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O Ouro de Nápoles


Este filme de
Vittorio De Sica é sem dúvida uma homenagem existencialista, sem os idiossincráticos desvios da angústia existencial, modelado pelo bom humor, a Nápoles. Vittorio De Sica passou seus primeiros anos na cidade e pôde capturar com maestria o roteiro traçado a partir do livro de Giuseppe Marotta, de mesmo nome. Trata-se de  uma coleção de 6 episódios napolitanos:  "Il guappo", "Pizze a credito", "Funeralino", "I giocatori", "Teresa", e "Il professore". A versão americana omitiu, por algum motivo que ainda vou descobrir, 2 dos vignettes. Justamente, o terceiro -  Funeralino - e o sexto -  Il professore

O filme chegou a fazer parte da competição de Cannes em 1955, junto com outros incríveis filmes como Rififi, que levou o prêmio de melhor direção, como o magnífico East of Eden do Elia Kazan, que levou o prêmio de melhor filme dramático;  Marty, de Delbert Mann, que ganhou a Palma de Ouro; e Marcelino pan y vino, que não levou prêmio nenhum, mas é um desses filmes com cães tristes e criança órfã, que são sempre tocantes. Uma curiosidade é que L´Oro di Napoli competiu com um filme brasileiro também: Samba Fantástico de Jean Mazon e René Persin. Para quem não lembra do Mazon, segue um refresco para a memória. Um dos fotógrafos mais emblemáticos do fotojornalismo brasileiro, que formou uma geração de fotógrafos, inclusive guerra. Sempre oportunista, chegou no Brasil na década de 40 e logo se enroscou com o pessoal do DIP do Vargas. Do Departamento de Imprensa e Propaganda, a censura do Vargas, foi trabalhar na Cruzeiro, do Diários Associados, do famigerado Assis Chateaubriand, com David Nasser. O francês, operando as objetivas, e o libanês, textos rocambolescos de dar inveja a qualquer palimpsesto do realismo mágico latinoamericano,   tornaram-se mitos em pouco tempo. Chegaram até a forjar a morte de Mazon para aumentar as vendas da Cruzeiro, e claro, tudo com a aprovação de Chatô, que nunca foi flor que se cheirasse mesmo.  

Por falar em realismo mágico, o que me levou a assistir L'oro di Napoli foi justamente o elogio desvelado que Gabriel Garcia Marques faz ao filme no livro, meio biográfico, meio ficcional e cheio de indiscrições e cabotinagens, do jornalista, diplomata, e amigo pessoal de Gabo,  Plinio Apuleyo Mendoza, La llama y el Yelo - que acabei de folhear estes dias. No livro, disque Marques revela a Mendoza, numa das andanças por Paris, sem testemunhas oculares - como quase tudo que o tal do Plinio revela - seu fascínio pelo filme roteirizado pelo Giuseppe Marotta. Fui atrás do filme, diga-se de passagem, dificílimo de encontrar. Mas encontrei. Assisti. 


Filmaço. Pelo menos para mim, que existencialmente falando é o que importa!


O problema, é que nos dez anos que separam A Culpa dos Pais - filme meio chato pra dedéu - de L´oro di Nápole, o camarada faz Ladrões de Bicicleta e Umberto D. Dois clássicos que facilmente obliterariam qualquer coisa que o De Sica fizesse nesta década. Afinal, L´oro di Nápole nem sequer tinha uma linha de coerência argumentativa, tratando-se apenas de seis episódios da vida cotidiana de uma cidade. Aparentemente, por que alguns dos short movies da série, são absolutamente fantásticos.


Na véspera do Natal de 1953, Saverio Petrilho (o comediante Toto - chamado príncipe da risada italiano), encontra-se em frente ao túmulo de Maria Javarone, que havia morrido em 21 de novembro de 1943. A morta, na verdade, era a esposa de Carmine, amigo explorador e aproveitador, amigo dos tempos de escola, que ocupa sua casa de Saverio, faz de empregada sua mulher, e passa até mesmo a educar seus filhos. O protagonista se sente mais que angustiado com toda aquela situação sem saída. E se aproveita de um mal súbito de Carmine para expulsá-lo de casa. Os amigos resgatam Carmine e chamam o melhor médico da Itália para saber qual seria o mal de Carmine, que após os resultados médicos retorna à casa de Saverio, na noite de natal para lhe dar a notícia que o mal não passava de gazes presos. Saverio, abraçado a sua família, reitera sua posição de mandá-lo embora. E fiel à epígrafe do filme, em que são infinitas as características esplendorosas e mesquinhas das vielas napolitanas, Carmine parte não sem antes esmagar o bolinho das crianças sobre a mesa.


Logo em seguida,  uma vendedora de pizza, voluptuosa  e infiel  - Sofia Loren - perde a aliança de casamento numa das escapadas que dá à guisa de ir à missa, escapa para a loja do sapateiro. A cena final é fantástica: Depois de procurar na igreja, na casa do guarda noturno, e sabe la mais onde, Don Rosário, o marido corno, quase já desiste da busca, e eis que surge o sapateiro com o anel e um papinho mole de que tinha engolido o anel numa das pizzas que comprara com Don Rosario - que se gabava de vender fiado a todos. A essa altura já tem as rezadeiras, o padre, os vizinhos, um velho desdentado, e uma renga de gentes a procura do tal anel, seguindo-os pelas vielas de Napoles. Enquanto todos celebram o reaparecimento do anel, Don Rosario volta a conferir e não encontra o nome do sapateiro no caderninho da pindura. Vendo que a situação já se enrolava, São Pedro manda um chuvareu, e o velho desdentado grita: Olha a chuva! E aí foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time... mas todo mundo feliz, ou pelos menos conformado com a explicação.


Num dos episódios mais  emocionantes e poéticos, uma criança morre numas das casas de cômodos da cidade. O coveiro baixas as inumeráveis escadas do sobrado com um caixãozinho branco. A mãe, massacrada pela dor da perda, ainda mantém a altivez de organizar o cortejo do funeral que atravessa toda a cidade,  adentra pela Vila Marina, sendo conduzido por cavalos. Ela faz questão que o cortejo desvie do mofo da obscuridade das vielas. E neste momento a estória se torna esplendorosa,  desprendendo toda uma cadeia de sentimentos dos mais desconhecidos em quem assiste esse episódio, quando a mãe do defunto começa a arremessar doces e balas para as crianças que assistem o cortejo, tornando-os solidários à sua incomensurável dor da perda. E só então ela chora incessantemente.


Os dois últimos episódios são igualmente inusitados e fantásticos a vez. 


O empobrecido e já meio tereré das idéias, o jogador inveterado Conde Prospero B. obrigando o filho pré-adolescente de seu porteiro a jogar cartas com ele, e perdendo todas. O casamento inesperado e inusitado de Teresa, uma prostituta, que é apresentada ao noivo no dia do casamento, já preparado para que tudo se parecesse a um casamento normal, com bolo, noivos, festa, padrinhos, convidados e votos de felicidades aos noivos. Aos poucos Teresa se vê numa espécie de cilada , farsa ou realidade paralela, quando Teresa passa a perceber uma certa esterilidade enjoativa no homem que está substituindo uma outra mulher, recentemente morta, e que tem próprios os pais da morta como convidados desse casamento surreal, feito as pressas, estão presentes apenas para receber uma espécie de indenização do noivo, futuro marido de Teresa. O episódio é extremamente surreal, mas de uma familiaridade arrebatadora apenas para os que crêem que a realidade e a ficção não passam de uma troca de sinais da alegoria. 


