CARVALHO CALERO





Título: Carvalho Calero
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

 
Carvalho Calero, um dos maiores intelectuais galegos do século XX, era um homem que ria pouco. Tinha em si uma mistura de timidez e um cuidado meticuloso com sua imagem pública. Talvez o resultado de uma vida, não muito fácil, que tenha lhe ensinado ao comedimento das emoções. Nasceu em  Ferrol, cidade localizada na província da Corunha, em 1910. Cresceu no seio de uma família abastada como o mais velho dos seis irmãos. Perde a mãe, aos oito anos de idade, mas isso não o abala e dedica-se com afinco aos estudos, o que também inclui a língua galega. Chega mesmo a publicar alguns poemas já com 11 anos, quando começam suas tentativas de dramaturgo em duas obras, uma zarzuela e uma comédia em versos.
 
O menino que ri pouco, publica seus primeiros poemas aos 14 anos, na revista Maruxa, em Ferrol, e uma publicação na cidade cubana de Camaguey, por intermédio de um parente próximo, com o pseudônimo de Ílex. E já aos 15 anos, ao ingressar na Universidade de Santiago, para cursar o primeiro ano de Filosofia e Letras e preparatório de Direito, participa no seminário de Estudos Galegos, já com alguns versos publicados no El Correo Gallego.
 
Partimos aqui de uma constatação. A de que a persona do filólogo e intelectual Carvalho Calero é o resultado de um processo de construção social. Passados os anos da puerícia nos primeiros estudos, entra na fase verdadeiramente adulta, de formação do caráter. Envolve-se com o Seminário de Estudos Galegos e já como estudante de Direito, elabora e redige a reforma dos Estatutos da SEG.  
 
O caminho ate aqui é o de um menino que cresce sem mãe, que tem sua formação intelectual na Galiza e deseja ser reconhecido, desde cedo, como escritor. Esse caminho da formação abarca duas dimensões da experiência autobiográfica: Uma associada aos seus processos de identidade e socialização, e outra à edificação dessa sua disposição intelectual internalizada à imagem publica do escritor  -  que alguns gostam de chamar habitus.
 
Aos 18 anos, quando publica Tinitárias, seu primeiro livro de poemas, já está completamente envolvido na política universitária. São anos da contestação contra o Diretório Militar de Primo de Rivera. Publica também seu primeiro poemário em língua galega, Vieiros, em 1931, coincidindo com a conclusão do curso de direito. Mesmo com toda sua produção artística extra-académica e sua militância política, termina o curso com desempenho brilhante.
Neste mesmo período, ajuda a fundar o Partido Galeguista, junto a Castelao, Alexandre Bóveda, Tobio Fernandes, dentre outros. Nesta fase da vida ainda elabora propostas estatutárias para a Assembléia de Municípios e colabora com as publicações de Claridad e Ser, vinculadas à esquerda galeguista.

No mesmo ano, ganha uma vaga de funcionário público na Câmara municipal da sua cidade de nascença, Ferrol, deslocando-se para ela novamente. E em 1933 casa com sua amiga de estudos Maria Ignacia Ramos. Sua militância no Partido Galeguista, no qual foi presidente entre 1934 e 1935 e seu envolvimento com o legalismo Republicano marcou-o nas hostes franquistas. Foi combatente voluntário num batalhão composto por professores e profissionais de educação ligados à UGT. Foi preso no final da Guerra em Andaluzia e condenado por “separatismo”.

Perdeu o emprego e foi preso por dois anos, sendo libertado apenas no ano de 1941, e ainda assim de forma condicional, até à extinção da pena que somente viria em 12 anos. Neste período, aproveitou para estudar alemão e anotar dados para romance Scórpio, bem como A sombra de Orfeu, e para a peça teatral 'Os chefes', que somente publicaria em 1982.  

Mesmo em liberdade, continuou pagando um preço caro pela sedimentação de seus inconformismos. Durante a liberdade condicional, teve sérias dificuldades para conseguir trabalho. Vê-se impossibilitado, por exemplo, de recuperar a sua vaga de funcionário público, sendo obrigado a procurar trabalho como docente no ensino privado. Sem opções profissionais, e sem poder exercer o Direito, desenvolve um intenso labor literário, com os romances A Gente da Barreira, de 1951, e Os senhores da Pena, onde critica o passado da sociedade tradicional galega. Colabora sob o pseudónimo 'Fernando Cadaval' no jornal La Noche, sobre temas históricos e literários ligados a Rosalia de Castro. Para manter a família, deu aulas privadas, em situações de vida muito duras, aliás similares à de Antón Fraguas e Fernández del Riego. Em 1950 muda-se para Lugo, onde residiria pos mais 4 anos até termina seu doutoramento em Madrid com uma tese sobre a literatura galega contemporânea. Neste período, teve a sorte de ser acolhido pelo empresário e filantropo António Fernández no Fingoy, e desde aí, atuar grupo Galaxia. Em 1958 entra na Real Academia Galega e em 1965 torna-se o primeiro professor de galego da Universidade.
 
Neste anos, muda-se para Santiago de Compostela, onde atua como professor de Língua Espanhola e Literatura no Instituto «Rosalia de Castro» e, ao mesmo tempo, como professor na disciplina de Língua e Literatura Galega na Universidade de Santiago, onde em 1972 alcançaria a categoria de catedrático. Tido por alguns como um homem distante com os alunos, porém muito respeitoso, tinha um estilo de aula tradicional. Outros, dizem que era um homem à moda antiga, sempre de terno e maleta, e que ao cruzar uma rua e se deparar com uma mulher, tira-lhe o chapéu, em sinal de respeito.
 
Sua radicalização na defesa linguística, aprofunda-se em Julho de 1975 com um artigo público no jornal La Voz de Galicia onde defende uma normatização reintegracionista do Galego com o Português - o que provoca uma marginalização total de seu nome no meio acadêmico e político galego. Sua leitura do contexto histórico não estava de todo equivocada. Franco morreria em Novembro do mesmo ano, e havia uma real possibilidade de oficialização do idioma da Galiza nos próximos anos, após a morte do tirano, o que viria acontecer com a aprovação do controverso Decreto de Bilinguismo, e do Estatuto da Autonomia da Galiza em 1981.  Entretanto o tempo pressionava para que a luta se apressasse. Faltavam 5 anos para completar 70 anos. E assim atingiria o que naquele momento era a idade regulamentar de aposentadoria, e sabia que a partir daí as articulações políticas e acadêmicas seriam mais difíceis.

