Michelangelo Antonioni e Bergman


Faleceu ontem, no mesmo dia da morte de Igmar Bergman, Michelangelo Antonioni aos 94 anos. Do Antonioni vi bons e antológicos filmes. Nesse momento me lembro logicamente do Blow-up que sempre me vem a cabeça por dois motivos. O primeiro, a Jane Birkin nua, no auge de no máximo seus 20 anos. A segunda coisa, o roteiro que foi baseado num conto do Cortazar chamado Las babas del diablo – que ficou bem diferente na tela, até por que por mais perícia que Antonioni tivesse, jamais poderia traduzir a frase, 'entre las muchas maneras de combatir la nada, una de las mejores es sacar fotografías.' Mas isso é uma longa estória.

Outro filme muito bom do qual tenho sempre uma boa lembrança é o La Notte. Jeanne Moreau e Mastrioanni emprestam olhares e gestos precisos a um casal em crise que procura em relacionamentos paralelos as respostas para a monotonia do cotidiano conjugal. Há uma cena clássica que Antonioni se supera no poder de bruxo eufemista, quando os protagonistas estão num bar e a cena começa com um jazz da pesada rolando. Um casal de dançarinos negros entra no palco e começa uma simulação meio doida de strip-tease. Quando todos pensam que aquilo terá um fim óbvio, o dançarino, ao final, envolve sua parceira com sua pele, ela agradece aos aplausos e se retira. A sutileza de Antonioni é mais uma vez notada quando a personagem de Moreau aplaude primeiro que o marido, estudando-o de uma posição um pouco mais atrás que a do marido, pois percebe que, talvez, no fundo, aquilo era desde o início, uma encenação feminina distante da apreensão masculina. Logo ele que era escritor e que deveria estar atento a esses mínimos detalhes da alma humana.

Por falar em detalhes ínfimos da alma, o que dizer de Bergman? Só o Ovo da Seprente e Persona. Ponto. Poucas vezes na vida senti tanto o pulso de um diretor como nesses filmes. Afinal, quem assitiu Persona sabe do que falo. Num enredo onde uma mulher surta no meio da apresentação de um Sófocles perdendo a fala, e instiga o resto de nossas duas horas de razão crítica a pensar em círculos - para onde esse cara vai levar essa estória agora? - é no mínimo um fabulosos exercício, típico do Bergman, de brincar com nossa incapacidade de pensar. Senti isso com pouquissimos filmes e livros na minha vida. Um deles, até então, que me lembre agora, era exatamente um livro menor do Gabriel Garcia Marques chamado Diário de um Náufrago, onde um cidadão está a deriva por vários dias no meio do oceano: ele, o mar e o céu. Só isso. Tirar uma estória desse quase-nada me impressionou quando eu tinha 16 anos. Lá pelos anos de faculdade já não me impressionava muito com esse negócio de tirar estórias do nada, pois como diria o Victo Guidice, a gente luta mesmo é contra esse vicios do mundo objetivo e do universo subjetivo em que a gente morre todo dia, mas aí um amigo me diz que havia um cineasta sueco bom pra caralho – ele usou exatamente essa expressão logo no fim de uma aula de filosofia do Gerd Bornheim! Fui conferir aquele tal de Bergman. Mas para meu amigo eu dissera que, obviamente, ouvira falar do homem, pois nesse meio de gente muito inteligente você revê filmes e relê livros, sem espanto, mesmo que só tenha vinte e pouquinhos anos, mesmo que só patéticamente da boca pra fora. O que me impressionou mesmo foi tirar uma estória de dentro de uma outra estoria. Ou seja, de uma peça de Electra, fazer um filme onde a protagonista passa todo o tempo muda, e que por um malabarismo visual do diretor, a enfermeira, se sentindo traida quando descobre que a mudez de sua paciente possa ser fabricada surta, ao desconfiar que pode estar, na verdade, sendo usada pela protagonista para uma espécie de estudo de personagem. É isso aí.... Bergman. Então, dorme com esse universo de pena, culpa e manipulação na cabeça.


Enfim, mais um dia triste, pois mesmo que se percebam coisas boas como um beijo de filho, a alegria de um dia quente, a promessa de uma publicação, a felicidade nos olhos de uma avó, e os instantes de atenção na generosidade do olhar da mulher, a gente sempre vai ficar com a sensação de que para entender tanto ao Antonioni quanto ao Bergman teriamos mesmo que revê-los inúmeras vezes até perceber que já é demasiado tarde. Perceber que para sermos melhores teriamos mesmo é que não apenas ler, mas parar, olhar, entender muitas sutilezas desses mundos onde a gente morre todo dia.

É alegre a natureza? Impotente dizem.




O PBS, Public Broadcasting Service, está transmitindo nas últimas semanas um documentário fantástico sobre arte chamado The Power of Art, apresentado por ninguém menos que um dos mais elegantes historiadores que habita o barulhento, e nem sempre competente, ambiente intelectual americano: Simon Schama.