O último episódio trata das façanhas do “professor” Ersilio Miccio, um “vendedor de sabedoria” que “resolve problemas” das pessoas que o procuram, com conselhos certeiros sobre tudo. Ersílio, sabia que se conselho fosse bom se vendia, e portanto os vendia, e com grau de assertividade elevadíssimo. Apenas não o entendi o assovio que Ersílio aconselha, ao final da estória, e que supostamente seria o antídoto contra a tirania. Na certa, coisa de italiano que só os de Nápoles vão entender, mas certamente algo que não altera em nada o conjunto de um filme muito belo.


O filme, aparentemente despretensioso, é digno de aplauso. As estórias estão recheadas de personagens bufos, acintosos, parciais, mesquinhos, intrometidos, frágeis, grandiosamente compassivos e de uma disparidade interna desconcertante. Isso é De Sica, né?


OZUALDO CANDEIAS




Título Ozualdo Candeias
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

 

Nasceu em 5 de novembro de 1922, e foi registrado nas cercanias de Cajubi, nos arredores de São José do Rio Preto. Mas não sabe se nasceu em São Paulo, ou se nas cercanias de Campo Grande, a caminho de Cuiabá. Era filho de agricultores, e passou a infância e juventude entre São Paulo e Mato Grosso. Seu pai Antônio Ribeiro Candeias, era imigrante português, que veio com nove anos para o Brasil e foi trabalhar em fazendas no noroeste do estado de São Paulo, próximo a Ribeirão Preto. Homem de educação elementar, o pai, chegou a ter uma pequena frota de taxis e uma pensão para nordestinos que chegavam na cidade.

O filho bandonou a escola ainda no primário e foi trabalhar campo. Na idade do alistamento militar, serviu ao Exército como recruta no Mato Grosso. Depois se mandou para o Rio de Janeiro onde passou pouco tempo.

Dentre os inúmeros trabalhos que teve ao longo da vida, foi office-boy, vendedor de sorvete, lustrador de móveis, trabalhou em fábrica de cama, fábrica de armário, fábrica de bolsas, foi metalúrgico, vendedor de sorvete. Trabalhou também como metalúrgico, operário e funcionário público, chofer de táxi e caminhoneiro. 

Não. Seu nome não é Osvaldo. É Ozualdo, com “Zê” e “U”, no lugar do “Ésse” e do “Vê”. Ozualdo Ribeiro Candeias foi o mito do Cinema Marginal – expressão cunhada pelo jornalista e crítico de cinema Jairo Ferreira. E quem o conheceu, era unânime em afirmar que ele cara meio bruto, quase rude, desses metidos a machão, que fala palavrão e cuspe no chão.  

Casou pela primeira vez no final dos anos 1940, conseguiu um emprego público na prefeitura, como fiscal de obras. Comprou um caminhão e começou a fazer entregas, primeiro em São Paulo, depois Rio de Janeiro e Mato Grosso.

Nessas andanças pelo interior, já com o primeiro filho pequeno, teve uma ideia maluca de comprar uma câmera, pois segundo ele, nos caminhos apareciam muitos discos voadores. Convenceu dois produtores a bancar a maluquice, que naquela época custava caro. Eram filmes reversíveis de trinta metros, e a câmera mais barata era a clássica Keystone de 16mm, comercializada a partir dos anos 1930. Viajava com a câmera dentro do caminhão, pelas estradas do Brasil. O vendedor lhe deu umas noções básicas, mas nesses primeiros meses queimou rolos e rolos de filmes com seu amadorismo. Então, passou a ler tudo que lhe caía nas mãos sobre como começar a usar a tal Keystone. Descobriu o que era um fotômetro, diafragma, montagem de produção. Fez esforços tremendos para ler os catálogos e os mais de vinte livros em inglês e francês, sendo engolido por tudo aquilo.

A mãe, pragmática, nunca foi simpática à carreira de cineasta do filho, tanto que quando ganhou o primeiro prêmio com Cinema, a mãe perguntou “quanto é que te deram?”, ele respondeu “nada”, ela “prêmio sem dinheiro, que diabo é isso?”.

Quando assistiu Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, em 1955, e o bangue-bangue Matar ou Correr, de Carlos Manga, deixou aquela estória fiada de filmar disco voador para trás. E foi fazer Cinema.

Nesse mesmo ano lança o curta-metragem Tambau - Cidade dos Milagres. Filmado em 16mm, já podemos perceber nesse documentário sua atenção dada aos miseráveis e deserdados de toda a sorte, que tentam na figura do padre milagreiro Donizetti, um fio de esperança. Enquanto um narrador irônico fala, o diretor percorre com a câmera o movimentado mercado da fé que funciona fora da igreja, com seus santinhos, revistas contando os milagres, garrafas de água-benta, fitinhas milagrosas.

Ainda com o financiamento do governo do estado de São Paulo, Candeias dirigiu mais dois curtas documentais: Polícia Feminina lançado em 1959 e Ensino Industrial, três anos mais tarde.

Mas foi apenas na década de 1960 que deixou os filmes institucionais, e passou a dar-se a conhecer como um dos pioneiros do cinema marginal nacional.

Em 1963, trabalhou no roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos, junto com José Mojica Marins, o Zé do Caixão. E com quem trabalhou no anos seguinte como assistente de direção em À Meia Noite Levarei Tua Alma, com que trabalhou no ano seguinte, como assistente de direção.

Seu primeiro longa-metragem de ficção, A Margem, de 1967, foi realizado praticamente por conta própria, com evidentes falhas técnicas de sincronização de som, roteiro, e dureza das imagens. Foi um filme de baixíssimo orçamento, como quase tudo que ele realizou e por isso mesmo com as falhas características desse tipo de montagem. Os críticos sempre atribuíram a seus filmes, um certo primitivismo e dureza – aliás, dizem as más línguas, que Ozualdo era sempre num primeiro contato, muito mal humorado e seco.

Entretanto, o filme beira a obra prima, e desde a primeira cena, do barco a remo, atravessando as margens do Rio Tietê, já dialoga com obras como Limite, de Mario Peixoto. É absolutamente impossível, não fazer esse tipo de conexão entre os dois filmes, e portanto, entender com quem e com que tipo de tradição, Ozualdo queria dialogar. O enredo girava em torno a história de duas prostitutas, uma branca e uma negra, um cafetão e um homem com problemas mentais. Ainda que as cenas sejam todas fragmentadas - por conta muitas vezes dos restos de rolos de filmes que não davam para filmar um plano de sequência completo -, A Margem é um filme extremamente coerente e bem contado, toda permeada pela trilha jazzística do grupo Zimbo Trio. 

Ainda em 1974, filma e monta a estória de ZéZero, um agricultor pobre do interior de São Paulo, que vive no campo, trabalha duro e não vê perspectiva em nada. Surge, então, uma mulher fina, bonitona, sedutora, que mostra ao protagonista Zé Necas todas aquelas maravilhas da cidade grande: bilhete de loteria, jornal, cinema, fotos de mulher com biquini, cartela do Baú da Felicidade, e tudo aquilo que é bom, mas que pode ferrar um cara. Ou seja, o protagonista não toma outra decisão que não a errada. Abraça com vontade a idéia de sucesso, glamour, vida social e da grana fácil. E chegando na cidade, obviamente a coisa não é bem como ele pensava.