Entretanto, mesmo quando ainda atuava na docência acadêmica, sua imagem como intelectual reintegracionista viva arranhada. Prova disso é que quando aparece a Antoloxía da poesía galega actual, preparada pela revista Nordés para Ediciós do Castro, em 1978, Carvalho é incluído entre os 16 autores representados. Entretanto, a despeito do tamanho dos poemas e das opções de diagramação, em número de páginas, Calero ocupa um dos últimos lugares em termos quantitativos. Em um momento em que já era considerado um historiador da literatura galega, catedrático da USC e com inúmeras obras publicadas.
 
Com a aposentadoria, passa a militar por uma defesa da unidade linguística galego-luso-brasileira na Associaçom Galega da Língua, ajudando a fundá-la em 1981. E com isso, consegue jogar a pá de cal no que faltava. Passa a ser excluído de qualquer celebração cultural oficial da cultura galega, frente ao Estado espanhol.
O debate sobre o futuro da língua da Galiza e sua identidade idiomática, situou Carvalho Calero em posição de alvo de uma tosca incompreensão, por parte de seus pares acadêmicos. Com o tempo, aquilo foi se transformando em aberta hostilidade, mesmo por parte de alguns dos seus antigos amigos.
 
Em 1987 publica sua novela auto-biográfica Scórpio, em galego reintegrado, que é recebida com prêmios e críticas elogiosas. Mas já se fazia tarde, pois em 1988 aparecem os primeiros nódulos no pulmão, e entre, tratamentos e o repouso, ainda acha energias para continuar trabalhando até seus últimos dias. Em Janeiro de 1990, já com a doença muito avançada, vai a Ferrol natal, para receber pessoalmente uma homenagem da Câmara Municipal, e vindo a falecer no 25 de março de 1990, não chegando a completar os 80 anos.
 
Sua fortuna crítica, contrasta com sua marginalização. Caluniado e até desprezado, passa sua última década de vida um tanto amargurado com os antigos pares acadêmicos por desprezarem não apenas sua luta mas a do "rexurdimento" de Manuel Murguia, Castelao, Biqueira, Jenaro Marinhas del Valle e muitos outros. Prova disso é que há anos lhe era relegada a homenagem do dia das Letras Galegas. Desde 2005 seu nome vinha sendo aventado, mas silenciado. Em vida, não foi diferente. Teve talvez mais reconhecimento internacional que em sua terra.  Um exemplo simples: foi antes nomeado membro da Academia das Ciências de Lisboa, em 1981, que para fazer parte do Conselho de Cultura Galega - o que aconteceria apenas 3 anos depois. Claro está... sempre existem outras maneiras de ir sendo esquecido pelas beiras. 


ANTÔNIO FRAGA




Título: Antônio Fraga
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

Antônio Fraga nasceu em 30 de junho de 1916 no Rio de Janeiro. Era Filho de Waldomira da Fraga Fernandes e Justino Fernandes. Os pais, ambos com simpatias anarquistas, se conheceram no Segundo Congresso Operário Brasileiro ocorrido na cidade do Rio em 1913. Justino era português da cidade do Porto, um "tripeiro" que ganhava a vida como padeiro, e teria aderido ao Anarquismo ao travar contato com o célebre militante italiano Errico Malatesta (1853-1932) quando este propagava tal ideologia pela península ibérica. A mãe era uma costureira capixaba, nascida no município de Cachoeiro do Itapemirim, e que por sua vez, tornou-se anarquista a partir de seu envolvimento nas lutas trabalhistas travadas no Rio de Janeiro, para onde havia migrado em busca de melhores condições de vida.

O casal foi morar na área denominada anos mais tarde como Cidade Nova, localizada entre Catumbi, Estácio e Canal do Mangue. Sabe-se pouco da infância de Antônio. Parece que foi expulso de casa ainda novo pelo pai, indo morar em 1933 na zona do baixo meretrício do Mangue do Rio de Janeiro. Largou a escola – que considerava extremamente chata e inútil –, passando a estudar em casa mesmo, com auxílio dos pais. Começou igualmente a trabalhar cedo. Primeiro como caixeiro no comércio do pai, passando a vendedor de siri na região do Mangue. A partir da expulsão de casa aos 16 anos, viveria o resto da vida numa vida de biscateiro, literalmente, com as vírgulas que separam um emprego aqui outro ali, em seu curriculum. Acolhido pelas prostitutas do Mangue, a essa altura, com tão pouca idade, passou a viver como um bicho solto. Não se sabe se por conselho ou desavença com um policial, sai do Mangue e muda-se para a Lapa, quando passa a vender perfumes, ainda com uma passagem como garimpeiro em Minas Gerais. 
Pode-se dizer que antes dos 40 anos Antônio Fraga, tinha vivência que Jack Kerouac e Jean Genet em termos de uso e abuso da linguagem popular. Ao longo da vida, tenta a sorte em Goiás, mais tarde retorna ao Rio de Janeiro, como auxiliar de cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da rádio Vera-Cruz. E, imprecisamente entre os anos de 1959 e 1960, Antônio Fraga foi lanterninha de cinema no Cine Palácio da rua do Passeio.

A principal criação de Antônio Fraga foi mesmo a novela Desabrigo, escrita em 4 dias no final do ano de 1942 e publicada pela primeira vez em 1945. Uma curiosidade cerca esta novela. Na década de 1940, Fraga trabalhava como locutor na Rádio Vera Cruz. Sabendo da notícia que alguns intelectuais importantes, estavam publicando artigos na revista Cultura Política, publicação promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, indignou-se. Fez um discurso ao vivo, com muita ironia, afirmando que os intelectuais que escreveram seus artigos para a revista, estavam em estado de delírio, e que o maior índice de demência no Brasil, encontrava-se justamente entre os escritores.

Não se sabe se a transmissão tinha sido interrompida, mas o fato é que após o episódio impensado, Fraga se isolou por quatro dias no interior do Rio de Janeiro e escreveu Desabrigo.


O livro continha fortes críticas sociais, ousadias estéticas e afrontas aos beletristas. A primeira edição do livro teve uma tiragem de mil exemplares, publicado pela editora Macunaíma, editora de breve existência criada por Fraga e mais dois amigos, Antônio Olinto e Ernande Soares. Os três formaram o Grupo Malraux, organizado no começo de 1945, pra montar exposições de poesia, e a idéia de montar uma editora surgiu para que lançassem o livro de Fraga que a essa altura já tinha quase 30 anos. Alugaram uma pequena sala na Rua São José, 21 - no local em que antes funcionara o Instituto Superior de Preparatórios – e mandaram os originais a uma oficina quase artesanal no Centro do Rio de Janeiro.

