Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022
O casal foi morar na área denominada anos mais tarde como Cidade Nova, localizada entre Catumbi, Estácio e Canal do Mangue. Sabe-se pouco da infância de Antônio. Parece que foi expulso de casa ainda novo pelo pai, indo morar em 1933 na zona do baixo meretrício do Mangue do Rio de Janeiro. Largou a escola – que considerava extremamente chata e inútil –, passando a estudar em casa mesmo, com auxílio dos pais. Começou igualmente a trabalhar cedo. Primeiro como caixeiro no comércio do pai, passando a vendedor de siri na região do Mangue. A partir da expulsão de casa aos 16 anos, viveria o resto da vida numa vida de biscateiro, literalmente, com as vírgulas que separam um emprego aqui outro ali, em seu curriculum. Acolhido pelas prostitutas do Mangue, a essa altura, com tão pouca idade, passou a viver como um bicho solto. Não se sabe se por conselho ou desavença com um policial, sai do Mangue e muda-se para a Lapa, quando passa a vender perfumes, ainda com uma passagem como garimpeiro em Minas Gerais. Pode-se dizer que antes dos 40 anos Antônio Fraga, tinha vivência que Jack Kerouac e Jean Genet em termos de uso e abuso da linguagem popular. Ao longo da vida, tenta a sorte em Goiás, mais tarde retorna ao Rio de Janeiro, como auxiliar de cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da rádio Vera-Cruz. E, imprecisamente entre os anos de 1959 e 1960, Antônio Fraga foi lanterninha de cinema no Cine Palácio da rua do Passeio.
Não se sabe se a transmissão tinha sido interrompida, mas o fato é que após o episódio impensado, Fraga se isolou por quatro dias no interior do Rio de Janeiro e escreveu Desabrigo.
Desabrigo tem 24 capítulos dispostos em três partes: Primeiro Round, Segundo Tempo e Terceiro Ato. É narrado em terceira pessoa, e apenas nas últimas páginas, sabe-se que o personagem, que se senta na máquina de escrever para narrar a estória, chama-se Evêmero, uma espécie de alter-ego de Fraga que anda pela Zona do Mangue com Desabrigo, Cobrinha e Miquimba, no bordel de Margô e no Café e Bilhares Flôr do Estácio. Aí estão, malandros, mendigos, esfomeados, bêbados, prostitutas e rufiões. Uma curiosidade interessante é que o apelido de Antônio Fraga, era Cobrinha em suas andanças pelo Mangue. E por muito tempo, esta curiosidade levou críticos a o compararem com Proust - fato que Fraga sempre negou, por que malandro é malandro e mané é mané.
Cercado de gírias, num claro convite para que a voz coloquial urbana marginal rasgasse os limites da literatura, que Lima Barreto tinha começado a esgaçar, o livro conta com um glossário ao final, para auxiliar o leitor não-douto em malandragem a se perder de vez pelo emaranhado do enredo. Essa opção pela narrativa é direta, crua, cercada de palavrões saídos das bocas de personagens ordinários, e sem rebuscamentos, pode ferir os pruridos acadêmicos. Pode até soar como uma opção pela lei do menor esforço. Algum leitor desatento pode encará-la equivocadamente frágil, apressada, descompromissada, como uma tendência natural à simplificação já que não conta com pontos finais regulares ou mesmo as vírgulas exigidas na língua culta. Mas tudo isso são equívocos e conclusões apressadas.
Equívoco 1: o personagem Evêmero é uma clara alusão alegórica ao escritor e hermeneuta grego do século IV a.C., pai de uma corrente hermenêutica conhecida como everemismo, segundo a qual personagens mitológicos, são seres humanos divinizados, tanto pelo medo como a admiração. Para o Evêmero, resgatado por Fraga, em sua História Sagrada, o Olimpo dos Deuses homéricos era o Mangue
Equívoco 3: Na parte final da narrativa, Fraga interrompe abruptamente a estória, para incluir cinco tópicos que intitula Pontos de Vista. Nestes, cita o gramático francês Henri Bauche para defender sua linguagem popular, assim como Campos de Carvalho e Pirandello. Evocando o escritor Azorín, Pio Baroja o filósofo Miguel Unamuno, defende sua postura estética, apoiado no “vasto grito do Ipiranga”, dado por estes “em prol da liberdade estética”. O que implica em pesquisa e método na elaboração intelectual e estética de suas posições.
Ou seja, para evitar qualquer equívocos, o malandro escreve seu livro em gírias, sem vírgulas, com minúsculas em princípio de frase, e com nomes próprios sem maiúsculas. Impertinente, cita em francês, italiano e espanhol, como se à guisa de um deus grego, inventasse um mundo de marginais e dissesse: Impertinente, uma vírgula! Malandragem, isso aqui é o Inferno, e aqui, desse pedaço cuido eu. Pra você me ler, eu não preciso ir onde você está. Você tem que baixa aqui nessa minha quebrada, entrar nos becos e tentar entender essa porra aqui.
De fato, a produção de Fraga sempre foi irregular. Sabe-se que Desabrigo foi a única obra publicada em vida. Mas recentemente publicou-se, com a ajuda dos filhos e amigos, Desabrigo e Outros Trecos, que reúne a única obra já publicada de Fraga (Desabrigo) e 14 escritos inéditos (Outros Trecos). No total, são apenas 118 páginas, mas basta olhar a dedicatória para entender quem é que está falando. "Para mim mesmo, com muita estima", escreve Fraga para si mesmo.
Alguns contos, como O Louva-a-deus, apresentam semelhanças bem-humoradas com o enredo de Franz Kafka, sobre um inseto que devora tudo pela frente deixando intocadas apenas as igrejas. Em O Estofo dos Sonhos e O Galante do Jacaré, Antônio Fraga surpreende por não abusar mais da linguagem fragmentada e coloquial. Seus personagens já não são mais oniscientes e já não compartilham vivências apenas pessoais.
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