Golias – (Davi) = ?

Desde o dia 17 de dezembro, por razões ligadas ao rompimento da trégua entre Hamas e Israel, ou entre Israel e Hamas - já que nesse caso a ordem pode implicar em favorecimento de um em detrimento ao outro - , iniciaram-se os bombardeios israelelnses a ‘alvos oficiais’ palestinos na Faixa de Gaza.

No total, a Faixa de Gaza tem registradas, como refugiadas, 750 mil almas. Estas almas, respectivas a cada corpo, já não recebiam a comida fornecida pelos caminhões de ajuda humanitária das Nações Unidas, retidos pelas autoridades israelenses, desde fins de Novembro. Mas isso são apenas palavras sobre fatos e estatísticas que virão a ser História, e que por ventura esta mesma História, dependendo de quem a escreva, redimirá os algozes de suas responsabilidades históricas, culpando as vítimas por sua falta de sorte. Nesse caso, importante são as imagens...



Os cadáveres de cinco irmãs palestinas de 4 a 17 anos mortas no bombardeio noturno israelense a uma mesquita do campo de refugiados de Yabalia. Publicada no El País - 27-12-2008

Feliz 2009.

Glória a todas as lutas inglórias

A Emory University disponibilizou este ano uma base de dados completa sobre o que chamam de Trans-Atlantic Slave Trade. A base mostra as rotas de mais de 10 milhões de africanos que foram obrigados a rumar para Europa e Americas, nos mais de três séculos de escravidão.

No caso do Brasil, é possível obter o nome das embarcações, nome do capitão, ano e porto de saída e porto de destino. Em alguns casos é possível inclusive obter o nome, a idade e a altura do indivíduo.

http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces

Sem dúvida, uma contribuição marcante para o que ainda há de vir.

Música do dia. Mestre Sala dos Mares do insuperável Aldir Blanc.

O Homem que Calculava

Desde fins junho assisti em video uns 55 títulos no NetFlix - incluindo filmes, documentários, series e pelos ossos do ofício, filmes infantis. Alguns foram revistos repetidamente, mas pouco importa, pois em números frios a média é de quase um filme a cada 3 dias. Foram mais ou menos uns 70 filmes. 70 filmes. Um a cada três dias. É pouco, mesmo considerando que dormindo uma media de 5 horas por noite, tendo um trabalho de 8-9 horas diárias, e ainda reservando tempo para minhas leituras, considero pouco, pois a meta era o de um filme por dia e um livro a cada 4 dias.

Nas estatísiticas dos números a frio não incluo os assistidos na tela grande nem os assistidos num canal que faço questão de assinar, o Turner Classis Movies - que os mafiosos da Comcast comandados por Edward G. Robinson fazem questão de me arrancar os olho da cara -, pois aí a média aumentaria. Familiares e amigos dizem que isso é patológico - mas continuam conspiradoramente dando corda, pois acabo de ganhar da megera de minha sogra mais uma assinatura de seis meses do NetFlix de presente de Natal. Agora, tenho direito a 5 filmes em video por semana.

No fundo, eu sei que isso é um problema. O pior é que eles não sabem que muitas vezes acordo no meio da noite para rever muitos destes filmes, repetir as cenas, parar, voltar, atentar para os diálogos, tomar notas... e se sou pego em delito flagrante, finjo, para nao piorar minha situação perante a família, que estou dormindo com a televisão ligada... enfim... agravando ainda mais esse meu problema que tende a piorar em 2009 pois em minha lista consta 475 filmes a serem assistidos ou revistos. Um absurdo. Uma utopia.