Desabrigo tem 24 capítulos dispostos em três partes: Primeiro Round, Segundo Tempo e Terceiro Ato. É narrado em terceira pessoa, e apenas nas últimas páginas, sabe-se que o personagem, que se senta na máquina de escrever para narrar a estória, chama-se Evêmero, uma espécie de alter-ego de Fraga que anda pela Zona do Mangue com Desabrigo, Cobrinha e Miquimba, no bordel de Margô e no Café e Bilhares Flôr do Estácio. Aí estão, malandros, mendigos, esfomeados, bêbados, prostitutas e rufiões.  Uma curiosidade interessante é que o apelido de Antônio Fraga, era Cobrinha em suas andanças pelo Mangue. E por muito tempo, esta curiosidade levou críticos a o compararem com Proust - fato que Fraga sempre negou, por que malandro é malandro e mané é mané.

Cercado de gírias, num claro convite para que a voz coloquial urbana marginal rasgasse os limites da literatura, que Lima Barreto tinha começado a esgaçar, o livro conta com um glossário ao final, para auxiliar o leitor não-douto em malandragem a se perder de vez pelo emaranhado do enredo. Essa opção pela narrativa é direta, crua, cercada de palavrões saídos das bocas de personagens ordinários, e sem rebuscamentos, pode ferir os pruridos acadêmicos. Pode até soar como uma opção pela lei do menor esforço. Algum leitor desatento pode encará-la equivocadamente frágil, apressada, descompromissada, como uma tendência natural à simplificação já que não conta com pontos finais regulares ou mesmo as vírgulas exigidas na língua culta. Mas tudo isso são equívocos e conclusões apressadas. 

Equívoco 1: o personagem Evêmero é uma clara alusão alegórica ao escritor e hermeneuta grego do século IV a.C., pai de uma corrente hermenêutica conhecida como everemismo, segundo a qual personagens mitológicos, são seres humanos divinizados, tanto pelo medo como a admiração. Para o Evêmero, resgatado por Fraga, em sua História Sagrada, o Olimpo dos Deuses homéricos era o Mangue 

Equívoco 2: outro recurso utilizado em Desabrigo, são as citações estrangeiras, que aparecem de forma irônica e surreal ao leitor intelectualizado. Por exemplo, na conversa entre dois bêbados, em que um assume a personalidade de Anatole France e indica o bonde correto para outro bêbado a caminho de casa - quem nunca? Ou, um bêbado que fala com um poste que lhe responde em inglês - situação que podem sim acontecer! 

Equívoco 3: Na parte final da narrativa, Fraga interrompe abruptamente a estória, para incluir cinco tópicos que intitula Pontos de Vista. Nestes, cita o gramático francês Henri Bauche para defender sua linguagem popular, assim como Campos de Carvalho e Pirandello.  Evocando o escritor Azorín, Pio Baroja o filósofo Miguel Unamuno, defende sua postura estética, apoiado no “vasto grito do Ipiranga”, dado por estes “em prol da liberdade estética”. O que implica em pesquisa e método na elaboração intelectual e estética de suas posições.

Ou seja, para evitar qualquer equívocos, o malandro escreve seu livro em gírias, sem vírgulas, com minúsculas em princípio de frase, e com nomes próprios sem maiúsculas. Impertinente, cita em francês, italiano e espanhol, como se à guisa de um deus grego, inventasse um mundo de marginais e dissesse: Impertinente, uma vírgula! Malandragem, isso aqui é o Inferno, e aqui, desse pedaço cuido eu. Pra você me ler, eu não preciso ir onde você está. Você tem que baixa aqui nessa minha quebrada, entrar nos becos e tentar entender essa porra aqui.  

Antônio Fraga conviveu com boa parte da intelligentsia entre 1940 e 1960, frequentou encontros boêmios, tertúlias e assembleias literárias onde participavam Vinícius de Moraes, Lucio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade - que o comparou a Graciliano Ramos -, até pintores como José Pancetti, dentre outros. Nesse período chegou a ser editor do Jornal de Literatura em 1947, onde também escrevia  com o pseudônimo de seu alter-ego, Evêmero. 

Mas esse convívio, não fez de Fraga um deles. Nos anos 1960, enquanto Antônio Olinto já era adido cultural na África, Fraga, empurrado por dificuldades econômicas, já morava na Baixada Fluminense e a distância, não apenas física, tornou-o arredio e mais irônico. Assim como Lima Barreto recusou o convite de Sergio Buarque de Holanda para fazer parte dos Modernistas em 22, afirmando que a a Klaxon não passava de uma revista para vender automóveis, Antonio Fraga não foi menos cruel com movimentos de vanguarda, como o Concretismo, dos anos 1960. Não queria saber daquilo. Ainda que fosse uma espécie de mito da poesia marginal, em que orbitavam alguns poetas importantes da geração mimeógrafo, como Leila Míccolis e o roteirista Jose Louzeiro, ele não ia até eles. Se quizessem, que pegassem o trem no ramal de Japeri para ir encontrá-lo em Nova Iguaçu para participar de seus saraus literários. Ele já fazia muito em baixar  Austin e Comendador Soares, para encontrá-los. 

De fato, a produção de Fraga sempre foi irregular. Sabe-se que Desabrigo foi a única obra publicada em vida. Mas recentemente publicou-se, com a ajuda dos filhos e amigos, Desabrigo e Outros Trecos, que reúne a única obra já publicada de Fraga (Desabrigo) e 14 escritos inéditos (Outros Trecos). No total, são apenas 118 páginas, mas basta olhar a dedicatória para entender quem é que está falando. "Para mim mesmo, com muita estima", escreve Fraga para si mesmo.

Alguns contos, como O Louva-a-deus, apresentam semelhanças bem-humoradas com o enredo de Franz Kafka, sobre um inseto que devora tudo pela frente deixando intocadas apenas as igrejas. Em O Estofo dos Sonhos e O Galante do Jacaré, Antônio Fraga surpreende por não abusar mais da linguagem fragmentada e coloquial. Seus personagens já não são mais oniscientes e já não compartilham vivências apenas pessoais.

Seu primeiro emprego com carteira assinada, foi aos 69 anos, na Fundação LBA – Legião Brasileira de Assistência - por intermédio de "amigos importantes", que se sensibilizaram pela penúria em que o escritor se encontrava. A sinecura, ao final da vida, pouco valeu nos seus 8 anos seguintes.  Morreu em 1993, no município de Queimados, a mais de 50 quilômetros da capital, não totalmente esquecida sua fortuna crítica, mas pouquíssimo celebrado em vida.


