ANTÔNIO FRAGA




Título: Antônio Fraga
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

Antônio Fraga nasceu em 30 de junho de 1916 no Rio de Janeiro. Era Filho de Waldomira da Fraga Fernandes e Justino Fernandes. Os pais, ambos com simpatias anarquistas, se conheceram no Segundo Congresso Operário Brasileiro ocorrido na cidade do Rio em 1913. Justino era português da cidade do Porto, um "tripeiro" que ganhava a vida como padeiro, e teria aderido ao Anarquismo ao travar contato com o célebre militante italiano Errico Malatesta (1853-1932) quando este propagava tal ideologia pela península ibérica. A mãe era uma costureira capixaba, nascida no município de Cachoeiro do Itapemirim, e que por sua vez, tornou-se anarquista a partir de seu envolvimento nas lutas trabalhistas travadas no Rio de Janeiro, para onde havia migrado em busca de melhores condições de vida.

O casal foi morar na área denominada anos mais tarde como Cidade Nova, localizada entre Catumbi, Estácio e Canal do Mangue. Sabe-se pouco da infância de Antônio. Parece que foi expulso de casa ainda novo pelo pai, indo morar em 1933 na zona do baixo meretrício do Mangue do Rio de Janeiro. Largou a escola – que considerava extremamente chata e inútil –, passando a estudar em casa mesmo, com auxílio dos pais. Começou igualmente a trabalhar cedo. Primeiro como caixeiro no comércio do pai, passando a vendedor de siri na região do Mangue. A partir da expulsão de casa aos 16 anos, viveria o resto da vida numa vida de biscateiro, literalmente, com as vírgulas que separam um emprego aqui outro ali, em seu curriculum. Acolhido pelas prostitutas do Mangue, a essa altura, com tão pouca idade, passou a viver como um bicho solto. Não se sabe se por conselho ou desavença com um policial, sai do Mangue e muda-se para a Lapa, quando passa a vender perfumes, ainda com uma passagem como garimpeiro em Minas Gerais. 
Pode-se dizer que antes dos 40 anos Antônio Fraga, tinha vivência que Jack Kerouac e Jean Genet em termos de uso e abuso da linguagem popular. Ao longo da vida, tenta a sorte em Goiás, mais tarde retorna ao Rio de Janeiro, como auxiliar de cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da rádio Vera-Cruz. E, imprecisamente entre os anos de 1959 e 1960, Antônio Fraga foi lanterninha de cinema no Cine Palácio da rua do Passeio.

A principal criação de Antônio Fraga foi mesmo a novela Desabrigo, escrita em 4 dias no final do ano de 1942 e publicada pela primeira vez em 1945. Uma curiosidade cerca esta novela. Na década de 1940, Fraga trabalhava como locutor na Rádio Vera Cruz. Sabendo da notícia que alguns intelectuais importantes, estavam publicando artigos na revista Cultura Política, publicação promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, indignou-se. Fez um discurso ao vivo, com muita ironia, afirmando que os intelectuais que escreveram seus artigos para a revista, estavam em estado de delírio, e que o maior índice de demência no Brasil, encontrava-se justamente entre os escritores.

Não se sabe se a transmissão tinha sido interrompida, mas o fato é que após o episódio impensado, Fraga se isolou por quatro dias no interior do Rio de Janeiro e escreveu Desabrigo.


O livro continha fortes críticas sociais, ousadias estéticas e afrontas aos beletristas. A primeira edição do livro teve uma tiragem de mil exemplares, publicado pela editora Macunaíma, editora de breve existência criada por Fraga e mais dois amigos, Antônio Olinto e Ernande Soares. Os três formaram o Grupo Malraux, organizado no começo de 1945, pra montar exposições de poesia, e a idéia de montar uma editora surgiu para que lançassem o livro de Fraga que a essa altura já tinha quase 30 anos. Alugaram uma pequena sala na Rua São José, 21 - no local em que antes funcionara o Instituto Superior de Preparatórios – e mandaram os originais a uma oficina quase artesanal no Centro do Rio de Janeiro.

Desabrigo tem 24 capítulos dispostos em três partes: Primeiro Round, Segundo Tempo e Terceiro Ato. É narrado em terceira pessoa, e apenas nas últimas páginas, sabe-se que o personagem, que se senta na máquina de escrever para narrar a estória, chama-se Evêmero, uma espécie de alter-ego de Fraga que anda pela Zona do Mangue com Desabrigo, Cobrinha e Miquimba, no bordel de Margô e no Café e Bilhares Flôr do Estácio. Aí estão, malandros, mendigos, esfomeados, bêbados, prostitutas e rufiões.  Uma curiosidade interessante é que o apelido de Antônio Fraga, era Cobrinha em suas andanças pelo Mangue. E por muito tempo, esta curiosidade levou críticos a o compararem com Proust - fato que Fraga sempre negou, por que malandro é malandro e mané é mané.

Cercado de gírias, num claro convite para que a voz coloquial urbana marginal rasgasse os limites da literatura, que Lima Barreto tinha começado a esgaçar, o livro conta com um glossário ao final, para auxiliar o leitor não-douto em malandragem a se perder de vez pelo emaranhado do enredo. Essa opção pela narrativa é direta, crua, cercada de palavrões saídos das bocas de personagens ordinários, e sem rebuscamentos, pode ferir os pruridos acadêmicos. Pode até soar como uma opção pela lei do menor esforço. Algum leitor desatento pode encará-la equivocadamente frágil, apressada, descompromissada, como uma tendência natural à simplificação já que não conta com pontos finais regulares ou mesmo as vírgulas exigidas na língua culta. Mas tudo isso são equívocos e conclusões apressadas. 