1. 71 Fragments of a Chronology of Chance
2. The Death of Mr. Lazarescu
3. Avenue Montaigne
4. Our Town
5. Four Films by Otar Ioselliani: Disc 2
6. Four Films by Otar Ioselliani: Disc 1
7. Rodin: The Gates of Hell
8. Il Grido
9. Famous Authors: John Steinbeck
10. My Life and Times with Antonin Artaud
11. A Brief Vacation
12. The Diving Bell and the Buterfly
13. Tempest
14. The Damned
15. Margarette's Feast
16. The Bicycle Thief
17. Ratatouille
18. The Passenger
19. The Virgin Suicides
20. Sculptures of the Louvre: Disc 1
21. Sculptures of the Louvre: Disc 2
22. Maria Full of Grace
23. Mirror Andrei Rublev
24. The Long, Hot Summer
25. Cars
26. The English Masters: Constable
27. L'Avventura
28. Who's Afraid of Virginia Woolf?
29. Down by Law
30. The Louvre
31. La Notte
32. Umberto D.
33. There Will Be Blood
34. Permanent Vacation
35. The Nude in Art: Disc 2
36. Stranger than Paradise
37. Dead Man
38. Once in a Lifetime
39. Night on Earth
40. Shadows
41. Curb Your Enthusiasm: Season 6: Disc 1
42. Curb Your Enthusiasm: Season 6: Disc 2
43. La Notte
44. Ossessione
45. The Aura
46. 2 Days in Paris
47. Human Nature
48. The Man Who Copied
49. Confessions of a Dangerous Mind
50. Cinema, Aspirins and Vultures
51. Eternal Sunshine of the Spotless Mind
52. Being John Malkovich
53. Durval Discos
54. The Loves of Emma Bardac
55. Story of a Love

Mais Otar

Pastoral (1976) é um filme de roteiro simples, talvez se eu pudesse ousar afirmar sem a sofisticação onírica da obra de Tarkovski. Um filme russo com legendas em francês pode intimidar, mas não este. Como aos poucos descubro, os filmes de Iosseliani são filmes sem palavras quase, portanto quase sem legendas, e por isso percebe-se que o que conta mesmo são os gestos, as relações entre pessoas, a sensorialidade dos sons. São filmes com princípio meio e fim.
Pastoral conta a historia de um grupo de músicos que por alguma razão burocrática e muito estranha é mandado de Tbilisi para um retiro de veraneio numa comunidade rural. Uma das musicistas do quarteto parece ter alguma relação de parentesco com os donos da casa, dada a calorosa recepção. Parece pois no fim paga pela estada. Na casa habita uma grande familia composta pelos avos, pais e netos.

O calor das boas vindas logo se desfaz, pois por alguma razão a sofisticação da música e dos ensaios, não altera a rotina dos moradores. Estes apenas acham estranha a música, tocada pelo quarteto, que de longe chega aos seus ouvidos, mas seguem suas vidas com a lida do campo, com a ordenha das vacas e o pastoreio das cabras. A azáfama do campo revela que os moradores da vila não tem tempo para aquela estranha e sofisticada música e aos poucos são os músicos que revelam-se envoltos pelas questões locais, como as brigas de vizinhos pelo desvio água que corre num dos córregos de uma propriedade, pela janela que um constrói de frente para a casa do outro, pelos pequenos golpes que um dos vizinhos pobres dá para sobreviver, enfim, pelas questôes cotidianas que fazem realmente sentido para os que vivem ali.

A vida calma, vista pelos visitantes como bucólica, é corroída não por determinação governamental autoritária, mas pelos desentendimentos cotidianos, pelas controvérsias locais, ou mais que isso, simplesmente pelo tempo. A única conexão entre os dois grupos, os moradores e os músicos, é dada pela ação de uma adolescente, um tanto sonhadora, que durante o dia cuida dos irmaos menores da casa e ainda encontra tempo para ler durante a noite e ter aulas de piano. E aos poucos tanto os músicos quanto os expectadores, vamos nos transformando em antropólogos relutantes tentando encontrar os sentidos funcionais da comunidade e do país inteiro na resolução dos pequenos conflitos, que nem de longe tem desfechos sentimentais.
Aos poucos, dependendo dos olhos de quem assiste, surge um possível envolvimento entre um dos músicos e a jovem da casa; ou dependendo dos olhos de quem se distrai, as nuances dos Kulaks e dos Kolkhoses vão surgindo, quando um dos capatazes impede que um velho colete pasto para seus cavalos, tomando-lhe a foice, ou melhor dizendo, em linguagem mais revolucionária expropriando-lhe o instrumento de produção. Enfim, um filme que de cacos e de reconstituição de lacunas, levanta imensas dúvidas aparentes na tentativa de sinalização dos contraste entre um universo de origem dos músicos, urbano, e um universo remoto, o campo. Uma das últimas cenas, quando a menina veste-se com a melhor roupa e arranja uma cesta de maçãs para a despedida dos músicos, é tocante. Quando a cellista chega a casa, com seus pais e avó tem-se a impressão de que todos aqueles do campo estão arqutipiticamente ali, no momento em que o pai pega uma das maçãs da cesta e a come, ao som do cello da filha. Uma cena de pura poesia. Uma poesia sem palavras quase, portanto quase sem legendas, onde o que conta mesmo são os gestos, as relações humanas com princípio meio e fim.