HILDA HIRST

 



Título: Hilda Hirst
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Dezembro de 2021
  
 

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 1930. Foi poeta, cronista e dramaturga.  Era a filha única de um fazendeiro de café, jornalista e ensaísta de Jaú, interior paulista, Apolônio de Almeida Prado Hirst. Sua mãe, Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado, já tinha um filho de um casamento anterior, algo raro na época, e logo após o nascimento de Hilda, separa-se de Apolônio, que já apresentava os primeiros sinais de esquizofrenia.

Estudou em colégio interno, Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, onde cursou o primário e o ginasial e foi considerada uma aluna brilhante. Passou todo o período da infância sem saber dos problemas neurológicos do pai.  Em 1945 iniciou o curso secundário no Instituto Mackenzie, uma escola igualmente rígida, fundada por presbiterianos. Finalmente em 1948 entrou para a Faculdade de Direito da USP, onde conheceu Lygia Fagundes Telles, de quem seria amiga por toda a vida.

Data deste período a publicação de seu primeiro livro. Aos 20 anos estreia na literatura com o livro de poemas Presságio (1950), em publicação da Revista dos Tribunais. Esse livro junto com outros dois – Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1955) –, faria parte dos livros de formação inicial de Hilst, o seu primeiro conjunto de uma obra maior. A partir de 1951, também, ano em que publicou seu segundo livro de poesia, Balada de Alzira, foi nomeada curadora do pai. Concluiu o curso de Direito em 1952.

Teve duas paixões na vida. Uma real: Júlio de Mesquita Neto, antigo dono do jornal “O Estado de São Paulo” – com quem se correspondeu, conviveu e para quem dedicou, em segredo, o livro “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão”. A outra, um tanto platônica, diga-se de passagem.  Chegou a namorar o ator americano Dean Martin, ainda quando este estava casado com Jeanne Biegger. Dean tinha 3 filhos e Hilda não queria complicações em sua vida. Ela dizia que namorou Dean Martin só para conhecer Marlon Brando. E como o namorado demorava a apresentá-los, numa noite, tomou um porre, subornou o porteiro do hotel e bateu na porta do quarto onde o ator estava hospedado. Brando abriu a porta, segundo a poetisa, com um “belo robe de seda” e, com muita educação, perguntou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Curiosidades à parte, Hilda deu meia-volta e foi embora. No mesmo ano Brando tinha sido indicado para o Oscar como melhor ator, pelo filme Sayonara. E Hilda foi preparar seu Roteiro do Silêncio, que publicaria dois anos mais tarde.

 Hilda decide afastar-se da vida agitada de São Paulo e, em 1964, passa a viver na sede da fazenda de sua mãe, próximo a Campinas. No mesmo ano seu pai morre. Projetou sua própria casa numa parte daquela propriedade, perto de uma figueira bicentenária.  E em 1966, finalmente, Hilda muda-se para a mítica Casa do Sol, planejada detalhadamente para ser uma residência de escritores, hospedagem para amigos, biblioteca de autores clássicos, e refúgio. Pela casa do Sol passaram Lygia Fagundes Teles, Caio Fernando Abreu, mas não apenas escritores. Pintores como Jurandy Valença, os críticos literários Leo Gilson Ribeiro e Nelly Novaes Coelho; a artista visual Maria Bonomi;  Gilka Machado, os físicos Newton Bernardes e Cesar Lattes, atores como o Raul Cortez, Cacilda Becker, Tarcisio Meira, Eva Vilma, dentre outros.  

A despeito da exposição plena em suas obras, teve uma discreta vida privada. Na década de 1960 conhece o escultor Dante Casarini - então funcionário público e gestor de negócios do pai -  com quem, mesmo sem casar-se oficialmente, nem a princípio dividir o mesmo teto, se relacionaria por mais de 35 anos.

Foi uma escritora e poeta que tocou em assuntos tidos como socialmente controversos, como o amor entre pessoas do mesmo sexo. Confessou em entrevista para Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Sales, que seu trabalho sempre buscou, essencialmente, retratar a difícil relação entre Deus e o homem. Dizia ela que o que a inquietava era o problema da morte -  morte não no sentido metafísico de tudo quanto possa advir depois de acontecida. Ainda segundo ela, sua poesia é a não aceitação de que um dia a vida se diluirá e, com ela, o amor, as emoções do sonho e toda essa força em potencial que vive dentro de nós.

Em 1974, após sua experiência escrevendo para teatro e prosa, Hilda Hilst volta a publicar poemas.  Lança Júbilo, memória, noviciado da paixão. Odes mínimas (1980), seria ilustrado com aquarelas produzidas pela própria autora. Na década de 1980, Hilst busca por temas metafísicos, em especial os da morte e o da espiritualidade - desde o fim da década de 1970 dizia ouvir vozes dos mortos na Casa do Sol. Cantares de perda e predileção (1983) e Poemas malditos, gozosos e devotos (1984) são exemplos dessa fase.  Esta fase se alonga até o início dos anos 1990.  E lança sete outras obras:  Do desejo (1992). Nele estão reunidos: Sobre a tua grande face (1986), Amavisse (1989), Via espessa (1985), Via vazia (1989), Alcoólicas (1990), Do desejo (1992) e Da noite (1992), fechando o ciclo com Bufólicas (1992) e Cantares do sem nome e de partidas (1995).

Seus poemas produzidos por mais de 45 anos, eram artefatos de grande experimentação linguística e com intensa pesquisa, mantendo uma voz autoral independente. Estudada na academia ainda em vida, ganha fama no grande público como poeta de muitos adjetivos algumas vezes redutores, mas não equivocados: Hilda erótica e desbocada, Hilda provocadora e obscena. Hilda meio louca, eremita, arredia, indomesticável. Essa aura parece dizer mais sobre aqueles que a tentaram rotulá-la do que sobre a própria Hilda ou seu trabalho, ao qual, como o leitor sempre pode atestar, em suas leituras, tirando suas próprias conclusões, não falta rigor.

No final da vida, a Casa do Sol vivia cercada por centenas cachorros, dos quais ela tratava pelo nome individualmente. Esse foi um processo de autoconstrução de sua imagem. A Hilda reclusa da Casa do Sol, com dezenas de cães. A Hilda, que apareceu no Fantástico nos anos 1970 dizendo que gravava as vozes dos mortos.  A escritora, que já tinha deficiências crônicas cardíaca e pulmonar, morreu em fevereiro de 2004, após complicações decorrentes de uma cirurgia de fratura do fêmur. 

