do impeachment, na negociação com MPF da República das Araucárias, jogada no ventilador pelo The Intercept,  no episódio da prisão de Lula nas vésperas da eleição, impedindo sua candidatura… enfim, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 

O aprendiz




Primeiro construí na areia, depois na rocha,
Quando a rocha ruiu,
Não construí mais nada.
Depois construí muitas vezes de novo
Ora na areia, ora na rocha, porém
Eu aprendi.

Aqueles a quem confiei a carta
Jogaram-na fora. Os outros, que nem notei,
A mim a trouxeram de volta.
Então aprendi.

O que eu mandei fazer não foi realizado,
Mas quando cheguei ao lugar
Vi que seria errado. O certo
Foi feito.
Disso eu aprendi.

As cicatrizes doem
No tempo frio.
Mas eu digo sempre: só o túmulo
Não me ensina mais nada.

 

 

 

BRECHT, Bertolt. "Der Lernende"/"O aprendiz". Trad. de Wira Selanski. In: SELANSKI, Wira (org.). Fonte: Antologia da lírica alemã. Rio de Janeiro: Editora Velha Lapa, 1999.

O nome Aldir Blanc significa algo para você ?

Eu apenas queria dizer duas ou três coisas sobre o Aldir Blanc.



Primeiro, que o dia de hoje está sendo tão triste e que talvez seria melhor não dizer, nem escrever, nada. Talvez fosse melhor guardar uma espécie de contrição por esse pesar, por essa pena, por esse vento frio encanado em minh'alma, por esse sentimento de esmagamento que estou sentido hoje. 



Aldir Blanc - Rubem Fonseca também, à sua maneira - foi muito importante para mim. Cresci no subúrbio, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Fui leitor assíduo do cronista, com quem dei muitas risadas. Seus personagens eram criaturas quase que à clef. Era possível ver aquelas pessoas em qualquer lugar. Era quase possível falar com aquelas pessoas. Era possível… Bastava andar pelas ruas, entrar num ônibus, num boteco sozinho e pedir uma Brahma, que logo apareceriam:  o marido da Medéia de Vila Isabel; o Leocácio, com sua cara de próspero e pinta de quem  sempre faturava fácil; a bunda da boazuda passando na da porta da tinturaria; o Waldyr com seu baralho indo para o velório do tio do Gouveia, na rua Paula Matos - onde por acaso eu nasci. Até caminhando pela Praça XV à noite, era possível ver a Candice Bergen em frente à carrocinha de Angu do Gomes; na porta de um cinema era possível ver o Ambrósio, lutando contra o Capota Arriada, como um verdadeiro Don Juan, guerreando pelo coração de Yolanda enquanto solta a letra no ouvido da mulata. 



Segundo, eu podia dizer aqui que o Aldir é a cara do Brasil! Mas não é… o letrista pode ser… O cronista não. O cronista é nosso! É do Rio de Janeiro, de Cabucçu, Cordovil, Caxambi, Madureira, Olaria e Bangú, Cascadura, Agua Santa, Pari, e ousaria dizer mais de Nova Iguaçu que de Ipanema. Apenas nós, cidadãos cariocas, podemos ver o Leocádio, o Waldyr, o Francelino, a Dona Otília, o seu Joaquim do taxi, a irmã solteira do Sardinha… só nós podemos vê-los…  



O letrista Aldir Blanc, é outra História. É o do Linha de Passe, O letrista Aldir Blanc musicou a abertura política lembrando tanta gente que partiu num rabo de foguete, sem saber que o Bêbado e o Equilibrista, lançado em 1979 - ano em que Figueiredo sancionou a lei que concedia Anistia aos cassados pelo regime militar - seria três anos depois, o hino das Diretas Já. Na poesia, na arte, em geral, as coisas são assim, meio por acaso. Por isso deve haver mais arte para que depois de tudo aquilo que sobra, depois de todas as mentiras que vivemos nesse país escroto ao qual pertencemos, tenhamos a verdade como uma síntese dialética. Essa verdade:



O Brazil não conhece o Brasil

O Brasil nunca foi ao Brazil



O Brazil que o Aldir musicou no fim dos anos 70 tinha esses defeitos, mas era um Brasil de esperança. Mesmo, nós, sabendo que sempre foi um país de elites tacanhas, rentistas, aduladoras da autoridade, do kiss up kick down, do preço da cura e da justiça, da injustiça, do golpe, do golpe baixo, da barganha, da política do café com leite, do rent-seeking, do racismo, do almirante negro, do sebastianismo, dos partidos políticos solventes, das eleições roubadas, dos juros caóticos, do mercado selvagem, da opressão ao pobre, do câmbio, e por aí vai… não pensávamos que iríamos chegar ao ponto em que chegamos com o juiz ladrão de braços dados com as trevas, com a tortura louvada pelo chefe inominável do executivo, com a verdade manchada, com a doença terrível, com o sádico e o cruel andando lado a lado de mãos dadas com neo-pentecostais. Não pensávamos lá atrás, que o Brazil poderia matar o Brasil. Achávamos que era apenas uma mera questão de tempo, e que tudo se ajeitaria, e que a Democracia traria a vida, a luz, um pouco de Humanismo, com igualdade… para um país tão fodidamente desigual. Nos enganamos. O Brazil matou sim… 




Entendeu? Aldir Blanc morreu hoje. Ele não foi ali comprar um cigarro. Ele não volta nunca mais. 