La Pianiste


Erika eh uma balzaquaquiana professora de piano. Rigida e refem de um pretenso conservadorismo criado em parte pela aura de pianista classica num conservatorio de musica vienense, sente um secreto prazer em torturar psicologicamente seus pupilos. Usa seu poder para manipular alunos adolescentes inseguros. Ironicamente, perto de 40 anos ainda vive com a mae, por quem sente uma raiva impotente, que misturada ao temor torna a relacao das duas uma convivencia azeda e explosiva que lhes transforma a indole. Sexualmente, se satisfaz colecoes de revistas que para seu mundo seriam proibidas, com idas furtivas a cabines de filme porno e passeios a pe por cines drive-in a procura de distracoes voyeristas.

Seu mundo encantado minuciosamente costurado com ordem, metodo e a falsa sensacao de ascendencia sobre todos que a rodeiam, passa a se desorganizar quando conhece a Walter, um estudante de engenhaira de 17 anos, que presta exames para o conservatorio. Ela se sente atraida por ele, ainda que o interesse juvenil de Walter pareca mais impetuoso que o dela - controlado e indiferente. Perante os pares desmerece as qualificacoes do rapaz, quando este executa obras de Schumann e Schubert inferindo que as pretensoes profissionais do rapaz sao ambiciosas ja que uma carreira profissional de pianista deve se manifestar mais cedo.

Em pouco tempo sua atracao pelo rapaz passa de uma pretensa ascendencia dominante a possessividade e a uma contraditoria relacao de passividade que somente Leopold von Sacher-Masoch explicaria. Essa transformacao fica clara quando conduzida pelo ciume doentio que passa a sentir por Walter Klemmer, poe vidros quebrados no bolso do casado de uma de suas alunas, Anna Schober, por esta contactar Walter numas das audicoes. Quando procurada pela mae da aluna – tao intransigente quanto sua propria mae - , Erika forja compaixao. Consola-a de maneira a nao deixar duvidas sobre seu papel de mentora.

No frigir dos ovos, Walter Klemmer, como todo o bom adolescente, eh um rapaz fissurado na professora enigmatica. A professora, sexualmente reprimida, tem uma longa lista de exigencias sadicas e masoquistas expressas por carta ao rapaz, que comeca a desconfiar de sua sanidade e se decepciona, desistindo da relacao. Ela insiste, procura-o, e na hora da cama – ou do vestiario de hoquey – nada pintou direito. No novo encontro, Klemmer invade o apartamento da moca, espanca a mae, violenta e humilha a filha. Ela sente que a realidade eh um pouco diferente daquela que assiste nas cabines de filmes ‘proibidos’. Um filme que combinaria mais com uma trilha de Wagner ou Xitaozinho e Chororo, mas como foi Schubert, pareceu-me ateh nem tao violento quanto vulgar. No final, a trilha sonora eh o que importa.
Musica do dia: Tom Waits. Bottom Of The World. Orphans: Brawlers

April


Uma especie de segunda-feira de manhã. Uma cidade antiga desperta lentamente. As janelas dos sobrados vao se abrindo pouco a pouco. Por tras das janelas, os moradores, a maioria deles musicos, despertam a cidade com recitais. Um casal jovem imensamente apaixonado nao consegue encontrar um espaco para namorar, pois ha uma imensa mudanca na cidade. Carregadores passam todo o tempo com moveis e caixas por todos os lugares em que o casal decide pousar organizando a mudanca para um complexo habitacional nas cercanias da pequena cidade. A paixao dos dois eh tamanha que sua energia faz a aguas das torneiras correrem soltas, as bocas do fogao e as lampadas do novo apartamento onde vivem acenderem.

O filme April (1961), de Otar Iosseliani, tem alguns aspectos ainda mais surreais. Apesar do filme de apenas 45 minutos ser quase todo mudo, ha uma sonoplastia estranha. Os instrumentos musicais nao emitem seus sons originais, a agua nao faz ruido de agua saindo da torneira e portas que nao rangem como deveriam ranger, por exemplo. Por esse amor ser tao forte e nao permitir que os instrumentos funcionem e as luzes acendam, a vida cotidiana vai se transformando num tormento. Subitamente, aquilo que parecia um sonho passa a se transformar, sob o mesmo cenario de sons de natureza metalica, num pesadelo.