FLORBELA ESPANCA

 








Título: FLORBELA ESPANCA

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 

 

Florbela Espanca matou-se no dia em que fez 36 anos.  Foi tão improvável, que sua poesia não se encaixa nos moldes da poesia portuguesa da época. Flor Bela de Alma da Conceição nasceu em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894 e teve uma infância tumultuada pelo fato de o pai não reconhecer a paternidade da menina, que tinha como mãe, uma empregada doméstica de Vila Viçosa. Mas contraditoriamente, é o pai que se encarrega da educação da menina, quando a mãe de Flor Bela morre aos 29 anos.

Os seus primeiros versos datam dos sete anos, e escreveu o primeiro conto ainda na escola primária. Concluiu os estudos de licenciatura em 1912 e, nesse mesmo ano, casou-se cedo com Alberto Moutinho, e abriu um colégio e deu aulas de francês e inglês.

A poetisa reuniu uma seleção da sua produção poética desde 1915, inaugurando assim o projeto Trocando Olhares. Tratava-se de uma coletânea de oitenta e cinco poemas e três contos que foram o ponto de partida para futuras publicações.  Nesse mesmo ano começa a escrever para revistas de moda e de costumes como a Modas & Bordados e O Século.


Aos 22 anos inscreveu-se em Direito na Universidade de Lisboa, mudando-se para a capital, onde teve os primeiros contatos com os meios literários da época. Sendo que era uma das 14 mulheres entre mais de 300 alunos homens. Nesse período engravidou e perdeu o feto num abroto involuntário que afetou ovários e parte dos pulmões. Repousou durante aquele ano e começa a apresentar seus primeiros sintomas de neuroses.

Frequentava o terceiro ano do curso quando, em 1919, publicou a sua obra de estreia, Livro de Mágoas. Aos 27 anos divorciou-se e se casou com António Guimarães, de quem também se divorciará, em 1924, após mais um aborto. Decide tratar-se em Guimarães, e ali já começa a viver  com o médico Mário Lage – essa união foi a única que foi realizada na Igreja.

No ano anterior publicara o seu segundo título, Soror Saudade -  que tinha título original de Claustro das Quimeras. Não apenas mudou o título, como a ordem dos poemas, já que era parecidíssimo com um livro homônimo de Alfredo Pimenta. A partir daí já não conseguirá encontrar editor para o terceiro, tendo Charneca em Flor, publicado postumamente, em 1931, pelo professor italiano Guido Batelli.

Com 3 casamentos e 2 divórcios, algo bastante incomum para a época, Florbela Espanca passa a ter crises e a saúde vai pouco a pouco fragilizando. Nestes altos e baixos emocionais, o pai se afastara por não concordar com seu segundo divórcio, e o facto de ter ostensivamente vivido com os seus dois últimos maridos antes de se casar com eles, não lhe facilitou decerto a vida na sociedade patriarcal da época, impossibilitando mesmo a edição de seus livros.

A morte precoce do irmão, “esmagou o coração dentro de seu peito”.  O fato provavelmente contribuiu para agravar ainda mais seu já frágil estado de saúde, marcado por problemas pulmonares, pelas sequelas de dois abortos involuntários e por uma provável doença mental hereditária, que lhe provocava insónias, enxaquecas e esgotamentos físicos e mentais frequentes. Abandonara a poesia e caía em depressão, ainda tentando traduzir alguns autores franceses. “Um ente de paixão e sacrifício, de sofrimentos cheio” eis Florbela, que ao final da vida começou a consumir um barbitúrico, Veronal, ao qual depois recorreu para se matar.

Os sonetos de Florbela não tardariam muito, após a morte da autora, a tornar-se um caso invulgar de sucesso público, seja pela luta feminista, seja ela representação forte e intensa do papel da mulher na sociedade patriarcal.  

Postumamente, sai um primeiro volume de correspondência e o livro de contos As Máscaras do Destino. Em 1934, são publicados os Sonetos Completos, acrescidos do conjunto inédito Reliquiae. Mas é só nos anos 80 que o trabalho de edição da obra de Florbela se conclui, com a edição de Diário do Último Ano, do livro de contos O Dominó Preto e, finalmente, da edição da sua obra completa, organizada por Rui Guedes a partir dos manuscritos da autora.

Alguns críticos viam sua poesia como fácil e anacrônica, talvez não necessariamente por isso seja melhor acolhida e mais lida no Brasil que em Portugal. Sua escrita é marcada por um certo exagero emotivo e confessional, mas por ser a voz do que era silenciado do desejo feminino em seu tempo passa a ser uma poetisa com profundas raízes no movimento feminista português. Ao lado de Judith Teixeira, com quem dividia páginas na Revista Europa, também publicou os seus livros nos anos vinte. Tal como Florbela, Judith era filha ilegítima, e também se divorciou, e com poesia frontalmente lésbica foi censurada pelo regime e marcou sua época. Entretanto, em vida, não se sabe de que tenha feito parte de nenhum grupo literário ou de poesias. Sempre publicou sua produção poética, por conta própria

 



WANDER PIROLI

 

Título: Wander Piroli
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro 2022
 
Wander Piroli nasceu em 1931, em Belo Horizonte, e pode-se dizer que Piroli foi um desses mineiros radicais: nasceu e viveu a vida toda em Belo Horizonte. Dali tirou todos os seus contos. Sua mãe morreu quando tinha um ano, e acabou sendo criado, então, pela avó italiana Giovanna e pelo pai operário pintor de máquinas, na Lagoinha, um bairro que era reduto de famílias italianas. Bairro proletário, o Lagoinha também era o lar de marginais, bêbados, vagabundos e criminosos, arquétipos que habitaram a maioria de seus livros. Ao contrário de como Otto Lara Resende definia o típico mineiro, Wander Priroli não falava baixo nem cobrava juros altos. Cursou Direito na Universidade de Minas Gerais e chegou a trabalhar como advogado de causas trabalhistas, mas segundo ele, não tinha coragem de cobrar os honorários dos trabalhadores que defendia. Ainda durante a faculdade, participou de concursos literários em Belo Horizonte, chegando a vencer um deles em 1951 com o conto "O Troco", ganhando alguma fama nas redações dos jornais.