O filme era de fato subversivo na década de 70, e nunca foi exibido. Não por ter sido censurado, mas pelo fato de Candeias ter-se recusado a exibi-lo à Censura Oficial. Exibir ZéZero era, de fato, contestatório e passível de prisão. O caráter marginal e grotesco do filme fica muito evidente nas últimas cenas.

De tanto apostar, ZéZero, ganha na Loteca  -  espécie de loteria federal do Estado. Recebe o dinheiro e decide voltar para o campo. Quando chega ao seu lugar de origem, descobre que muitos parentes e amigos tinham morrido, não restando quase ninguém. Consternado, o protagonista se pergunta o que faria com tanto dinheiro. Nesse momento aparece antiga mulher do princípio do filme, como que fantasiada com fitas de negativos de filme enrolados por todo o corpo. E diz: “enfia no c…”

Ou seja, se você fosse Ozualdo, faria como ele fez. Nem perderia seu tempo preenchendo os formulários do Ministério da Justiça e Polícia Federal para pedir autorização de exibição, de uma fita que evidentemente seria censurada. Até por que sempre sem dinheiro, sem financiamento, tendo que volta e meia fazer filmes institucionais para sobreviver, até quando fosse possível, Ozualdo, ao logo da década de 1970 partiu para o cinema pornográficos e a pornochanchada, para poder sobreviver.

Ele não se tornou um mito na Boca do Lixo, paulista, onde para o bem e para mal se produziam obras primas e fenomenais porcarias fílmicas, à toa.  Ele tinha um cuidado quase fetichista por cada plano do filme -mesmo nas pornochanchadas. Antes mesmo de mergulhar de cabeça no universo das prostitutas, proxenetas, do sexo explícito, ainda fez montagens excepcionais como uma versão caipira para o Hamlet de Shakespeare, que tinha no papel principal de Hamlet, David Cardoso – ator que estourara no ano anterior como Augusto, no filme A Moreninha.

No filme A Herança, pode-se ver o mesmo cuidado com a expressão caipira brasileira – que passava longe das irrelevâncias caricaturais do cinema de Mazzaropi, porém não sem menos ironia, para o espectador atento. Essa certa nostalgia rural era sincera, mesmo que algumas cenas beirasse o grotesco - como de fato acontece no mundo rural. O filme todo tem pouquíssimos diálogos, recheado de atuações duvidosas dos atores, e cenas extremamente toscas como a cruza de cães, e a famosa cena do monólogo, em que Hamlet dialoga com o crânio de Yorick, o falecido bobo da corte - na versão tubi-ornot-tubi de Orzualdo, o crânio de Yorick dá lugar à cacaça da cabeça de um boi. O filme culmina com uma moda de viola, num circo, onde toda a cidade iria assistir a um espetáculo. Praticamente a única cena em que há áudio com voz, e nesta os cantadores, contratados por Hamlet, desmascaram a suposta farsa do casamento da mãe com o padrasto. O filme ainda tem no papel de Fortinbrás, o ator Agnaldo Rayol! 

Uma coisa há de se admitir. Entre coragem e cara de pau, esse cuidado – ou descuido - para além de estético tinha uma razão. Dizem que pela falta de orçamento, acabava fazendo filmes com restos de fitas, que amigos de outras produtoras passavam para ele. Assim, ia os emendando e formando suas fitas. Nessas condições, ele sabia que os erros eram fatais, e talvez por isso mesmo queria realizar todas as fases do filme, desde a produção e orçamento até a montagem final. Se tornou sobrevivente daquele cinema brasileiro heróico e tosco.

Ozualdo, numa entrevista justificou o filme:

“Eu achava que pegando o Shakespeare e passando para o bang-bang, os produtores, que eu sempre achei uns caras inteligentes, poderiam se interessar por esse tipo de coisa. Era um espetáculo e poderia ser o que também chamam de ‘cultura’. Daí eu fiz uma espécie de adaptação, mas quebrei a cara. Ninguém se interessou. Noventa por cento das pessoas que entendem de Shakespeare e de Hamlet só sabem dizer ‘Ser ou não ser‘. Por causa dessa fita, eu tive de andar me defendendo por que eu estava avacalhando com Shakespeare. Era uma transferência que eu estava fazendo: uma Ofélia poderia ser negra porque seria mais brasileiro. Mas quando eu dizia transferência de valores ou de situação, ninguém entendia”.

Ozualdo, com todo o respeito, meteu seu dedo bem fundo nos filmes eróticos da Boca do Lixo. Consta nos créditos de várias produções como As Mulheres do Sexo Violento (1976), de Francisco Cavalcanti; Agnaldo, perigo a vista (1969), de Reynaldo Paes de Barros; Sinal Vermelho As fêmeas (1972), de Fauzi Mansur; A Noite do desejo (1973), de Fauzi Mansur; Com a cama na cabeça (1973), de Mozael Silveira; Maria sempre Maria (1973), de Eduardo Llorente; dentre muitos outros que pode-se não ter a mínima idéia.

Foi um cineasta que construiu narrativas com baixos orçamentos, com personagens baseados em roteiros, mesmo que pouco elaborados, presentes sua vida cotidiana das ruas, dos  seus habitantes do centro, com suas prostitutas e a arquitetura dos casarões decadentes das imediações do bairro da Luz – entregues a uma imensa cracolândia nos dias atuais.   

Atores esquecidos, diretores, escritores, roteiristas, técnicos, enfim, uma infinidade até de atores e atrizes famosos na televisão brasileira, ainda hoje, participaram dessas produções de baixo custo. Muitos famosos e famosíssimos escondem ou desconversam que passaram pelas telas – e por que não pelas camas -  da Boca do Lixo. Mas isso é outra estória.   

Ozualdo Candeias, não. Literalmente nunca deixou de ser maldito. Sua identidade com essa região era tamanha que, já aposentado, durante os últimos anos de sua vida, era uma figura facilmente vista na adjacências da Estação da Luz, já decadente, e para a qual ele mesmo tinha se mudado para um apartamento na Av. Rio Branco. Era quase onipresente nos botequins, falando de cinema ou qualquer outro assunto. E morou nas proximidades da região até seus últimos dias.

Em 2010 Moura Reis publica uma longa entrevista de Ozualdo Candeias para a Coleção Aplausos Cinema Brasil onde o diretor mostra bem quem era: “Levo uma vidinha meio barata, sem muitas exigências, que dá para ir tocando, quase sem terra. Teto, eu tenho. Comprei esse teto trabalhando em uma fita americana. Não lembro o título nem o nome dos caras que vieram filmar no Brasil e tinham que contratar certo número de técnicos brasileiros. Entrei como câmera, iluminador e outras coisas mais, contratado por dez semanas. Eles foram me pagando por semana e no final juntei um troco, não me lembro se 40 mil ou 60 mil na moeda da época, e comprei um mocó aqui perto, na Rio Branco com Duque de Caxias. Gosto de morar no Centro, que tem uma arquitetura muito bonita. […]E gosto do Centro, daqui da Boca e deste boteco. […] Conheço o Teixeira há muitos anos e venho sempre aqui. Gosto da vizinhança. Converso com as pessoas.” 