Otar Iosseliani eh georgiano – por acaso a terra natal de Stalin. Este foi o terceiro filme da carreira de Iosseliani, e um de seus muitos filmes banidos pelas autoridades do Partido Comunista, sob a alegacao de extremo formalismo. Desapontado com as decisoes, decidiu trabalhar embracado por dois anos e depois como metalurgico. Apenas em 1966 retorna a sua carreira, com Falling Leaves, um filme onde o contraste entre os valores tradicionais e modernos esta presente de maneira marcante. Um tanto mais real e oficialesco, e muito menos lirico que Pao de Manuel de Oliveira, Falling Leaves, conta historias estanques ao redor do quotidiano de dois jovens homens, um idealista e outro ambicioso e oportunista, que comecam a trabalhar numa fabrica de vinhos, onde aos poucos o quotidiano dos trabalhadores, que repetem os mesmos gestos mecanicos ao produzir o vinho, mostra a diferenca essencial dos niveis hierarquicos e das herancas filiais. Um filme um tanto longo e desconjuntado que mescla imagens documentais e narrativa filmica, numa gramatica nem sempre compreensivel como em April - uma especie de pequena obra-prima.

"For me, the best film -- the true film -- is the kind which requires no translation."
Otar Iosseliani , Georgian filmmaker

The Last Days of Judas Iscariot


A montagem de “The Last Days of Judas Iscariot”, em cartaz no Forum Theater, é prova da maturidade do teatro de linguagem ágil na área do drama bíblico, pois é fácil lembrar o quanto um espetáculo com esse grau de exigência pode incorrer em tendência a pasteurização e a banalidade.

Fui assistir à peça tal como um viajante medieval: sem guias impressos ou informações prévias sobre o destino. Sabia das informações de praxe sobre o escritor, Stephen Adly Gurgis, e do diretor original, Philip Seymour Hoffman, mas nada sobre John Vreeke, diretor dessa montagem. Importava que Adlly Gurgis é um escritor jovem que escreve há muito para o grupo LAByrinth de NY com incursões na tv e no cinema. Em 2004 ganhou uma bolsa do Sundance Screenwriter’s lab e já escreveu episódios do NYPD Blue e Sopranos. Acho que para mim bastava.

Stephen Adly Gurgis teve uma sacada otima. Como se sabe é mais do que sabido que o texto do era baseado na vida de Judas Iscariotes, um dos escolhidos, um dos 12 apóstolos de Jesus Cristo. Na versão de Stephen Adly Gurgis, Judas, remoido pela consciencia por ter vendido Cristo por 30 moedas de prata, comete suicídio. Morto, aguarda julgamento no purgatório que, à guisa de tribunal, conta com um juiz, Judge Littlefield, a advogada de defesa Fabiana Aziza Cunningham, o promotor Yusef Aziza Cunningham e dez jurados de um juri popular. O cenário todo é adaptado num num tribunal. E a obstinada advogada de defesa Fabiana Aziza Cunningham chegas as raias do descontrole emocional na defesa de seu cliente – que só ela e Borges, que não aparece na peça acreditam se tratar Judas de um inocente.

A montagem é limitada, mas funciona. Cinco jurados sentados frente a frente; o juiz e os dois advogados; Judas no centro do palco; e as aparições eventuais de Satanás. Todos os atores (jurados) trocam papeis o tempo todo. Por exemplo, o personagem de Freud, passa a ser São Tomás, e um soldado romano; Santa Monica – interpretada pela excelente Veronica del Cerro – passa a ser um soldado; e o Juiz Littlefield inverte os papéis com um dos Caifás presentes no julgamento de Jesus organizado pelo Sinédrio. Os papéis e indumentárias são trocados no palco, assim que os atores atravessam o palco e se sentam na cadeira vaga de um dos jurados. Um jogo interessante que funciona bem para um teatro pequeno e um palco de poucos recursos, onde os jogos de luzes fazem recuar a narrativa em flashback par aa infância e juventude de Judas.