O trabalho em redações jornalísticas apareceu como uma forma de sustentar a família, mas se tornou uma das partes principais de sua vida. Trabalhou incansavelmente como repórter em dezenas de publicações mineiras entre jornais alternativos e da grande imprensa, como Estado de MinasSuplemento LiterárioÚltima HoraO Sol e Binômio. Aliás, como jornalista uma série de episódios folclóricos o cercam. Dizem que nunca faltava uma garrafa de agusrdente Claudionor debaixo da mesa. E que escrevia fora dos padrões jornalísticos: contava as coisas como as coisas realmente tinham acontecido, sem leads ou subleads. Era inimigo da objetividade e compunha matérias e títulos extraordinários como “Cada brasileiro nasce devendo sete salários mínimos”. Isso, em plena Ditadura.

Anos mais tarde, ficaria conhecido como um dos símbolos do boom dos contistas nos anos 1970. Os críticos o incluíram nessa chamada Geração de 1970 que logo cambalearia, como todas as categorizações do tipo. Entre os mortos e feridos dessa geração, alguns como Sergio Sant’Anna, Antônio Torres, Luiz Vilela, chegaram a sobreviver. Outros como João Antônio e o próprio Piroli, caíram em injusto anonimato. Estamos carecas de saber que cada caso é um caso, mas a opção pelo conto, a visão tosca do Mercado que prioriza a novela, mesmo que ruim à narrativas curtas, por considerarem o conto um gênero menor, e a própria necessidade de pagar as contas no fim do mês, dividindo o tempo entre a literatura e o jornalismo, aumentaram a pena de esquecimento desses malditos.

Piroli gostava de cachaça Claudionor, cigarro de palha, briga de galo, pescaria e roda de amigos. Alguns dizem que por isso tinha uma relação descompromissada com a literatura. Como se a lida do jornal, as contas a pagar, e dar de comer a quatro filhos, fosse tarefa fácil para um cidadão saído da Lagoinha.  Publicou seu primeiro livro A Mãe e o Filho da Mãe, aos 35 anos em 1966. E somente foi publicar o seguinte O Menino e o Pinto do Menino, 9 anos depois.

Só quase dez anos depois, o escritor publicaria O Menino e o Pinto do Menino, em 1975 e Os Rios Morrem de Sede, em 1976. Talvez seus trabalhos mais conhecidos, ambos infanto-juvenis, viraram sucesso de público ao propor, pela primeira vez, uma espécie de realismo para crianças.

Seus textos eram tomados por personagens vivendo vidas ordinárias, comuns. Eram os trabalhadores de sol a sol, os malandros, as prostitutas e os “náufragos da noite”, como caracterizava os tipos com que conviveu na infância e juventude. Foi um mestre em criar diálogos secos, diretos e cheios de sensibilidade - e diga-se de passagem, escritores brasileiros não criam diálogos convincentes. Em se tratando de livros infantis, não fez concessões nem ao mercado nem ao gosto da classe média. Quebrou cânones de uma literatura infantil bem-comportada de personagens anódinos, bruxas babacas, duendes chatos, capaz de servirem de modelos bem-comportados. Narrou o que nunca havia existido. Em seus livros infantis, por exemplo, o pai para, toma uma cachaça num botequim, e segue com o filho para casa, já meio cambaleante.

Em vida, Wander ainda publicou cerca de sete títulos, entre infantis, de crônica e contos, como A Máquina de Fazer Amor e Minha Bela Putana. Um tipo alegre, vivia sem chamar atenção, mesmo que corpulento, e que seus blusões largos parecerem já ter vindo com defeito de fábrica: sempre com dois ou três botões da gola para baixo, abertos. Era visto por seus contemporâneos como um Hemingway brasileiro, seja pelo modo de viver, seja pelo estilo seco dos textos. Aliás, crítica nunca chegou a um consenso se Wander Piroli era um João Antônio ou um Hemingway mineiro. Quando morreu, descobriu-se que o descompromissado Piroli tinha mais 18 livros inéditos.


LIMA BARRETO

 





Título: Lima Barreto

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

Filho da professora Amália Augusta Barreto e do tipógrafo da Imprensa Nacional João Henriques de Lima Barreto, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Nasceu numa sexta-feira 13. Mês de maio de 1881. A propósito, o mesmo ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, 7 anos antes da Lei Aurea. O bairro: Laranjeiras. A casa, na rua Ipiranga nº 18, não existe mais.

Aprendeu a ler em casa com a mãe, que mantinha um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa, no mesmo bairro das Laranjeiras. O menino Lima, assim como Machado de Assis, ficou orfão cedo. Com a morte da mãe, aos 7 anos, entrou numa escola pública, na rua do Rezende, passando pelo Liceu Popular Niteroiense - um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino da época, dirigido pelo educador inglês, Mr. William Cunditt. Os seus estudos eram, então, bancados pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho de batismo do escritor. Depois de prestar os exames de preparatórios no então Ginásio Nacional, nome que a República tentou colar no velho Colégio Pedro II, para se desfazer dos vultos do período Imperial, Lima Barreto ingressou na Escola Politécnica. O futuro parecia promissor. Dali, sairia engenheiro civil, de minas, industrial, mecânico ou agrônomo. Entretanto, estudou apenas até o terceiro ano. Não dava mais. Não havia maneira de fazê-lo aprovar numa disciplina de nome tão irônico quanto redundante, Mecânica Racional. Tinha sido reprovado diversas vezes - e isso, creiam-me, enche o saco de uma pessoa. 

Alguns outros fatores mais profundos faziam com que Lima Barreto não se concentrasse na Politécnica. O fato de ser o único aluno negro da turma, aliado ao baixo desempenho na Mecânica Racional, por dois anos seguidos, podem ter influenciado para o desânimo do rapaz. Mas, um episódio específico determinou um certo rumo que sua em sua vida iria tomar, a partir dali:  o pai enlouqueceu quando Lima Barreto tinha apenas 22 anos.

Assim, ele interrompeu os estudos, para encarregar-se da numerosa família, composta agora pelo pai e os irmãos mais novos. Para ganhar a vida, Lima Barreto trabalhou como professor particular e depois, com a abertura de vaga para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra, presta concurso e se classifica em segundo lugar, com uma diferença mínima de pontos para o primeiro colocado. Mesmo assim foi nomeado, começando a trabalhar no mesmo ano.

Nos primeiros anos como amanuense foi procedimentalmente humilde.  Não faltava, não chegada atrasado, e tratava a todos com deferência. As semelhanças biográficas do início de carreiras entre Machado e Lima, param por aqui. Sendo preterido mais de uma vez em promoções, foi ficando negligente e relapso. Nesse processo de transformação pessoal, virou um habitual nas rodas de café e de bares, frequentadas por Olavo Bilac e Emilio de Menezes. Foi provavelmente nestas rodas que descobriu os benefícios de uma boa Parati. 

