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ITAMAR ASSUMPÇÃO

 



Título Itamar Assunção
Dimensões: 9x9cm
Data: Outubro de 2021
Técnica: Xilogravura


No início da década de 1980, à margem de toda e qualquer imposição mercadológica que poderia ser ditada pelas gravadoras, uma nova cena cultural surgia em São Paulo. Ao redor do Lira Paulistana, um teatro localizado no bairro de Pinheiros, um certo Francisco José Itamar de Assumpção, pulou para lado de fora dessa margem para engrossar o caldo, e lançou o seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, pelo selo independente do próprio teatro da Lira.

Bisneto de escravos de origem angolana, o baixista, poeta e performance Francisco José Itamar Assunção, nasceu em 13 de setembro de 1949, no Tietê. Era neto de um alfaiate e seu pai, Januário, era fiscal do Instituto Brasileiro do Café, órgão criado no segundo governo de Getúlio Vargas, onde os fiscais tinham cargos vitalícios. Junto com a mãe, Cida, tinham um terreiro de umbanda em Arapongas onde Januário era Pai de Santo e a mãe recebia igualmente entidades.  Aos 12 anos de idade, quando sua avó materna, que era católica, morre, Itamar se muda para Arapongas no Paraná. Diga-se de passagem, ele e os dois irmãos, Narciso e Denise - que mais tarde se tornariam atores - cresceram ouvindo batuques, seja no terreiro da família ou os festejos de tambú, com as danças de umbigada, de comunidades remanescente de escravos bantu.

Em Arapongas iniciou estudos de contabilidade, abandonando o curso para atuar no teatro e fazer shows em Londrina. Começou a andar com a turma do GRUTA – Grupo de Teatro Universitário de Arapongas. Em 1971, Itamar participa do IV Festival Universitário de Música Popular de Londrina com a canção Caboclo da Mata, interpretada pelos seus irmãos. Ganham o prêmio de “Melhor Apresentação Total” deste ano, e o do ano seguinte. Essas primeiras composições ainda estavam muito marcadas pela tendência à música de protesto, gênero que abandonou logo. Mas na cidade, conhece em 1973 outro músico, que também viria a se tornar marginalmente famoso, e com quem iria colaborar por longos anos, Arrigo Barnabé. Moravam na mesma “república” e isso, para quem já participou de alguma confraria, tem muita importância na vida de um cara.

No final dos anos 70, formou com o guitarrista Tony Penhasco, a primeira banda, a Mão de Pilão, e compôs Nego Dito. A canção ficou em terceiro lugar no Segundo Festival da Feira da Vila Madalena em 1980. Para Arrigo Barnabé, esse momento foi o ponto de inflexão de Itamar, largou a música de protesto e deu aquela afinada que faltava no estilo.

O cara que “aprendeu da importância de não dar muita importância” e “ficar com os seus pés no chão”, entrou e saiu do panorama poético e musical brasileiro, mantendo sua eterna integridade e coerência. No final da década de 1970 as gravadoras internacionais captavam artistas de grande projeção, pois enxergavam no país um grande e lucrativo mercado de disco. Esse não foi, definitivamente o caso de Itamar Assunção. E se foi, ele fez o possível para criar nuvens de fumaça suficientemente espessas para sair de fininho.

O Lira, como era chamado, era um teatro de 150 lugares, onde diversas manifestações culturais dessa nova vanguarda paulista tiveram lugar. Muitos grupos musicais alternativos passaram por seu palco como o Língua de Trapo, Rumo, Premeditando do Breque, e até mesmo o rock de grupos como o Gang 90, Titãs, Violeta de Outono e Ultraje a rigor, passaram por seus holofotes alternativos.

Quando Beleléu, Leléu, Eu é lançado, pelo selo independente do teatro Lira, Itamar Assunção já tinha uma turma ao redor suficiente visionária. Ao lado de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, entre outros jovens artistas, Itamar desbravou a senda de fazer música com dinheiro do próprio bolso. Não à toa, Ás próprias custas S.A. é o termo que dá título ao seu segundo LP, de 1981. Mas voltando ao primeiro, Beleléu, Leléu, Eu, o cantor lançara o disco em 1980, acompanhado da banda Isca de Polícia. Esse é um dos seus discos mais famosos e faz parte, inclusive, encontra-se na 86ª posição da lista dos 100 Melhores Discos de Música Brasileira de todos os tempos organizado pela revista Rolling Stones. Isto é, se você tem uma coleção de discos de música brasileira, você precisa ter este disco.

As performances de Itamar Assunção eram um capítulo à parte. Um homem que na vida privada, cuidava das filhas, amava a mulher, e tinha um carinho especial por plantas e orquídeas, no palco se transformava quando interpretava por exemplo Nego Dito. No palco, criava uma relação meios que simbiótica entre o marginal e o homem, encarava o público, as vezes o destratava.  A cada olhar, a cada movimento de seu corpo, parecia que Francisco José, um homem massacrado pela condição de pobre e periférico, ia tirar uma navalha do bolso, para se defender da vida como pudesse, para cobrar dela aquele boleto vencido. Às vezes, descia do palco e encarava uma pessoa a esmo na platéia, caminhava em meio ao público e começava a dialogar rispidamente com ela. Se pudéssemos fazer algum paralelo com um artista estrangeiro, talvez, apenas um Tom Waits, ou Nick Cave, guardadas as proporções, chegariam perto do nível de desempenho de um papel no meio de uma manifestação artística.