Sua biografia conta com 11 filmes como Diretor, 13 filmes que participou como fotógrafo, 6 como produtor, 7 como ator, e um como Assistente de Direção -  justamente com José Mojica Marins. 

Morreu em 2007, às 15 horas de uma quinta-feira, aos 88 anos, vítima de insuficiência respiratória no Hospital Brigadeiro, no bairro Bela Vista, deixando 4  filhos, netos, 3 ex-esposas uma penca ex-mulheres. 


http://revistazingu.blogspot.com/2007/03/doc-filmografia.html


TORQUATO NETO


 

Título: Torquato Neto
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Linoleogravura

 

Filho único de um defensor público e uma professora, passou sua infância em Teresina até os 16 anos, mudando-se para Salvador no intuito de complementar os estudos secundários. E todo o brasileiro sabe que quem tem Neto no sobrenome, tem algo de diferente da pirâmide social Brasileira. A mãe, Salomé, provavelmente mesmo que intuitivamente sabia disso e queria a carreira de diplomata para o filho. O piauiense Torquato Pereira Araújo Neto, apesar de ter Neto no nome, deu voos em outras direções. 

Tudo ia bem até o primeiro vôo em sua ida para a Bahia. No Colégio Nossa Senhora da Vitória, o Marista, passava a maior parte das aulas rabiscando poemas. E ali conheceu Gilberto Gil. Não demorou e já estava colaborando com o jornalzinho da escola e participando das atividades estudantis. Foi no Centro de Cultura Popular da UNE (União Nacional dos Estudantes), que conheceu, também, Caetano Veloso, Duda Machado, Gal Costa, Capinam, Maria Bethânia dentre outros. Nesse início dos anos 1960, passou também a assistir filmes e ler compulsivamente sobre a sétima arte, chegando a trabalhar como assistente no filme Barravento, de Glauber Rocha.

Dois anos depois, o segundo voo, rumo ao rio de Janeiro. Lá termina o científico e, por dois anos, cursa jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.

Ainda no Rio de Janeiro foi apresentado a Edu Lobo, pelo cineasta Rui Guerra, formando imediatamente uma das melhores uma parcerias musicais da música brasileira que, apesar de curta, foi marcante, para ambos. Em três meses, trabalhando intensamente, fizeram Veleiro, Lua Nova, Pra Dizer Adeus, que Edu Lobo diria anos mais tarde, se tratarem as suas melhores músicas.

Além de poeta, inicia também sua atividade jornalística, trabalhando para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora.  Trabalha também em agências de propaganda e na gravadora Philips.

Por sugestão do parceiro Edu Lobo, foi para São Paulo, em 1966. Nessa época, Gilberto Gil morava na cidade, no bairro de Cidade Vargas, e hospedava frequentemente os amigos de fora. Na “Pensão dos Baianos”, como foi batizada, passaram Ruy Guerra, que era mais ou menos baiano, Capinam, Torquato e um monte deles.

Um ano depois, em 1967, Torquato Neto decide casar-se com a baiana Ana Maria dos Santos e Silva. Três anos depois nascia seu único filho Thiago, atualmente piloto de aviação civil.

Durante toda essa década de 1960, o Brasil viveu um turbulento período político e iniciou-se um Ditadura Militar, com um golpe de Estado, dado por militares e apoiado pelas classes médias brasileiras. Torquato, através de seus artigos de jornal, atuava como agitador cultural, polemista e defensor de manifestações culturais de vanguarda, como Tropicália, o Cinema Marginal, a Poesia Concreta. Nesse período, passou a defender ardentemente o Tropicalismo, tendo escrito uma espécie de breviário, onde defendia a necessidade de criar uma cultura pop genuinamente brasileira, baseada numa estética dos trópicos, que em suas palavras seria mais ou menos algo como uma cultura sem preconceitos, sem mau gosto, sem cafonices.

Nesse momento iniciava meios sem querer uma carreira como poeta, jornalista, letrista de música popular e de um supostamente  experimentador ligado à contracultura.

Com amigos como Décio Pignatari, Waly Salomão, os Irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Ivan Cardoso, e Hélio Oiticica, Torquato Neto, puxava a brasa para sua sardinha, já que tinha sido um dos principais letristas de músicas icônicas do Tropicalismo.

Sua grande contribuição para o movimento não foram apenas as letras da canção-manifesto “Geléia Geral”, de “Marginália 2”, de Gilberto Gil, e de “Mamãe Coragem” e de “Deus vos salve esta casa santa”, de Caetano Veloso.  Em suas colunas jornalísticas, defendeu com veemência a contracultura, além disso compôs em parceria inúmeras músicas. Com Gilberto Gil compôs sucessos como, "Louvação", "Domingou", "Zabelê", "A Rua" ou "Encarnada" em que dividiu a autoria com Geraldo Vandré. Com Caetano Veloso ainda compôs "Deus vos salve a casa Santa", "Ai de mim"; "Copacabana", "Nenhuma Dor". Com Jards Macalé: "Lets Play That. Com Carlos Pinto: "Todo dia é dia D". E "Três da Madrugada".

Em 1971 e 1972, Torquato escreveu a polêmica coluna no jornal Última Hora, intitulada Geléia Geral. A essa altura, Torquato já era um alcoólatra inveterado. Nesse espaço, Torquato defendeu desesperadamente o cinema marginal, combateu o Cinema Novo e a música comercial e lutou pelos direitos autorais. Ele defendia que o cinema deveria ser contra-hegemônico. 7 de fevereiro de 1972, Torquato afirmava aos seus leitores da Geléia Geral – coluna que posterior ao Plug – que o cinema não se resumia à produção.  Tinha de ter invenção, uma ação guiada pelo “coração selvagem” – que ele usa entre aspas, por provavelmente usar a expressão de Clarice Lispector. Nesse caminhar pelo cinema, Torquato iria expressar uma maior afinidade com os cineastas ligados ao grupo que ficou conhecido como Cinema Marginal.

O biógrafo Toninho Vaz, narra que essa ruptura com o Cinema Novo tinha nome e endereço. Torquato se aproximara de Ivan Cardoso e de Luís Otávio Pimentel, que segundo o poeta realizavam cinema de forma independente. O afastamento e a divergência com Glauber Rocha, manifestado numa carta, estavam ligados ao fato do Cinema Novo ter capitaneado a nova política cinematográfica ligada à Embrafilme. No fundo, Torquato não engolia bem essa história de se fazer filme com o dinheiro do governo.

Além dos sintomas evidentes, decorrentes do álcool, o poeta sempre teve temperamento difícil, com vários episódios de crises emocionais, consideradas pelos psicólogos como "surtos psicóticos". Por conta disso, foi internado oito vezes em hospitais psiquiátricos do Piauí e do Rio de Janeiro, incluindo o hospital de Engenho de Dentro, de Nise da Silveira. Tentou o suicídio por quatro vezes, e não foi por falta de aviso quando "Pra Dizer Adeus" de Edu Lobo, foi lançada e encarada como uma lírica de separação de uma casal. Ao final, na última tentativa, nem família e nem os antigos amigos conseguiram conviver com seus humores.

Toninho Vaz – que fez mais de setenta entrevistas com parentes, amigos e inimigos do letrista -  também desconstrói a imagem de Torquato como poeta tímido, reservado, introspectivo, melancólico. A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva. Resgata entrevistas antigas, uma delas com Nana Caymmi que comenta não sem uma dose de malícia: "Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso". Caetano Veloso, outros entrevistado para a biografia, foi categórico. "Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!"