Mas a sacada cênica de Stephen Adly vai além. Consiste em mostrar um cara que, antes de se tornar iníquo e infiel, e de ser malhado pela molecada suburbana em Sábado de Aleluia, fora encarregado das financas da trupe que rodeavam Cristo. Como controlava a grana, passou a adquir poder. Mas Stephen Adly mostra também que os fatos não estavam pre-determinados, apesar da rapazeada do grupo já desconfiar dele, Judas, desde a fraqueza demonstrada na cena da unção com óleo perfumado em Betânia, onde o cara provara que estava mais apegado ao dinheiro que os sectos lançavam que às palavras de Cristo, propiamente ditas.

A experiência não é catártica como no conto de Borges Tres versiones de Judas, onde uma das versões dá conta que Judas é o verdadeiro salvador da humanidade – por ter tornado Cristo o traído, já que aquele também renunciara à glória, à honra, à paz e ao reino dos céus. Stephen Adly Gurgis recua. Torna o final, um final banal, com Judas encontrando um personagem secundário num bar, o alcoólatra Butch Honeywell, que se lamenta por ter deixado sua vida familiar escapar-lhe pelas mãos ao trair sua mulher e suas filhas, e consequentemente ter se entregue à birita. Ou seja, uma liçãozinha de moral básica sobre a prescindibilidade dos julgamentos: sejam eles grandiosos como o daqueles que julgaram Judas, ou elementares como aqueles que julgam o infeliz do Honeywell. Mas de tudo, o final é o que menos importa.

Gastaldi veio ao mangue:ô my god ai, que bode que vai dar...

O cartografo italiano Giacomo Gastaldi foi um revisor do Atlas de Ptolomeu e responsavel, segundo dizem, por uma de suas mais compreensiveis adicoes, particulamente por introduzir partes da America, ate entao desconhecidas. A edicao preparada em 1548, analisada em retrospectiva, batia a dos alemaes, belgas e holandeses – ases na arte da confeccao de mapas. Nomeadamente a do alemao Martin Waldseemuller - que sugeriu o nome de America para esse cantinho onde vivemos, em homenagem ao Americo Vespucio - Geographia ode1513 e a do belga Abraham Ortelius Theatrum de 1570.

Giacomo nao tinha sido o primeiro a falar da America. Pierre Decellier, em 1546, ja havia tracado aspectos geograficos e antropologicos da America, mas por pertencer a Escola de Dieppe, a patriotada marota encalacrada nos Institutos Historicos e Goegraficos da Vida o desconsidera - bem como a Giacomo e a Ortelius que somente viria a publicar o seu Mapa da America ou do Novo Mundo em 1587 – valendo para razoes ufanistas apenas as contribuicoes de Diogo Homem, cartografo portugues que trabalhou na Antuerpia e Veneza.

Giacomo era Piamontes e jamais pisou no Brasil. Ate ai tudo bem, pois nao era pratica dos cartografos europeus iram a America, e por isso apareciam os monstros marinhos, os fenomemnos teratologicos de gente comendo gente no sentido lato do termo. Mas o feito do Giacomo foi importante pois publicou em 1965 Nella Stamperia de Giunti, onde entre outros detalhes percebe-se indios trabalhando inocentes, praticando escambo com portugueses voluntariosos, e...




...copulando...

Musica do dia: Mingus samba(Guinga - Aldir Blanc)
Balangandã da baiana...Maracanã do Carvana...deixa a Chiquita bacana voltar!Mane Garrincha sacana...tá bem, nós somos bananas mas não é preciso se embananar.Mingus veio ao mangue:ô my godai, que bodeque vai dar...Mingus com seu somvai botar o mingaua knockdown.Mingus, senta o pauque o pitecantropustem que mamáMamba, Mingus,mani-pi-cao!Mingus me sacudiu:tchan, tchau!Ô, ô, morena faceira,ai, ai, cubana mañera,hoje é do Mingus o meu carnaval.Ai, caboclinha, me aqueçatransforma a quinta e a terçaem feriados, do-Mingus de sol!Ai, que mistura que dá...ôi, zum-zum-zum resedá...Vou com o Mingus e um primo do Neino domingo pra Piabetá.Ai, ai, Iaiá de Ioiô,Mingus te manda um helloJá tomamo umazinhae há o bafo da onça na onda que eu vou...Mamba, Mingus,mani-pi-cao"Mingus samba e pingajazz de coringa na geral!