Em sua vida há várias situações mal explicadas de atitudes hostis sofridas por ele. Como num episódio em que Itamar corria pela rua para entregar o cartão da esposa, branca, e que um policial encarou como assédio. Ou, mais grave ainda, no episódio em que foi preso por suposto roubo. O parceiro da letra Prezadíssimos Ouvintes, Domingos Pellegrini, conta no Vol.2 do Song Book de Itamar Assunção um episódio passado em 1972, quando o artista tinha 23 anos. Pellegrini tinha lhe emprestado um gravador, que Itamar levou-o consigo para casa. No caminho, a polícia o prendeu e o encarcerou por 5 dias, numa cela incomunicável, simplesmente por acreditar que ele tinha roubado o gravador. Ainda que o poeta tivesse encarado o episódio com bom humor, chegando a criar o nome da nova banda, Isca de Polícia, a partir do episódio, para bom entendedor pode haver sim algo de estrutural no nexo que liga esses eventos às “sutilezas” das várias camadas do racismo que imperam no Brasil.

Em outros momentos, esse racismo não era expresso de forma tão grosseira e brutal, mas de maneira eufemizada sob a máscara da denegação. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e algumas vezes foi encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba.

Arisco ao mercado fonográfico e a movimentos políticos organizados, não foi um poeta negro que fez de sua etnicidade um bastião de luta constante. Mas os ecos da condição social impostas e da opressão policial sempre estiveram em sua lírica.  Como na música Cabelo duro em que fala categoricamente “eu tenho o cabelo duro mas não o miolo mole, sou afrobrasileiro puro, é mulata a minha prole”, Ou mesmo na Negro dito, “tenho o sangue quente, não uso pente, meu cabelo é ruim”.  E o que dizer de “a textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura” ? Quando alfinetava, igualmente, a ética Bandeirante em Cultura Lira Paulistana.

E não que ele não tenha feito discos de samba, como fez de fato na obra dedicada a Ataulfo Alves em 1996. Ou seja, cantou samba – à sua maneira – mas não por exigência de vontades de gravadoras. Na única vez em que teve um disco seu lançado por uma grande gravadora, foi em 1988, Itamar não deixou de ser irônico com sua própria condição de marginal. O homem deu nome ao disco lançado pela Intercontinental: Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!! 

E foi além. Usando gancho as práticas de marketing da indústria fonográfica, criou as vinhetas como Pesquisa de mercado I, II e III; canções como Sutil e Mal menor ganharam uma roupagem radiofônica, comercial. Tudo com fins mercadológicos, trazendo refrões fáceis, melódicos e harmonias buscando os hits e batidas mais populares.

Em meados da década de 1990, já se via um Itamar cansado da pecha de maldito, entretanto foram os anos mais prolífico para o poeta em termos de shows e rearranjos de clássicos da música brasileira.  Em 1993, compôs “Só vejo azul” com Rita Lee, que, em troca, participou da faixa “Venha até São Paulo” de Itamar Assumpção, no disco Bicho de 7 cabeças I.  E outras ações artísticas inusitadas foram Bicho de 7 cabeças de 1993, que foi assinado por Itamar e pela banda Orquídeas do Brasil, composta apenas por musicistas mulheres, e o já citado disco dedicado à obra de Ataulfo Alves em 1996. Um dos pouquíssimos projetos que o quase obsessivo artista deixou pela metade foi Pretobrás – Por que que eu não pensei nisso antes? (1998 – 2010), cujos volumes 2 e 3 sairiam somente após a sua morte precoce, em 2003.

A música Código de Acesso, mostra bem sua relação com as gravadoras e com a Indústria Cultural.

Para muitos, Itamar não passava disso: um doidão. Um doidão desses geniais, que tanto podia acordar cedo para cuidar das orquídeas, das plantas e fazer o café da manhã dos filhos, cuidar das orquídeas e fazer o café da manhã para as crianças, depois de um show, sem dormir por três noites à fio.

Uma nova geração de músicos independentes, têm nele uma referência fundamental. Por exemplo, a cantora trans Liniker fez uma versão para Fim de festa, e a banda Teto Preto cantou recentemente, Já deu pra sentir, bem como Metá Metá remusicou Tristeza não. Outros que revisitaram o poeta foram o grupo Tono Nega música e o cantor Criolo com O tempo todo. Além do resgate musical, Itamar Assunção é tema de inúmeras teses na área de história e estudos literários.

Dono de uma incansável cabeça criativa, quando morreu Itamar deixou diversos escritos e rascunhos de letras e canções, que foram reunidos e lançados pelo Itaú Cultural no volume Cadernos Inéditos.

No ano de 2000 os médicos descobriram um câncer no seu intestino. Mesmo doente, em meio a cirurgias e pesados tratamentos, Itamar manteve a rotina de shows nos intervalos das internações. Nesse período também gravou um disco em parceria com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que acabou cancelado, e num segundo volume de Preto Brás iniciado em 1998, que ele pretendia que fosse uma trilogia de discos. Lutou por três anos contra as complicações decorrentes do câncer, mas a doença reincidira para a região pélvica.

O cantor, poeta e compositor paulista Itamar Assumpção morreu na noite de 12 de junho de 2003, aos 53, em sua casa.