Equívoco 1: o personagem Evêmero é uma clara alusão alegórica ao escritor e hermeneuta grego do século IV a.C., pai de uma corrente hermenêutica conhecida como everemismo, segundo a qual personagens mitológicos, são seres humanos divinizados, tanto pelo medo como a admiração. Para o Evêmero, resgatado por Fraga, em sua História Sagrada, o Olimpo dos Deuses homéricos era o Mangue 

Equívoco 2: outro recurso utilizado em Desabrigo, são as citações estrangeiras, que aparecem de forma irônica e surreal ao leitor intelectualizado. Por exemplo, na conversa entre dois bêbados, em que um assume a personalidade de Anatole France e indica o bonde correto para outro bêbado a caminho de casa - quem nunca? Ou, um bêbado que fala com um poste que lhe responde em inglês - situação que podem sim acontecer! 

Equívoco 3: Na parte final da narrativa, Fraga interrompe abruptamente a estória, para incluir cinco tópicos que intitula Pontos de Vista. Nestes, cita o gramático francês Henri Bauche para defender sua linguagem popular, assim como Campos de Carvalho e Pirandello.  Evocando o escritor Azorín, Pio Baroja o filósofo Miguel Unamuno, defende sua postura estética, apoiado no “vasto grito do Ipiranga”, dado por estes “em prol da liberdade estética”. O que implica em pesquisa e método na elaboração intelectual e estética de suas posições.

Ou seja, para evitar qualquer equívocos, o malandro escreve seu livro em gírias, sem vírgulas, com minúsculas em princípio de frase, e com nomes próprios sem maiúsculas. Impertinente, cita em francês, italiano e espanhol, como se à guisa de um deus grego, inventasse um mundo de marginais e dissesse: Impertinente, uma vírgula! Malandragem, isso aqui é o Inferno, e aqui, desse pedaço cuido eu. Pra você me ler, eu não preciso ir onde você está. Você tem que baixa aqui nessa minha quebrada, entrar nos becos e tentar entender essa porra aqui.  

Antônio Fraga conviveu com boa parte da intelligentsia entre 1940 e 1960, frequentou encontros boêmios, tertúlias e assembleias literárias onde participavam Vinícius de Moraes, Lucio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade - que o comparou a Graciliano Ramos -, até pintores como José Pancetti, dentre outros. Nesse período chegou a ser editor do Jornal de Literatura em 1947, onde também escrevia  com o pseudônimo de seu alter-ego, Evêmero. 

Mas esse convívio, não fez de Fraga um deles. Nos anos 1960, enquanto Antônio Olinto já era adido cultural na África, Fraga, empurrado por dificuldades econômicas, já morava na Baixada Fluminense e a distância, não apenas física, tornou-o arredio e mais irônico. Assim como Lima Barreto recusou o convite de Sergio Buarque de Holanda para fazer parte dos Modernistas em 22, afirmando que a a Klaxon não passava de uma revista para vender automóveis, Antonio Fraga não foi menos cruel com movimentos de vanguarda, como o Concretismo, dos anos 1960. Não queria saber daquilo. Ainda que fosse uma espécie de mito da poesia marginal, em que orbitavam alguns poetas importantes da geração mimeógrafo, como Leila Míccolis e o roteirista Jose Louzeiro, ele não ia até eles. Se quizessem, que pegassem o trem no ramal de Japeri para ir encontrá-lo em Nova Iguaçu para participar de seus saraus literários. Ele já fazia muito em baixar  Austin e Comendador Soares, para encontrá-los. 

De fato, a produção de Fraga sempre foi irregular. Sabe-se que Desabrigo foi a única obra publicada em vida. Mas recentemente publicou-se, com a ajuda dos filhos e amigos, Desabrigo e Outros Trecos, que reúne a única obra já publicada de Fraga (Desabrigo) e 14 escritos inéditos (Outros Trecos). No total, são apenas 118 páginas, mas basta olhar a dedicatória para entender quem é que está falando. "Para mim mesmo, com muita estima", escreve Fraga para si mesmo.

Alguns contos, como O Louva-a-deus, apresentam semelhanças bem-humoradas com o enredo de Franz Kafka, sobre um inseto que devora tudo pela frente deixando intocadas apenas as igrejas. Em O Estofo dos Sonhos e O Galante do Jacaré, Antônio Fraga surpreende por não abusar mais da linguagem fragmentada e coloquial. Seus personagens já não são mais oniscientes e já não compartilham vivências apenas pessoais.

Seu primeiro emprego com carteira assinada, foi aos 69 anos, na Fundação LBA – Legião Brasileira de Assistência - por intermédio de "amigos importantes", que se sensibilizaram pela penúria em que o escritor se encontrava. A sinecura, ao final da vida, pouco valeu nos seus 8 anos seguintes.  Morreu em 1993, no município de Queimados, a mais de 50 quilômetros da capital, não totalmente esquecida sua fortuna crítica, mas pouquíssimo celebrado em vida.


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