A polêmica fez com que a viúva de Torquato, Ana Maria Duarte processasse o biógrafo impedindo que o projeto fosse adiante pela editora Record. Mantendo a aura do "maldito", a biografia desse maldito foi publicada pela Casa Amarela, braço editorial da saudosa revista "Caros Amigos".

No início dos anos 1970, já tinha brigado com as esquerdas e com o pessoal do Cinema Novo, já afastado dos colegas tropicalistas, chegou a queimar quase todos os originais inéditos. Passou a frequentar novos grupos, como o pessoal do underground carioca (da Zona Sul, é proprio dizer), o pessoal do cinema Super8, e os malditos da MPB, como Jards Macalé, João Bosco e Luis Melodia, estes em quem focou últimos trabalhos. 

Em seu último ano de vida -  já com 34 músicas lançadas -, e escreveu artigos para jornais marginais como Flor do Mal e Presença, e organizou, com Waly Salomão, a edição única da revista Navilouca, publicada postumamente em 1974. Logo após sua morte, um material inédito de poemas foi reunido por Waly e pela esposa de Torquato, Ana Araújo, no livro Os Últimos Dias de Paupéria, além disso mais de 100 música de sua autoria seriam lançadas por diversos artistas -  algumas prontas, outras só na letra. Uma centena. 

No dia específico em que morreu, chegou de uma festa organizada por alguns amigos, após longa conversa com sua ex-esposa, deprimido, trancou-se no banheiro, fechou a porta, vedou todas as frestas com lençóis, abriu o gás do chuveiro e, asfixiado, atravessou o espelho do banheiro, aos 28 anos de idade, Exatamente: no dia do seu aniversário.

Na ocasião da morte deixou uma espécie de carta testamento/último poema, chamado "Fico".

"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

 Nota: Thiago era o filho de dois anos de idade, à época.

 

O Declínio Do Império Americano

Um dos personagens de Oscar Wilde – não lembro qual, agora – dizia que só fala mal da sociedade quem não consegue frequentá-la, e acho que esse poderia bem ser o adágio do filme de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano. 

O filme começa com uma entrevista à Rádio CBC da professora de História da Universidade de Montreal, Dominique St. Arnaud, em que conta a Diane sobre seu novo livro, Variações sobre a idéia de felicidade, que discute sua tese: a fixação da sociedade moderna na autoindulgência. 

Na próxima cena, quatro professores universitários conversam animadamente sobre assuntos diversos enquanto preparam um early dinner. Ao mesmo tempo, na academia de ginástica da Universidade, quatro mulheres, incluindo Diane e Dominique, colegas dos professores,  também conversam animadamente sobre os problemas de relacionamento entre homens e mulheres.

 


A partir da metade do filme, as mulheres chegam, e o grupo de amigos inicia um jantar animadíssimo. Todo o filme, extremamente dialógico, gira em torno desses oito professores universitários, Historiadores diga-se de passagem, que num agradável fim de tarde almoçam e conversam sobre seus relacionamentos, o amor, o sexo, as angústias e variações do que seria a tal da Felicidade. 

À medida que o jantar avança, os homens e as mulheres conversam principalmente sobre suas vidas sexuais, com os homens sendo abertos sobre seus adultérios, incluindo Rémy, que é casado com Louise e que já se relacionou com quase todas á mesa. A maioria das mulheres do círculo de amigos já fez sexo com Rémy, embora ele não seja atraente, mas elas escondem isso de Louise para poupar seus sentimentos, afinal todos são mais que amigos, todos pertencem ao mesmo departamento.  

Ainda no ginásio, quando as amigas conversavam, Louise revela que esteve em uma orgia com Rémy, mas acredita que ele geralmente é fiel. Claude é o único amigo homossexual no jantar. Ele também fala abertamente sobre sair com outros homens de maneira imprudente, mas com medo de doenças sexualmente transmissíveis, enquanto secretamente teme estar infectado por AIDS – problema  que ainda assolava a todos na década de 80. Dominique, por sua vez, fala sobre sua teoria que dá conta do declínio da sociedade, com Louise antagonizando-a e  expressando ceticismo. Para contra argumentar contra Louise, Dominique revela que fez sexo com Rémy e seu amigo Pierre, causando um colapso emocional e um mal estar geral no jantar.

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar.

Pela manhã, era como se a noite anterior não tivesse passado de um samba de Paulinho,  um grande pagode na casa do Vavá: “Vi muita nega bonita, fazer partideiro ficar esquecido, mas apesar do ciúme, nenhuma mulher ficou sem o marido”. E Louise se senta ao piano, toca, e todos se abraçam, e os relacionamentos voltaram ao normal, afinal e contas são todos amigos, e acima de tudo, lavou tá novo

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles a liberação sexual, valor moral da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar. No fundo Demy mostra que na prática, a teoria é outra. 

Pessoalmente acho sensacional como Denys Arcand se auto define. Um périmé catholique. Mais interessante, como ele retrata os valores americanos, já que americanos tem um grande preconceito contra os canadenses. Os canadenses não são servis como outros grupos imigrantes, e talvez por isso os americanos os consideram bárbaros caçadores de alces e ursos. Os canadenses por sua vez, não estão nem aí para os americanos. E isso é interessantíssimo quando visto aqui de dentro. Mas no filme Dominique, prevendo um colapso no "Império Americano", baseado na autocomplacência, na condescendência, na tolerância e indulgência consigo,  afirma ironicamente que Quebec, apesar de falar francês e se colocar olimpicamente na periferia, embarca de roldão nessa decadência dos costumes. 

Denys Arcand coloca em xeque os relacionamentos modernos, marcados por problemas amorosos e sexuais. Ele faz um estudo crítico dos anseios e frustrações de uma classe média intelectualizada e escrava dos divãs de analistas. Quatro professores universitários, três deles casados e um gay, preparam um jantar em uma casa de campo. Conversam sobre sexo. Enquanto isso, suas mulheres estão juntas em um clube e, da mesma forma, dividem seus segredos. Quando se encontram no jantar, estão prontos para o embate.

Outro filmaço que preciso rever é o Invasões Bárbaras, 2003, com os mesmo protagonistas, 17 anos depois.


Sam Peckinpah Again!

(Filme e postagem de 2011, mas... me peguei assistindo o Peckinpah again, ontem) 

Western Crepuscular ou Tráiganme la cabeza de Alfredo García 

"El Jefe" é milionário “fazendeiro”,  mejicano e cheio de capangas mejicanos,  descobre que sua filha Teresa está grávida. O cidadão em vez de ficar feliz por ser avô, fica furioso. Primeiro por que por que a criança vai nascer sem pai, segundo por que a menina era virgem – veja bem, estamos falando de caras mexicanos, ano de 1974, com outro diapasão. El Jefe, então, aplica uns safanões na menina para saber quem seria o pai da criança. Entre uma bordoada e outra a moça acaba revelando que o pai é Alfredo Garcia, justamente o homem que El Jefe tinha preparado para ser seu sucessor – ai você pensaria… ahh, Freud explica.

Para lavar a honra tanto da filha como de sua película apassivadora, contrata dois pistoleiros maus e internacionais, que na verdade encontram-se na outra margem do Rio Grande, e oferece 1 milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do tal Alfredo Garcia.