O ponto em que a vertical de um lugar vai encontrar a esfera celeste acima do horizonte

Almoçei com a Patricia.
Retornei a minha mesa. Li um conto. Acho que somente eu, ela e mais uns poucos amigos saberão do que se trata.

Era um rapaz passivo. Aceitava tudo o que vinha dos chefes. Porém, como era bajulador, incomodava.
Cortaram-lhe a língua: deixou de elogiar.
Depois cortaram-lhe os dedos. Deixou de escrever textos laudatórios.
Foi num desses dias que, com a cabeça a bater numa mesa - em código morse - ele disse, para os seus chefes:
Mais uma como essa e perdem um amigo.

(Conto, O Amigo, do livro "O Senhor Brecht" - Gonçalo M. Tavares) Este conto envolvendo o singelo tema do "kiss up, kick down".


Hans Henze

Funeral blues
W.H. Auden

Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.

Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.

[…]
The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.

Este poema foi recitado pelo personagem Matthew no filme Four Weddings and a Funeral, exatamente no funeral de Gareth. Um filme bacana, um filme de geração que não deveria ter sido tão banalizado. Quando Quico escreve dando a noticia da morte do Hans Henze, no último sábado, senti uma coisa muito ruim, muito ruim mesmo, uma sensação que a vida é reles pois a mão, débil e senil, que sustenta seu fio não é fiável: treme a todo o instante. E lembrei deste poema.

Ter o Hans ao nosso lado, mesmo que distante, nos fazia bem: Tê-lo vivo nos fazia bem. Antes do ataque cardíaco que o deixou esculhambado e falando mole, sempre nos reuníamos no apartamento do Quico e Hans tinha a incrivel capacidade de transformar nossa atmosfera num daqueles filmes de Denys Arcand, frequentando os mundos de Pedro Juan Gutiérrez.

Com carinho, em memória do nosso amigo Hans Henze, que morreu no ultimo fim de semana no Rio de Janeiro.

Nosferatu



Em 1921, em Zagreb, antes das fronteiras físicas da Serbia mudarem, se dissolvendo em asco e sangue, a língua e a cultura resistiam. O poeta sérvio de nome impronunciável Ljubomir Micić lançou com um grupo de amigos a revista Zenit. Nesse momento a Servia e Croácia ainda não eram Iuguslávia - o que viria a se concretizar apenas em 1929 e finalmente se dissolver em 2003. Em torno à Zenit reuniram-se intelectuais eslavos importantissimos, de nomes tão impronunciáveis como o de Micić, tais como Branko Ve Poljanski e M. Crnjanski. Justamente num momento em que França, Itália, Alemanha, Espanha viviam as agitações do futurismo, do dadaísmo e o início do que se definiria anos mais tarde como surrealismo, pois somente em 1924, Andre Breton definiria o surrealismo (nesses termos "Surrealismo: "sustantivo, masculino. Automatismo psíquico puro, pelo qual se tenta expresar, verbalmente, por escrito o de qualquer outro modo, o funcionamiento real do pensamento. Eh uma necessidade do pensamento, sem a intervenção reguladora da razão [...]."), a Zenit nascia expandindo suas fronteiras.

A própósito de Guillermo de Torre, que anos mais tarde viria a se tornar cunhado de Borges, é importante dizer que ao mesmo tempo em que marcava sua presença na Revista del Occidente, de Ortega y Gasset, esperava naquela quarta-feira pela tarde por Josef Kalmer e Georg Kulka num café de Praga. Sobre a mesa lateral do café na rua Rytirska, um café expresso, um cálice de absinto vazio e o último número da Zenit. Guillermo tinha apenas 2,5 graus de hipermetropia portanto, naquela tarde, era possível que o desconforto causado pela semelhança entre as unhas da figura desenhada por Vilko Gecan, contidas na terceira página do Zenit, e as do excêntrico conde Graf Orlock não tivesse relação apenas com a visao curta ou tampouco com a demência causada pelo gosto do anis...