Aldir Blanc morreu hoje, justo hoje quando está dificílimo ter esperança no futuro. Pode ser sintomático o que estou pensando agora... pode ser vocacional e cruelmente intencional o que fizeram com o Brasil nesse últimos 5 anos…  mas o fato de Aldir ter atravessado o espelho hoje, é uma metáfora cruel do que fizemos com nós de nós, de nossa História. Eu estou imaginando que dentro de cem anos, os historiadores vão definir o fim do Século XX, oficialmente, com a morte de Aldir Blanc vítima de COVID -19, na segunda década do Século XXI. E para piorar em muioto nossa situação, com uma carta testamento de Flavio Migliaccio. 



Entendeu? O Brasil que todos nós conhecemos morreu num CTI. Esta na lona. E nesse momento, tem vários corpos estendidos no chão...   




Nota: Ponto final do Gardenia Azul. Ela parecia um pardal e tinha jeito de trabalhar nas Lojas
Americanas. Nao pude resistir. Pegou bem no ouvidinho esquerdo:

- O nome Aldir Blanc significa algo pra voce?

Balão Cativo


Não gosto de diários, mas me lembro com se fosse hoje.  Naquele tempo uma ida de Cascadura a Copacabana, de ônibus, tardava umas duas intermináveis horas. Naquele dia, minha mãe tinha que resolver algum problema burocrático no Consulado Espanhol, que ficava justamente em Copacabana. Podíamos ter ido de trem até a Central, e dali pegar um ônibus até o destino, mas aquela rodoviária da Central nunca foi um lugar muito seguro e minha mãe procurava evitar. Naquele dia pegamos o ônibus 254, saltamos na frente da UERJ -  e aqui um parêntese: eu jamais imaginaria que naquele dia de 1982 eu estudaria naquela universidade. Dali pegávamos o 464. Nessas idas a Copacabana, eu não gostava do 464 por um detalhe específico. Quando ele saía da rua Riachuelo, cruzávamos os arcos da Lapa -  e sempre ao passar pela igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa, minha mãe me lembrava que ali tinha se casado com meu pai -  assim que acabava a rua Teixeira de Freitas o ônibus virava à direita, bem ali no prédio do IHGB, na Avenida Beira Mar, e ia por "dentro". Não dava para ver nada do Aterro do Flamengo. Na pista de dentro do Aterro, até o vento parece diferente, daquele que venta na pista de fora, perto da praia. 

Lembro que o Consulado ficava na Rua Duvivier, no predio ao lado do Beco das Garrafas. Ali trabalhava o Padre Pepe. Padre Pepe era um amanuense espanhol muito amigo da nossa família,  que trabalhava no Consulado há anos, e que tinha casado meus pais, na supracitada ibidem Igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa. Nesse dia específico, lembro bem, eu tinha 10 anos. Com 10 anos você é inocente. Mas eu sempre saia do Consulado com a certeza que o padre Pepe não ia com a minha cara. E fique certo de que a recíproca também era verdadeira, tanto é que minha mãe me dizia antes de entrar: Se comporta, não toca em nada, só abra a boca se falarem com você.  Uma mãe só diz isso a um filho, quando tem a certeza de que ele não é flor que se cheire.

Nessa época, nesse dia específico, eu ainda não desconfiava que o pilantra também tinha uma dona há anos. Mas aquilo era um tabu na família. Todo mundo sabia da amante do Padre Pepe, menos eu e minhas primas menores. Padre Pepe devia ser Franquista. E a possibilidade dele ser franquista me deixaria num futuro pretérito mais que perfeito, muito puto. Isso me deixa mais puto até hoje. Pari passu  ao condicional fato de ele ter vivido com uma mulher a vida toda -  isso realmente é o de menos - , o malandro atendia ao público num órgão governamental, público, laico, com a clérgima!

Enfim, eu nem queria falar dessa viagem longa e cansativa, nem do subúrbio, nem dessas ignomínias à clef de um padre pilantra, mas queria lembrar que nesse dia específico, saímos da rua Duvivier, e dobramos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana para voltarmos para casa. Perto do ponto do ônibus havia uma livraria. Minha mãe e eu, entramos nessa livraria. Nesse dia específico eu comprei meu primeiro livro... com minha própria graninha... Justamente do Flavio Migliaccio, que se suicidou hoje. 





...me lembro que a viagem de volta foi linda. E eu acabei de ler o livro, antes de chegar a Cascadura...

...essa coisa de ter uma memória péssima é horrível, apesar de lembrar de tudo... mas quase me esqueci desse fato... quase esqueci que As aventuras do Tio Maneco, passavam na televisão à tardinha, e que tinha 3 guris, um tio gente muito boa, um carro velho, um robô de lata...






Flavio... Poucos tem coragem de deixar uma carta tão corajosa....não foi em vão não, irmão... A gente apenas perdeu tua referência física... isso dói, não vou dizer que não... Tio Maneco, eu era aquele moleque que te acompanhava todos os dias a tardinha na TVE e aprendia um  monte de coisas, contigo e com o Daniel Azulay...

A carta deixada é soco no estômago de uma nação em ruínas...