Dois pistoleiros chegam a um bar do baixo meretrício mejicano en Ciudad de Méjico, onde encontram o pianista Bennie, um ex militar americano que vendo a pinta dos pistoleiros se faz de desentendido. Eles oferecem um bom tutu pela informação do paradeiro de Alfredo Garcia, mas querem como prova a cabeça de Garcia. O pianista já andava meio na bronca com Garcia pela folga com a cantora Elita, seu trelêlê oficial,  e fica de dar a resposta aos bandidos. Bennie vai atrás de Garcia e se certifica que ele estivera com Elita. Mas a cantora lhe diz que Garcia foi embora para sua cidade no interior do México, onde sofreu um acidente de carro e morreu. 

Mas é claro (!)  que Bennie não acredita nessa estorinha fiada de Elita.  E no melhor estilo brasileiro compra um terçado e parte com Elita rumo à cidade onde Garcia foi enterrado, para conseguir a prova da morte de Garcia, ou seja, literalmente a cabeça de Alfredo Garcia. 

Mas como isso tudo é uma estória de western pop crepuscular pensada por Peckinpah, o mais gótico dos diretores do gênero, os assassinos não confiam em Bennie e sem ele saber o seguem até a um vilarejo no interior do Méjico, onde então ocorrerá a emboscada e a pendenga semi-final. Afinal, pensa comigo. Por que eles vão pagar ao cara, se pode embolsar a grana e ainda matar o infeliz do Bennie, não é mesmo. Isso é Óbvio. O filme foi um dos mais baratos do Peckinpah, e justiça seja feita, fez milagres. Se o Peckinpah tivesse metade da grana e dos amigos do Tarantino...

Com orçamento enxugadíssimo e um roteiro barato, não deu outra, Bennie encontra a sepultura de Alfredo Garcia e ao tentar desenterrá-lo é atacado pelas costas. Quando desperta, está enterrado. Com muito esforço consegue se desenterrar, mas constada que sua amante, Elita, enterrada ao seu lado está morta.  Bennie ao ver a sepultura de Garcia aberta, constata que o corpo não tinha a cabeça, levada enquanto esteve desacordado e então passa a desconfiar que se os dois assassinos de aluguel o seguiram até aquele fim de mundo, e levaram a cabeça de Alfredo Garcia, por que a cabeça do morto vale muito mais na mão dos sicários que na dele. 

Enfim, depois tremenda troca de tiros, ele recupera a cabeça de Garcia e a coloca num saco com gelo e dirige com a cabeça no banco do lado. 

O monólogo de Bennie com a cabeça morta de Alfredo Garcia é uma cena surreal, mas fantástica. Talvez o ponto alto do filme seja esse convívio de Bennie com a cabeça decepada. 

O filme tem várias reviravoltas. Os matadores Sappensly e Quill acabam fazendo uma emboscada, quando Bennie vai devolver a cabeça à família de Alfredo Garcia. Quill mata toda a familia de Garcia, mas é morto por Bennie. Sappensly, desolado como um matador olhando para seu parceiro morto, diz que não pagará Bennie, e também toma um caroço na cabeça. 

E nesse meio tempo, Bennie continua conversando com a cabeça. Chega ao hotel, lava-a e pretende levá-la ao Jefe, com o pretexto de receber os US$ 10K.  Em meio a mais tiros, Bennie finalmente consegue o endereço do Jefe. 

Consegue chegar justo no dia do batizado do rebento. O Jefe estava até feliz. Bennie se apresenta, entrega a cabeça e relata quantas pessoas morreram por aquela cabeça. Quando o Jefe diz para ele pegar seu dinheiro, jogar a cabeça para os porcos e ir embora, ele lembra que Elita se incluía naquele monte de mortes em vão, e aí é possível ver como o semblante de Warren Oates muda ao constatar que tudo aqui tinha sido em vão. 

Ai meu amigo... acho que não era nem mais o Beniie que estava ali, e sim o Oates, vaqueiro do Kentucky, amigo do Steve McQueen.  Foi tiro pra todo lado. Bennie, enfurecido,  mata um monte de capanga do Jefe. 

A mocinha entra com o filho no colo e pede que mate seu pai. Ele pega a cabeça e vai em direção a porteira da fazenda levando o Jefe, junto a Teresa. 

Chegando na porteira, ele se vira pra Teresa e diz assim mesmo do jeito que eu estou te falando: “Agora, você coisa da criança, que do teu pai cuido eu…”  UAU ! podia terminar ai né! Mas não…. Isso é um filme de Sam Peckinpah.

Como esses mafiosos, traficantes, milicianos tem sempre capangas pra caramba, surgiu mais um monte do nada e rasgaram Bennie com rajadas de metralhadoras. 

Nota. Sam Peckinpah já foi partícula apassivadora em tiranicídia contenda entre meu concunhado e eu. Enquanto eu dizia que o cinema americano não era autoral, ou seja, não tinha uma linha de cineastas que faziam filmes classificáveis pelo toque de Midas da linha autoral, o concunhado dizia que havia Peckinpah: "brutalidade mimética, estética da violência e ódio fiduciário". Dito assim, de maneira tão bonita, pode até ser.






Música do dia. El Justiciero. Mutantes.

Casablanca




Ontem assisti Casablanca pela décima oitava vez, talvez. Estava ali na tela do TCM… eu tava de boréstia, confinado e biritando , pra variar… e por que não? Casablanca. Casablanca é um desses mistérios que a gente não consegue explicar, mesmo. 

Não é um filme bom pra caramba. O roteiro tem um monte de furadas e clichês de filmes pastosos de amor. Não por acaso, Humberto Eco disse certa vez que a fraca verossimilhança psicológica dos personagens e as reviravoltas que ocorrem sem razões plausíveis tornam o filme fraco. Os atores, principalmente os militares, são meio caricatos. Além disso, a Ingrid Bergman, ainda que patinando numa série de filmes medianos, vinha de Intermezzo, e Humphrey Bogart vinha de nada mais nada menos Reliquia Macabra, The Maltese Falcon. 

Ou seja, Aceitar trabalhar em Casablanca, só pela grana mesmo. Por que no fundo, lendo o roteiro, parecia um filme apenas de propaganda anti-nazista.  E era mesmo, por que os produtores de Hollywood nunca estão de bobeira. Nunca dão ponto sem nó. Nunca chamam periquito de meu loro.

O roteiro era de um professor de escola de segundo grau, Murray Burnett,  em parceira com Joan Alison,  que o concebeu originalmente como uma peça de teatro. Isso no começo dos anos 30, quando Hitler nem era Hitler, Franco não era Franco, Mussolini apenas ensaiava ser Mussolini, por isso muitos dizem que o texto foi sendo complementado por 4 roteiristas durante as filmagens. A peça se chamava Everybody Comes to Rick's . Quando a coisa apertou na Europa, Burnett e a mulher se mandaram para lá, para repatriar dólares de parentes judeus para a América, e ali terminaram a peça. Reza a lenda que numa parte da viagem, pararam num bar no sul da França, que tinha ao piano um cantor negro americano, o que pode bem ter bem influenciado na escolha de Dooley Wilson para  o papel de Sam. Detalhe. Wilson era baterista na vida real, e não pianista. Então por que Casablanca se tornou Casablanca?  