Instruções para não dormir

Ontem: uma criança cai. Bate com a cabeça num chão de mármore e desmaia por uns instantes. Chamam da escola. Coração na mão. O pai corre para o pronto socorro. Erra de hospital. Entra noutro taxi. Quinze minutos imensos e tenazes de um tempo que envelhece no pai, adjetivando ao rosto rugas e memórias dolorosas de pais que perdem filhos. Chega finalmente ao Georgetown Hospital. Na sala de espera o menino brinca com uns aviões e uns carros plásticos junto a outro menino francês com um pé torcido. Riem até. Está de costas. Quando ouve voz do pai se vira e mostra seu carrinho. O pai lembra-se instantaneamente ter lido em algum lugar, em alguns desses teórico idiotas, talvez Pavlov, que as crianças respondem a condicionamentos e portanto sentem a apreensão, no olhar, na voz, no instinto talvez. Entra no olhar do filho, passa a mão pelo seu rosto e sorri apreensivo. O pai quase imagina o filho dizendo, papai que bom voce aqui. O menino se vira e volta a brincar com os carros de plástico. O menino está aparentemente bem mas com um galo impressionante e um olho roxo. Minutos depois uma enfermeira chama pelo nome do menino. Pai e mãe acompanham atentos as palavras da médica advertindo que não era aconselhável que a criança dormisse nas próximas por oito horas. Em caso de qualquer sinal de letargia, deveriam voltar ao hospital imediatamente.

O pai volta ao trabalho. Recebe um recado para telefonar para sua mãe. A avó do menino, que mora noutro país distante do Brasil, também tinha sofrido um acidente, um corte. Não se aconselha que diabéticos tenham cortes. Liga imediatamente. A mãe atende. A bem da razão, um acidente doméstico não tão simples para um band-aid, não tão grave para uma internação. O filho se sente aliviado pela mãe já ter sido medicada, mas pensa por instante que a vida é uma merda. Trabalha até as 7-8 da noite mas sem muita concentração. As imagens fotográficas o confundem. As pesquisas bibliograficas se tornam inconsistentes e sem sentido.

Ontem: em casa, pela noite, o pai não se contrariou secretamente, como de costume, com a arganaz de nome Mickey. Achou até que aquela era uma grande bobagem de sua parte, afinal o Pateta e o Pato Donald não poderiam ser tão nocivos assim como os descritos no "Para Ler o Pato Donald". Assistiram um pouco de TV juntos. O menino comia feliz uns morangos enquanto assitia a umas animações das músicas do Toquinho. Depois o pai deu uns telefonemas. Sua cabeça doía muito. O menino dormiu.

O pai adormeceu no sofá. Chegou a sentir a esposa grávida desligar o televisor, mas estava exausto. Acordou as 4:30 da manhã com a mesma roupa. O pai normalmente dorme a essa hora, talvez um pouco mais cedo, mas jamais desperta tão cedo. Foi ao quarto do filho e o cobriu, pois fazia frio. Foi para a cozinha, fez um café, voltou para a sala e continuou desempacotando livros. Encontrou e folheou o Angústia, que se encontrava na pilha sobre o Vidas Secas. Torceu a boca ironicamente...

Lembrara-se de Angústia. O personagem era um funcionário público. Um escritor frustrado que descobre-se traído pela noiva com um sujeito eloquente, gordo, suado e de rosto vermelho. Desesperado, o protagonista, do qual o pai não se lembra o nome, começa a desenvolver umas neuroses sociopatas, vivendo num clima de pesadelo constante. Tudo passa a incomodá-lo, desde o miado dos gatos às vozes das pessoas. Tudo basicamente cataliza sua angústia em ter sido deixado de lado.

Num ato reflexo, o pai olha para a caixa. Esquecera-se que tinha o Insônia. Uma edição de 53. Nunca lera Insônia. Justamente, um livrinho de contos bem fininho mas dependendo das circusntâncias não necessariamente inofensivo. Justamente na primeira estória, um homem desperta em meio a delírios no meio da noite com uma pergunta: "Sim ou não?" A dúvida obsessiva o atordoa e confunde, frustrando a vontade de dormir. Justamente quando pensa que se riem dele, apóia o queixo nas munhecas com o cigarro aceso preso aos dentes. O pai procura um cigarro no maço vazio de Benson & Hedges. Fumara dezoito cigarros naquela tarde e noite anteriores. O tic-tac do relógio também estava no livro a matracar. O indivíduo e o personagem o confundiam, numa tênue linha que separava a realidade do que se imagina dela, em terceira pessoa. E eu apenas começara a escrever isso, quando soube que tudo não passou de um susto. Um terrível susto.