O convívio dos cafés e botequins, que o romancista acabou frequentando dioturnamente, o tornaram conhecido, gerando contatos no meio jornalístico. Em 1905, Lima Barreto iniciou-se na vida literária com reportagens para o Correio da Manhã, preparando uma serie de textos sobre a derrubada do Morro do Castelo. Paralelamente, foi colaborando em jornais e revistas estudantis, como A Lanterna e A Quinzena Alegre, todos de curta duração. Mais tarde, em 1907, quando Mario Pederneiras fundou o Fon-Fon, chamou-o para a redação, mas ficou pouco tempo. Saiu para lançar com um grupo de amigos uma pequena revista, a Floreal, que apesar de quatro números apenas, mereceu do sempre meio mal-humorado José Verissimo, crítico exigente, uma surpreendentemente simpática acolhida. Inclusive, seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, começou a ser publicado na Floreal, em 1907, mas só veio aparecer em livro dois anos mais tarde, editado em Portugal. Seu biógrafo definitivo, Francisco de Assis Barbosa, chegou a entrevistar Antônio Noronha Santos, Manoel Ribeiro de Almeida, Mario Tibúrcio Gomes Carneiro, companheiros de Lima Barreto na Floreal, revelando-nos detalhes fundamentais de sua biografia.

Quando em 1909, finalmente, o romance foi editado em Portugal, Lima Barreto marcou sua presença no ambiente intelectual, para o bem e para o mal. O livro bancado com os seus limitados recursos próprios, seria venerado e odiado de maneira desproporcional. Por um lado, foi venerado pelos pares e por uma certa parcela da intelectualidade, mas o problema é que o ódio vinha de cima, principalmente da parte de Edmundo Bittencourt, o todo poderoso dono do jornal Correio da Manhã, que não gostou nada nada do tom de sátira que assemelhava o autoritário e fictício Ricardo Loberant, dono do jornal “O Globo”, com sua pessoa.   

O problema estaria resolvido se apenas as portas do Correio se fechassem. Caso acontecesse, poderia arrumar  emprego, por exemplo,  no jornal do desafeto do ex-chefe, certo?  Entretanto, Bittencourt pode ter intercedido para que outras portas se fechassem. E no fundo havia um outro problema. Lima foi além. Não se contentou apenas a atacar o ex-chefe. No rol de personagens caricatos, havia profissionais influentes e cheios de amigos, com amigos em outros jornais. Por exemplo, o escritor João do Rio era descrito como o  “efeminado” Raul Gusmão, uma “mistura de porco e símio, adiantado";  Pacheco Rabelo do jornal fictício, era Gil Vidal, redator-chefe do Correio da manhã; o advogado e futuro jurista Vicente Piragibe, filho de médico da academia imperial e neto de general do exército, era o Leoprace, de ascendência boa mas que não passava de um pobretão sem talento; o paranaense, da família de diplomatas e sacerdotes, Joâo Itiberê da Cunha era o personagem Floc, crítico literário que julgava originais nao pela qualidade, mas pelo sobrenome e ascendência do autor. Ou seja, mesmo que Ricardo Loberant, nem tivesse passado pelas páginas de Isaias Caminha, todos os outros ilustres desafetos influentes estavam ali retratados de forma caricata. Todos tratados como pessoas superficiais, toscas, antiéticas e interesseiras, desejosas de apenas obter benefícios próprios, aproveitando-se dos colegas.  E para piorar, eram facilmente identificáveis numa leitura rápida, à época.

O livro não trouxe nem sucesso, nem o mínimo suficiente para o sustento. Mas dois anos mais tarde publicou o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, nas páginas do Jornal do Commércio, mais uma vez, pagando do próprio bolso pelo espaço da publicação. A obra sairia publicada em livro apenas em 1915. O atraso pode ter sido causado por vários fatores, desde a falta de recursos econômicos, até as próprias bebedeiras que se tornavam cada vez mais constantes. Durante a gestão e revisão da obra, tornaram-se mais agudas as crises de alcoolismo e depressão do escritor.  Esmagado pela tragédia doméstica da infância, pelo peso dos cuidados com o pai enlouquecido, vivendo ao lado de seu quarto, oprimido pela angústia da responsabilidade no suporte financeiro da família, juntava-se a isso o peso do preconceito racial. A birita, a princípio, certamente foi um suporte na convivência alegre da boêmia, e ao mesmo tempo uma fuga dos problemas que o esperavam em casa. Entretanto, as alucinações decorrentes do excesso de álcool, que o levaram ao hospício, certamente não estavam nos planos.  

Independente da bebida, a saúde de Lima Barreto sempre foi frágil. Aos vinte e poucos anos tinha fraqueza generalizada em decorrência de um reumatismo de infância que iria acompanha-lo toda a vida.  Aos 29 anos contraíra pela segunda vez maleita, ou impaludismo, doença contraída por mosquitos, e que ataca os glóbulos vermelhos do sangue gerando febres terçãs fortíssimas. O abuso do álcool, certamente agravara esse quadro clínico de fraqueza. Como também agravaria a sua depressão e a crise de neurastenia, que o levou a ingressar pela primeira vez no Hospital Nacional de Alienados em 1914, local que tinha sido definido por ele como "frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais"

E veja bem, estamos no ano de 1914. Escravos tinham liberdade há menos de 26 anos. Mesmo para um escritor com relativa fama, a história pessoal parecia replicar o que as teorias raciais da época prognosticavam. A grosso modo, os defensores da intervenção clinica com reclusão nem sequer se esforçavam em frisar que não se escapava da origem racial, nem dos seus estigmas. As diversas teorias da degeneração social, afirmavam que indivíduos miscigenados carregavam o "vício" das duas raças que os formavam. Daí para se estabelecer uma relação direta entre raça, doença mental e alcoolismo, e que negros e mestiços estavam mais predispostos a ela, era plenamente consensual na teoria médica da época. Nesse sentido, considerar que indivíduos com essas características eram entendidos como intelectualmente inferiores, era uma conclusão nefasta que os eugenistas nem se esforçavam para justificá-la.