Aí entra um conjunção quase aleatória de fatores.  O filme estréia em 26 de novembro de 1942, em Nova York, em plena Segunda Guerra. E antes de mais nada é importante dizer que o filme somente seria exibido na Europa em 1946 na Itália, e na Alemanha Oriental somente em 1983, diretamente na televisão! A première do filme foi antecipada devido a um fato histórico. Alguns dias antes, no dia 8 de novembro, as tropas aliadas (que se opunham à Alemanha de Hitler) invadiram a cidade marroquina de Casablanca que, até então, estava sob o domínio da França de Vichy.

Filmado em 3 meses, Casablanca conta a história de Rick Blaine, um americano amargo, machão, sentimental e cínico que vive e trabalha em Casablanca, onde tem um badalado café. O Rick’s Café é frequentado tanto por nazistas, como por funcionários franceses, estelionatários, compradores de ouro, malfeitores, biscateiros, apostadores, vigaristas, trabalhadoras da noite, biriteiros inofensivos, apontadores de jogo do bicho, dissidentes, maconheiros, músicos, artistas, fumadores de haxixe, Jesus, só coisa ruim. Numa noite, entra Ilsa Lund, o grande amor do passado de Rick, aparece em seu bar ao lado do marido, Victor Laszlo, herói da resistência tcheca. Dois anos antes ela tinha o deixado numa estação de Paris, sob chuva, esperando. La pelas tantas ele se lamenta com Sam…” de todos os botequins do mundo ela tinha que entrar justo no meu?” Está arrasado. E de repente vira-se para Sam e diz, “ se ela aguentou eu também aguento, toca ai Sam!” O reencontro dos ex-amantes reacende o amor entre eles e o sofrimento em Bogart. Mas o cara é foda! É Bogart porra! 

O sucesso de Casablanca pode ser considerado como o resultado de uma combinação de golpes de sorte  do destino ou acidentes de percurso. Além da pressa na filmagem, da questão do roteiro, alterado até o último minuto, a música quase deixa de ser  "As Time Goes By", de Herman Hupfeld, escrita em 1931. Max Steiner. O compositor da trilha sonora do filme, queria retirar a música e substituí-la por uma composição original, depois do filme acabado. Enfim, nesse meio tempo de pós-edição Ingrid Bergman já tinha cortado o cabelo curto, Bogart já ia começar a filmar Passagem para Marselha e enfrentavamais  um problema de separação com a atual mulher… enfim, ficou "As Time Goes By”.

A lenda mais inacreditável sobre o filme, é a que dá conta de que o ator principal, na pré-produção, não seria o Humphrey Bogart e sim Ronald Reagan. Felizmente Reagan teve de cumprir um serviço militar e Bogart pegou o papel.

O filme foi dirigido pelo húngaro Michael Curtiz, que filmou muito, mas um monte de filmes noir, bíblicos, com piratas, foras-da-lei, boxeadoresera considerado um faz tudo em Hollywood. Embrulhava e mandava. Está percebendo por que Casablanca não podia dar certo?

Humphrey Bogart costumava dizer que Casablanca era a melhor obra de sua filmografia. Isso pode ser um exagero. Eu gosto do Bogart, era um cara legal, era meio feio, meio magricela, e com boa vontade podia ser até um carioca do subúrbio. Mas ele as vezes mentia. A vida dele certamente mudou, mas não pelo filme…

Ele vinha de uma série de papéis de gangster e de detetives. A imagem dele era de cara durão e cínico. Tinha acabado de filmar a Reliquia Macabra, do Dasheill Hammett, pra mim um dos  melhores filmes e livros noir de todos os tempos.

Eu posso até concordar que a partir de Casablanca, Bogart se transformou numa espécie de manual, ou gramática expositiva de como um cara cínico e frio pode conquistar uma garota. Aquele cara que quando quer conquistar moça fala pouco, olha logo no olho e dá-lhe logo um beijo de tirar o ar. Todo mundo da minha geração e na anterior imitou alguma vez o Bogart. Quem não sonhou ser Bogart? Quem não? Fala ai? Andar por ai, entrar num bar ao lado de sujeitos meio sórdidos, meio Peter Lorre, que quando falam contigo, baixam os olhos entre medo e respeito. Puxar uma cadeira e estalar o dedo e pedir para o negão do violão, Flavinho, toca um Belchior aí! Depois vir uma garçonete toda derretida, e perguntar o que você quer… tipo, o que você quer ? (toda derretida).

Posso até concordar, mas o homem estava numa m... danada durante as filmagens. Antes de conhecer Lauren Bacall, mas isso foi bem depois, ele era um especialista em casar mal. Era só chave de cadeia que aparecia na vida do infeliz. Em Casablanca ele estava no terceiro relacionamento. Dizem as más línguas que era um cara muito fiel. Mas esse casamento era disparado o pior de todos, mesmo para um cara fiel e família e que dizia que todas as pessoas nasciam com 2 doses abaixo do normal. Casara-se com uma loura nem tão bonita, mas boazuda, alfabetizada e decotada, Mayo Methot. A.M. Sperber and Erick Lax contam em detalhes como essa vida a dois foi um inferno, não por ela ser má, mas é que depois de ¾ de uma garrafa de whisky, ela ficava um pouco alterada, ciumenta, possessiva, e quando esvaziava as garrafas mirava nos 3 Bogarts que via na frente. Por sorte ela sempre acertava o errado. Não bastasse as brigas em casa, Mayo ia várias vezes ao set de filmagem para arrumar quizumba com a Ingrid Bergman, que na época era casada com um dentista e comportadíssima. 

Em meio a esse inferno, ele tinha talvez, o primeiro papel dele que além de arrogante, cínico, feio, magricela, ele poderia finalmente mostrar que dentro do terno, havia um coração (essa frase ficou piegas, depois eu mudo)

Enfim, outro dia falo só de Humphrey Bogart. O que importa é que ainda não sei por que este filme é tão bom de assistir!

Um banho de tcheco

A Tchecoeslovaquia sempre foi para mim um pais misterioso. As vezes sonho com Praga que deve ser linda e deve ter a impressão digital de Kafka em cada xícara de café servida no Café Slavia, onde ele e Max Brod se reuniam para falar coisas seríssimas. Sempre me disseram que Kafka era um cara denso. Quando li  Metamorfose, achei umas partes engracadíssimas, uns personagens curiosos, caricaturais, tão surreal que os conflitos entre Gregor Samsa e o mundo pareciam convincentemente miméticos. Quando li O Processo, ai pelo final dos anos 80, numa edição ruim da Ediouro, me certifiquei que Kafka fazia firula narrativa com a seriedade. Cheguei a assistir o filme do Orson Welles da década de 1960. Parecia muito sério e claustrofóbico. Mas não pegava bem comentar com meus amigos de faculdade que eu via justamente nesse revés a proficiência de Kafka. Eles eram inteligentes e densos pra caramba. Iam rir de mim. Pior, iam pensar que eu era uma pessoa... assim... dessas...” leves”,  e se afastariam de mim, nunca mais me convidariam para uma cerveja, a não ser, lógico, que eu pagasse. Anos depois, me caiu nas mãos a biografia que Max Brod escreveu sobre Kafka e percebi que havia, para além da cumplicidade entre os dois amigos, sim uma espécie de humor surrealista naquilo tudo. E como dizia o saudoso Millor, o humor compreende o mau humor, o mau humor é que não compreende nada.


Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção  e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil -  que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim, sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení), exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário  chamado Matchmaking Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A comédia Leaving de Vaclav Havel estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem,  guarda muito da expressão cênica teatral. O enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger, interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai. Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta.  Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um pomar de cerejeiras.

Vaclav Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da cadeia para assumir a presidência  da Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia. Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele mesmo,  escreveu-o na decada de 1980 - tá bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.

Vilem Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente da casa)  que independe em larga medida do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a vida a política da ficção.

Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.

La Ronde

Parafraseando Raymond Queneau, o filme La Ronde, de 1950, é um elegante exercício de estilo. Poucos filmes dos anos 50, talvez com a exceção dos filmes de Billy Wilder, tem uma carga de sexualidade tão grande e consequentemente tão divertida. A estória se centra numa peça de teatro vienense do século XIX, de Arthur Schnitzler, que causara muita polêmica à época, pois falava do tão famigerado fantasma que assola a história da literatura, desde que o homem é homem e a mulher é mulher: o adultério, i.e. o mais popularmente conhecido, par de cornos.  No filme de Max Ophuls os vários personagens ocupam uma série de vignettes que adquirem uma lógica circular num enredo que envolve, amor, pequenas traições, sedução e uma crítica sobre a moral, permeada por diálogos absolutamente fantásticos e divertidos. Ophuls borda uma reflexão sobre o desejo sexual e seus mecanismos de controle tomando como metáfora um carrossel onde todos somos passivos objetos da vontade dos deuses. As referências – morais, sexuais, religiosas, familiares, profissionais – são mostradas no filme com uma nostalgia da virtude - nas próprias palavras do marido Charles Breitkopt que antes de dormir conversa com a esposa Emma, exausta após uma tarde digna de Belle de Jour. Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas. O filme é genial.

Logo na primeira cena uma prostituta flerta com um soldado, e na segunda cena uma empregada é seduzida pelo seu patrão. Tudo de maneira muito natural, sem resistências nem grande entusiasmos de ambas as partes, até a cena final com a prostituta voltando à cena. A maneira circular e a transitorialidade das paixões está toda ali em amores passageiros, que duram apenas o que tem para durar. Ophus imprime, através de um narrador onipresente, Walbrook,  a cada cena, um fatalismo irônico na narrativa. O Racounter assume várias formas diferentes. Guia pratiamente todas as cenas e introduz as várias intrigas chegando mesmo a filosofar entre as cenas. Não incidentalmente, ele é o próprio operador do carrossel. Algumas cenas são geniais. Algumas vezes quando os encontros amorosos não se realizam por algum motivo, o mestre de cerimônias para a cena e faz reparos no carrossel para que o amor continue girando. As suas criaturas vagam e desconhecem que não passam de atores em cenas criadas por ele próprio e que habitam um palco. Numa outra dimensão, o enredo exige dos atores um exercício de exigente de interpretação, por exemplo, do poeta Barraut que numa das cenas seduz uma jovem e ingênua com uma verborragia e um exagero de gestos e atitudes que adquire uma face quase caricata, e numa outra trava uma pragmática conversação com uma atriz mais velha e temperamental por quem é apaixonado. Com esta, mede as palavras, é um paciente crítico de sua condição, as vezes agitado, mas sempre atordoado com a possibilidade de perdê-la.

Com o filme, Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas, isso muito antes da série Californication! Filme é genial.

Who's Camus Anyway

Filme Who’s Camus Anyway é um filme surpreendente.  Retrata a dinâmica de uma comunidade de jovens que vivem da árdua tarefa de fazer cinema. O filme se passa nos últimos cinco dias de filmagem que o grupo de estudantes universitários – orientados por um professor - leva adiante. A estória filmada trata de um estudante que é levado a assassinar uma velha pelo simples prazer de matar. A referência implícita a Raskolnikov passa por nossas cabeças, evidentemente, mas não deixa muitas raízes por não importar a estória contada em si, mas a preparação de toda a produção em torno ao filme.

O diretor Mitsuo Anagimachi mostrou sem dúvida o totem de uma experiência insular única que combina nuances das pequenas perversidades da vida acadêmica com a experiência individual dos que trabalham na industria cinematográfica. As experiências individuais acabam interferindo na dinâmica do filme. Matsukawa é um jovem diretor que respira cinema, mas sua doce e sufocante namorada, que não entende nada de cinema, apenas se preocupa com uma coisa: casar. Ele se nega, pois só se casaria depois de realizar uma grande obra. Yukari, a namorada obsessiva, diz que se o pegar com outra mulher o mata, e chega a aventar a hipótese de colocar seu esperma num banco – e ele diga-se de passagem aceita com a condição de que ela lhe dê o dinheiro para comprar um Final Cut Pro, um desses softwares de edição da vida. Os companheiros de filmagem não levam a relação a sério, primeiro por que vêem Matsukawa não como um exemplo maior de fidelidade, e segundo por que enxergam a Yukari como uma cópia xerox de Isabelle Adjani em The Story of Adele H.. O professor Najako, que presta orientação aos pupilos, é um personagem à parte. Fascinado por uma jovem estudante, a quem vê passar todos os dias, é apelidado de Aschenbach pelos alunos, o personagem de Morte em Veneza. Aliás o professor, em sua crise da meia idade, protagoniza uma cena da tão ou mais humilhante que a vivida por Aschenbach no filme de Visconti. Sabendo que um de seus estudantes pendurados por nota, é amigo da menina, manipula para que o rapaz propicie um almoço entre os dois, professor e aluna. No final do almoço, após ser sutilmente humilhado pelo casal – que sugere inclusive um ménage à trois, desde que pudessem ganahar uma bolsa de estudos para Paris - , volta para seu escritório dá pra beber.

O filme nos mostra como um filme de baixo orçamento é feito. Tudo começa pelo orçamento, pela seleção dos atores, pelo set mais barato de filmagem, pelo cenário mais barato...enfim, começa não da estória em si, mas das limitações materiais impostas à produção. É como passar a assistir filmes com essa dimensão que nos daria uma noção muito mais real de como se faz cinema – e que os americanos inverteram em nossas cabeças.

Cada cena do filme parece ter sido pensada cuidadosamente, de forma que nunca se sabe ao certo se uma sequência que começa é do filme em si ou do filme sobre o filme. A própria trilha sonora, dando contorno e impacto a determinadas cenas mais dramáticas, foi capaz de evidenciar o cunho emocional de determiandas cenas. No fundo, as estórias que se imbricam umas com as outras e com a própria estória do filme a ser filmado tornam todo o filme de Mitsuo Anagimachi uma grande tapeçaria de Robert Altman. O hiperrealismo do estranho é de grande importância, por exemplo no impacto emocional causado no protagonista após cada cena em que se entrega de corpo e alma ao papel do personagem encarnado, arriscando perder todo o senso de realidade – coisa pra lá de Stanislavski! É como se os personagens do filme - e do filme filmado – só pudessem sentir a partir do princípio que regia a razão de Meursault, a partir apenas de uma realidade física em si. Daí que nas últimas impressionantes sequências do filme, já não se sabe se estamos assistindo a cena final do filme filmado ou do filme narrado. Por isso, muito bem sacadaa última cena, onde todo o cast limpa o sangue do tapete da sala....