Instruções para não dormir

Ontem: uma criança cai. Bate com a cabeça num chão de mármore e desmaia por uns instantes. Chamam da escola. Coração na mão. O pai corre para o pronto socorro. Erra de hospital. Entra noutro taxi. Quinze minutos imensos e tenazes de um tempo que envelhece no pai, adjetivando ao rosto rugas e memórias dolorosas de pais que perdem filhos. Chega finalmente ao Georgetown Hospital. Na sala de espera o menino brinca com uns aviões e uns carros plásticos junto a outro menino francês com um pé torcido. Riem até. Está de costas. Quando ouve voz do pai se vira e mostra seu carrinho. O pai lembra-se instantaneamente ter lido em algum lugar, em alguns desses teórico idiotas, talvez Pavlov, que as crianças respondem a condicionamentos e portanto sentem a apreensão, no olhar, na voz, no instinto talvez. Entra no olhar do filho, passa a mão pelo seu rosto e sorri apreensivo. O pai quase imagina o filho dizendo, papai que bom voce aqui. O menino se vira e volta a brincar com os carros de plástico. O menino está aparentemente bem mas com um galo impressionante e um olho roxo. Minutos depois uma enfermeira chama pelo nome do menino. Pai e mãe acompanham atentos as palavras da médica advertindo que não era aconselhável que a criança dormisse nas próximas por oito horas. Em caso de qualquer sinal de letargia, deveriam voltar ao hospital imediatamente.

O pai volta ao trabalho. Recebe um recado para telefonar para sua mãe. A avó do menino, que mora noutro país distante do Brasil, também tinha sofrido um acidente, um corte. Não se aconselha que diabéticos tenham cortes. Liga imediatamente. A mãe atende. A bem da razão, um acidente doméstico não tão simples para um band-aid, não tão grave para uma internação. O filho se sente aliviado pela mãe já ter sido medicada, mas pensa por instante que a vida é uma merda. Trabalha até as 7-8 da noite mas sem muita concentração. As imagens fotográficas o confundem. As pesquisas bibliograficas se tornam inconsistentes e sem sentido.

Ontem: em casa, pela noite, o pai não se contrariou secretamente, como de costume, com a arganaz de nome Mickey. Achou até que aquela era uma grande bobagem de sua parte, afinal o Pateta e o Pato Donald não poderiam ser tão nocivos assim como os descritos no "Para Ler o Pato Donald". Assistiram um pouco de TV juntos. O menino comia feliz uns morangos enquanto assitia a umas animações das músicas do Toquinho. Depois o pai deu uns telefonemas. Sua cabeça doía muito. O menino dormiu.

O pai adormeceu no sofá. Chegou a sentir a esposa grávida desligar o televisor, mas estava exausto. Acordou as 4:30 da manhã com a mesma roupa. O pai normalmente dorme a essa hora, talvez um pouco mais cedo, mas jamais desperta tão cedo. Foi ao quarto do filho e o cobriu, pois fazia frio. Foi para a cozinha, fez um café, voltou para a sala e continuou desempacotando livros. Encontrou e folheou o Angústia, que se encontrava na pilha sobre o Vidas Secas. Torceu a boca ironicamente...

Lembrara-se de Angústia. O personagem era um funcionário público. Um escritor frustrado que descobre-se traído pela noiva com um sujeito eloquente, gordo, suado e de rosto vermelho. Desesperado, o protagonista, do qual o pai não se lembra o nome, começa a desenvolver umas neuroses sociopatas, vivendo num clima de pesadelo constante. Tudo passa a incomodá-lo, desde o miado dos gatos às vozes das pessoas. Tudo basicamente cataliza sua angústia em ter sido deixado de lado.

Num ato reflexo, o pai olha para a caixa. Esquecera-se que tinha o Insônia. Uma edição de 53. Nunca lera Insônia. Justamente, um livrinho de contos bem fininho mas dependendo das circusntâncias não necessariamente inofensivo. Justamente na primeira estória, um homem desperta em meio a delírios no meio da noite com uma pergunta: "Sim ou não?" A dúvida obsessiva o atordoa e confunde, frustrando a vontade de dormir. Justamente quando pensa que se riem dele, apóia o queixo nas munhecas com o cigarro aceso preso aos dentes. O pai procura um cigarro no maço vazio de Benson & Hedges. Fumara dezoito cigarros naquela tarde e noite anteriores. O tic-tac do relógio também estava no livro a matracar. O indivíduo e o personagem o confundiam, numa tênue linha que separava a realidade do que se imagina dela, em terceira pessoa. E eu apenas começara a escrever isso, quando soube que tudo não passou de um susto. Um terrível susto.

3 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Chico, o seu texto está ótimo, pura literatura. Li com muito interesse e prazer como só nos dedicamos a um bom livro, um bom autor que sabe conquistar com verdade e identificação. Cara você precisa escrever mais coisas assim!

ilusão da semelhança disse...

Valeu Kovacs, voce eh grande. O problema eh que a maneira de contar pode nao ter respeitado a realidade ipsis literis - posso ateh nao ter fumado tantos cigarros -, mas meu menino realmente caiu na escola e eu corri para o hospital com o coracao na glote. Bicho, tu nao tens ideia, ou talvez tenhas pois pela foto tens um guri tambem, quase morri do coracao.

Alexandre Kovacs disse...

Chico, essa mistura de realidade e ficção é a própria essência da boa literatura (ver o caso do "Filho Eterno" de Tezza). No meu caso a identificação foi grande, justamente por ter um filho de cinco anos e que é bem agitado. Fico sempre achando que qualquer dia desse ele vai quebrar qualquer parte do corpo.