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Contos da Lua vaga

Quando o Marcio Borges escreveu essa letra e o Beto Guedes a musicou, certamente, de cinéfilos que são, tinham assistido ao filme de Mizoguchi, Contos da Lua Vaga. De certo que este é um desses filmes pouquíssimo conhecidos, mas marcantes para qualquer pessoa que gosta de boas estórias. Kenji Mizoguchi era de Toquio. Morreu cedo. Teve uma infância marcada por perdas emocionais, doenças, perrengues sérios de grana e os traumas decorrente dessa coisa que chamam vida. O pai era carpinteiro – e para quem gosta de Cinema e Carpintaria, fico imaginando o grau de detalhe de uma espiga feita pelas mãos de um carpinteiro japonês.

Apenas para contextualizar o mundo do diretos, no ano de 1867, o último Xogun abdicou em favor do imperador Meiji. Teve início a Era Meiji.  O Japão se moderniza  A abertura foi favorável para o desenvolvimento industrial do Japão e sua inserção no mundo capitalista que estava em pleno desenvolvimento. No final do século XIX, o Japão era o país mais desenvolvido do Oriente, com uma economia dinâmica, porém com necessidades para ampliar sua expansão.

No final do século XIX e começo do XX, o Japão se envolveu em vários conflitos militares, cujo principal objetivo era a conquista territorial no Oriente. Na guerra contra a China, o Japão conquistou a Ilha de Formosa (atual Taiwan). No começo do século XX, o Japão invadiu e conquistou a Coreia. 

Entre 1904 e 1905, o Japão guerreou contra os russos na Guerra Russo-japonesa. Vencedores, os japoneses conquistaram a Manchúria (atual região nordeste da China) e se tornaram a principal força imperialista da região oriental.

Ou seja, o Japão era um país rico, e como todo o país rico, tinha muitos pobres, tal como a família dos Mizoguchis. O aperto era tanto que, sem dinheiro para mantê-lo na escola, aos 13 anos Mizoguchi vai viver com um tio na cidade de Morioka, onde termina a educação básica e vai trabalhar numa farmácia. Um ano mais tarde, retorna a casa paterna com crises decorrentes de artrite degenerativa, uma espécie de artrose -  doença de velho - que rói as cartilagens pelo desgaste do tempo. O problema o fez andar meio claudicante pelo resto de sua vida. Não bastasse as dores, uns anos mais tarde, vê a irmã mais velha, mas ainda novinha sendo vendida pelo pai para uma casa de gueixas. Aliás, essa irmã foi quem cuidou dele e dos irmãos quando sua mãe morre três anos mais tarde de retornar a casa, deixando-os órfãos na virada do século. Ao assistir os filmes do diretor, pode-se ter a certeza de que essa traumatizada e praticamente irreconciliável relação com o pai, se espelha e sua forte crítica ao patriarcado e seus efeitos embrutecedoramente nefastos.

Autodidata, ajudado pela irmã mais velha, Mizoguchi estudou ópera, teatro, pintura. Trabalhou como designer publicitário para jornais em Kobi e apenas dirigiu seu primeiro filme em 1923, aos 25 anos.

Mizoguchi morreria três anos mais tarde de ter montado Contos da Lua Vaga, um filme de 1953 baseado na série de contos de Akinari Ueda. Um filme que tem todos os componentes de uma grande obra, paixão e morte, amor, casamento, adultério. Num Japão violento e feudal do Século XVI, na aldeia de Nakanogo, as margens do lago Biwa, no período Sengoku, o oleiro Genjuro tem uma boa relação com seus vizinhos, Sua esposa e seu cunhado Tobei, que sonha em se tornar um grande samurai. Um sábio-sacerdote alerta à esposa de Genjuro, Miyagi, que ele deve buscar enriquecer em tempos de crise econômica e para se preparar a um ataque à aldeia onde vivem. Naquela noite o exército de Shibata Katsuie, varre a aldeia, destrói as casas e os dois casais são obrigados a atravessar a remo o Lago Biwa. Neste momento do filme o onírico e o real se imbricam de tal maneira que soa abusivo e irrelevante tentar entender a série de presságios que se manifestam em encontros casuais.

Atravessando o lago, os dois casais mais o filho de Genjura e Miyagi, cruzam com um homem numa canoa a deriva, que os avisa ter sido atacado por piratas. Avisa e morre no mesmo barco. As mulheres se apavoram com o mau pressagio. A esposa de Tobei se recusa a seguir viagem, Miyagi implora que Genjuro nao a deixem só na margem com o filho, mas assim mesmo ele a deixa. Apenas os homens seguem viagem com as mercadorias de Genjuro.

Estabelecido numa feira, Genjuro vende bem e assim que recebe sua parte pela empreitada, Tobei compra uma armadura de Samurai e deixa Genjuro para seguir seu destino.