Nesse calvário de porres e não-ditos, o pingente Lima Barreto, aos trinta e um anos, já acumulava uma respeitável lista de problemas clínicos.  Com os sintomas da dependência alcoólica, passa a ter problemas cardíacos. Aos trinta e três anos, depressão e neurastenia. Aos trinta e cinco, anemia pronunciada. Aos trinta e sete, quebra a clavícula.  E nessa época tem o primeiro ataque da epilepsia -  que diga-se de passagem era tratada com choque e porrada. Considerado “inválido” para o serviço público, é aposentado, em dezembro de 1918. Em 1919, é internado pela segunda vez no Hospital Nacional de Alienados. A essa altura tinha cinco livros publicados:  Recordações do Escrivão Isaias Caminha, O Triste fim de Policarpo Quaresma, As aventuras do Dr. Bogoloff (publicado como folhetim), Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Sem dinheiro, sem conseguir lutar contra o vício, e fisicamente aparentando ter vinte anos mais, sua saúde se deteriorava rapidamente. Tido como louco e irascível por alguns, afastou-se de muitos, e muitos se afastaram dele.

Chovia no bairro de Todos os Santos, no dia de todos os santos. Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu supostamente de ataque cardíaco, no dia 1 de novembro de 1922, abraçado a uma revista. O velório na sala era interrompido pelo barulho da chuva e, de quando em quando, pelos gritos do pai, que, no quarto ao lado, morreria horas depois. Em volta do caixão de terceira, os irmãos e a gente modesta do subúrbio, que Lima conhecia dos botequins e das ruas enlameadas e tristes.

Ao contrário de Machado de Assis, teve um enterro muito simples acompanhado por gente humilde como ele, os amigos do subúrbio, mulambentos, cheirando a cachaça e com os pés descalços. Quis ser enterrado em Botafogo - que ele detestava e criticara a vida toda. Pouco mais de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, o piauiense Félix Pacheco, a essa altura já imortal da ABL, o diplomata Olegário e José Mariano - sendo que este pagou as despesas do enterro.

Morreu sem nenhuma repercussão nos jornais. Não deixou viúva. E ao contrário do que falam as más línguas sobre Machado de Assis, Lima Barreto nunca teve filhos. 

 


PAULO LEMINSKI

 


Título: Paulo Leminski

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Ponta seca em acrílico

Data: Janeiro 2022

 

 

PAULO LEMINSKI

Leminski é transparente. É exatamente isso que é visto e lido. Um maldito queridinho. Óculos, bigode, e peito aberto. Pouco de sorrisos. E com as poucas palavras de seus haicais desconstruía mundos e erguia imagens. Era músico, compositor, escritor, tradutor, crítico literário, e lutador de judô. Além disso, atuou profissionalmente como professor de história e redação em cursos preparatórios, também participou como diretor de criação e redator em algumas agências de publicidade. Como tradutor trabalhou com obras de autores como James Joyce, John Fante e Samuel Beckett.

Paulo Leminski Filho nasceu em agosto 1944. Se orgulhava de sua ascendência polonesa e africana, e assim como Snege era curitibano, poeta maldito profissional, e também amador.

Em 1958, aos quatorze anos, foi para o Mosteiro de São Bento em São Paulo estudar para ser padre, ou algo similar, e a experiência não foi das mais empolgantes, retornando um ano mais tarde para Curitiba e terminando seus estudos num colégio estadual. Anos mais tarde participou do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda em Belo Horizonte, onde conheceu Haroldo de Campos, amigo e parceiro em várias obras.

Com a também poetisa Alice Ruiz, casou-se em 1968. Recém casados, Leminski e Alice foram morar com a primeira mulher do poeta e seu namorado, em uma espécie de comunidade hippie, num apartamento em Curitiba.  Ficaram lá por mais de um ano, e só saíram com a chegada do primeiro filho. Miguel Ângelo, o primogênito, viria a falecer com dez anos de idade, vítima de um linfoma. E até recentemente, sabia-se que Leminski e Alice, casados por mais de 20 anos, também tiveram duas meninas, Áurea e Estrela Ruiz Leminski. Casado, com filho pequeno e contas a pagar, entre 1969 a 1970, Leminski decidiu morar no Rio de Janeiro retornando a Curitiba para se tornar diretor de criação e redator publicitário.

Detentor de uma poesia marcante, jogava com a linguagem usando trocadilhos, ditados populares e influência de haicais, além de abusar de gírias e palavrões. Estudioso da cultura japonesa, chegou a publicar uma biografia do poeta japonês Matsuo Bashô. Como ele mesmo se definia, considerava-se um “anarquista zen”, um “bandido que sabia latim”, um “canalha erudito”.

Leminski, como letrista, teve parceiras variadas com músicos de diversos matizes. Escreveu letras com Caetano Veloso, o grupo A Cor do Som, conviveu com Gilberto Gil, Moraes Moreira, Itamar Assunção, Jose Miguel Wisnik, dentre muitos outros. Apenas no fim da vida, 1987 e 1989 foi colunista do Jornal de Vanguarda na rede Bandeirantes de Televisão.

Pode-se dizer que a carreira começou nos anos de 1970, quando teve poemas e textos publicados em diversas revistas - como Corpo EstranhoMuda CódigoRaposa.  Leminski publicou o seu primeiro livro - o romance Catatau - em 1976. Também lançou algumas poesias na revista Invenção, do movimento concretista. A partir de então a sua produção literária seguiu de vento em popa. Mas nesse mesmo ano acontece um dos episódios mais obscuros de sua biografia.

Em 2001 foi lançada uma das mais completas biografia de Leminski, O Bandido Que Sabia Latim, do biógrafo Toninho Vaz. Sua esposa Alice Ruiz boicotara sua reedição, ainda que feita com auxílio das informações da própria Alice, e a ela dedicada. A viúva e as duas filhas se opunham à publicação da biografia de um Leminski real. Alcoólatra como o pai, mal asseado, dentes estragados, nu e constantemente atormentado pelo suicídio do irmão e pelas ameaças de separação de Alice. Além disso, a biografia revela os detalhes de um filho bastardo que Leminski chegou a registrar com a mãe, mas que misteriosamente, no ano de 1976 passou a se chamar Luciano da Costa.  

Como a vida imita a arte, talvez, não à toa, Leminski tenha escrito, em poema musicado para Itamar Assunção, “um homem com uma dor é muito mais elegante, como andando assim de lado, chegasse mais adiante.” Alma feita de dor e de poesia. 

Leminski disse
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

[…]

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra (Por favor, por favor)
Ela é tudo que me sobra (Sofrer vai ser a minha última obra)
Sofrer vai ser a minha última obra (Ela é tudo que me sobra)

 

A dor do agravamento de uma cirrose hepática que o acompanhou por anos cessou no 7 de junho de 1989.