Uma nobre, Lady Wakasa, acompanhada de sua serva, se encantam com as cerâmicas de Genjuro. Compram quase todos os seus objetos e exigem que ele os entregue no palácio Kotsuki. Chegando lá para levar a encomenda, Gejuro descobre que o patriarca tinha sido morto ali exceto Wakasa e sua serva. Ela o seduz e o convence a ficar e juntar-se a ela. O sagrado e o profano, a ortodoxia, a heresia (?) dionisíaca se debatem, a partir desse ponto da história. Uma constelação de desencontros trágicos e contradições movimentam-se ambivalentes na narrativa, e Mizoguchi nos convida a ver o seu anacronismo arcaico e arquetípico à luz de uma surpreendente maestria onírica.

Paralelamente o filme corta para a aldeia de Nakanogo, que esta sendo terrivelmente atacada por samurais famintos em busca de comida, e onde estão o Miyagi e seu filho. Na luta pela defesa de seu filho, ela acaba sendo esfaqueada e morrendo.

Na sequência, numa localidade chamada Omi, Tōbei apresenta a cabeça decepada de um general que malandramente ele roubou, ao comandante – por que sendo em qualquer quebrada, seja na no shogunato de Tokugawa, malandro é malandro e mané é mané.   Recebe assim a tão almejada armadura de samurai, uma montaria e uma comitiva. Mais tarde, Tōbei chega ao mercado em seu novo cavalo, ansioso para Chegar logo em casa, vestir o pijama, ir cedo pra cama quando acordar, sorrindo fazer teu café e levar de surpresa, regar o jardim, voltar pra empresa, pra sua esposa um dia orgulho dele. No entanto a vida sempre é meio de sem querer, meio que de real e de viés. Por que antes de ir para casa resolve dar uma passadinha numa parada pra ver umas mina, umas gueixa, umas situação… Na visita ao bordel encontra sua mulher trabalhando como prostituta. Desaba. Se recompõe e diz que vai resgatar sua honra.

Genjuro, sem saber da tragédia passada em casa,  ​​conhece um sacerdote que lhe diz para retornar para seus entes queridos ou aceitar a morte... Na cabeça do oleiro, o clique está na culpa pela infidelidade amorosa, se opondo à realização da paixão. E Genjuro retorna à mansão Kutsuki.


Nisso, o onírico e o real dão um nó cercados dos filtros mágicos, intrigas e enganos. E eis a contradição… Genjuro e Wakasa, quando os amantes, se encontram e não se podem tocar.

Quando Genjuro​​menciona a relação com Wakasa, o sacerdote revela que ela está morta e deve ser exorcizada e convida Genjuro ​​para sua casa, pintando símbolos budistas em seu corpo – o Peter Greenaway, anos mais tarde iria usar esse mote no sei The Pillow Book.  Genjuro ​​retorna para a mansão Kutsuki e admite que é casado, tem um filho e deseja voltar para casa. Wakasa se recusa a deixá-lo ir. Ela e sua serva admitem que são espíritos, que retornaram a este mundo para que Wakasa, morta antes de conhecer o amor, pudesse experimentá-lo. Eles dizem a ele para lavar os símbolos. Genjuro​​pega uma espada, as afugenta e se joga para fora da mansão e desmaia.

No dia seguinte, ele é acordado por soldados que o acusam de roubar a espada, mas ele nega, dizendo que é da mansão Kutsuki. Os soldados riem dele, dizendo que a mansão Kutsuki tinha sido incendiada há um mês. Genjuro ​​surge e encontra a mansão nada mais do que uma pilha de madeira queimada. Os soldados confiscam seu dinheiro, mas como o exército de Shibata incendiou a prisão, eles o deixam nos escombros. Ele volta para casa a pé, em busca de sua esposa.

Miyagi, encantada em vê-lo, não o deixa de falar  sobre seu terrível erro. Genjuro​​segura seu filho adormecido nos braços e eventualmente adormece. Na manhã seguinte, Genjuro ​​acorda com o chefe da aldeia batendo em sua porta. Ele fica surpreso ao ver Genjuro ​​em casa e diz que está cuidando do filho de Genjuro. Genjuro​​chama Miyagi; o vizinho pergunta se Genjuro ​​está sonhando porque Miyagi foi morta após ser esfaqueada. Na manhã seguinte, quando Tōbei comprou de volta a honra de Ohama, eles retornam para Nakanogō. Tōbei reflete sobre seus erros, de maneira nem clara, tampouco conclusiva,  ambos resolvendo trabalhar duro a partir de agora. Genjuro ​​continua cuidando de Genichi e trabalhando em sua cerâmica, talvez certo de que A fidelidade amorosa se opõe à realização da paixão.

Um desses filmes que marcam, deixam sensações quase físicas com uma vaga sensação de aniquilamento que perdura. Genjuro é o arquétipo do homem simples, qualquer um, qualquer um, mesmo. Nosso anti-herói nasce desse enigma da simplicidade, onde a morte prolonga a paixão, eterniza a paixão, supera o limite que a mata, que a aniquila. E põe fim ao fim.

Nota: 

Se não é isso...

Um abrigo

Que possa guardar

A vitória do sentimento claro

Vencendo todo medo

Mãos dadas pela rua

Num destino de luz e amor

...pode ser algo parecido, o que Marcio e Beto viram no filme do Mizoguchi.