Autor de livros já clássicos como o Citzens, ambientado no seio da Revolução Francesa, Schama, com sua eloquência característica, tomou o devido cuidado na época de afastar Luis XVI, Necker, Maria Antonieta, do centro das atenções, fazendo-os coadjuvantes de um processo muito mais interessante que via nos sans-culottes e em boa parte do Terceiro Estado a construcção de novos valores nunca antes elaborados. Através do conceito de cidadania, resgata da revolução o poder da crônica e embrulha de presente para os historiadores um problemão: se para a História não existe Verdade, o que limita um historiador dar à crônica um valor histórico – duzentos e tantos anos depois da Revolução.

Neste documentario, especificamente, ele tambem usa as margens para explicar a ligacao entre arte e hitoria. Baseia sua apresentacao num livro homônimo muito interessante já traduzido para o português. Na verdade, The Power of Art é baseado num livro que foi pensado para ser exibido na BBC, e elege oito artistas como representantes específicos de uma época que ao retratarem um objeto aparentemente inexpressivo ou uma paisagem intuitivamente familiar revelam através destes, valores de uma cultura, de um tempo e lugar: Caravaggio, Bernini, Rembrandt, David, Turner, Van Gogh, Picasso e Rothko. No documentário não fica clara justificativa da escolha por este ou aquele artista, mas pouco importa, pois sua erudição e a elegância do ordenamento de suas idéias é tanta - e tão simplificadamente exuberante - que o melhor mesmo é ficar calado, admirado, pasmo.

Ele fala por exemplo da verdadeira obsessão dos românticos por elementos da natureza como rochas, montanhas, fins de tarde, mares revoltos, e de como as escolhas das cores influenciavam na profundidade da recepção de suas obras de arte. Ontem foi a vez de Joseph Mallord William Turner, pintor inglês, que teve dentre seus quadros mais representativos, na visão de Schama, o retrato da tragédia de um naufrágio negreiro nos mares caribenhos: The Slave Ship: Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying, Typhoon Coming On.
A tragédia do navio Zong, ocorrera, na verdade em 1780, quando seu capitão, vendo uma tempestade se aproximar, toma a decisão de se livrar de parte da carga de escravos, que tragicamente seria lançada ao mar.

No caso específico deste pintor, Schama dá algumas pistas de sua metodologia na escolha dos autores. Schama afirma que Turner era um pintor caracteristicamente de estúdio, que raramente pintava, in loco. Essa escolha, associada a suas leituras da tradução de 1840 da THEORY OF COLORS de Goethe, sugere que havia na sua arte uma elaboração muito mais profunda, condicionada, porém refletida, que fazia de seus quadros não apenas uma forma de fruição romântica, mas uma conexão entre sequências históricas e emocionais. Havia também um aspecto político, pois 1840 era o período onde os debates em torno da proibição do tráfico negreiro foram mais intensas e antecipando as pressões para a aprovação do Bill Aberdeen em 1845.
Tanto o artista quanto o historiador, suspeito que, na visão de Schama, são seres que resgatam o substrato, as forças históricas inexploradas e inexplicadas que ficaram a deriva ao longo dos séculos, e que através da combinação de erudição e auto-controle crítico expressam em imagens os juizos e valores históricos.... à guisa de uma crônica, talvez.



Enfim, mais um grande documentário. E que venha Rothko!


http://www.pbs.org/wnet/powerofart/?campaign=pbshomefeatures_5_simonschamaspowerofart_2007-07-24






Música do dia: Natura, festa do Interior, Música do Interior, Egberto Gismonti.
O título do post vem do Manoel de Barros


Assisti ao Me and You and Everyone We Know saido do forno. Numa tarde de domingo. Ano passado, talvez. E Street, certamente, pois não há outro local. Por que só agora escrevo sobre esse filme? Sinceramente, não sei. Mas, algumas passagens do filme me vieram a mente minutos depois de ter com meu camarada Rodrigo Patto e sua incansável tentativa de encontrar un sentido na solidão americana. O filme trata das estórias de Christine, uma artista plástica iniciante - e desconfio não muito talentosa - que vive uma constante oscilação entre fantasias diversas e realidade, quer na sua arte quer na sua própria vida; e de Richard, um vendedor de calçados numa loja de departamentos, separado e pai de dois rapazes. Do encontro dos dois poderia-se esperar muito, principalmente por ele, pensando que estava sempre preparado qualquer acontecimento inusitado, deixa, não sem pânico, a espontânea Christine entrar na sua vida. Poderia-se esperar ao menos que da falta de rumo na vida de ambos surgisse algo mais que uma espécie de amizade onde um passa a depender do outro, sem saber ao certo quem teria ascendência sobre quem. Mas eu acho que é exatamente essa falta de perspectiva, essa obliquidade para onde a solidão os empurra, e o consequente retraimento involuntário que Miranda July, protagonista e diretora, quis impor ao roteiro, pois senão veja, todos os demais personagens vivem os efeitos dessa poética e penetrante condição da realidade americana moderna. Os exemplos? Robby, filho de 7 anos de Richard, mantém um romance internético com uma desconhecida, que não revela nem para seu irmão mais velho, que por sinal, vive em sua sanha onanistica a procura das meninas da rua para ‘iniciar-se’ – deixemos assim nesses termos ambíguos.

Enfim, todos, a seu modo, procuram laços de união. Mas ai tudo acaba degringolando.... O que prometia ser um bom filme acabou frustando totalmente. O que tinha tudo para ser um filme doce, divertido e sensivel sobre destinos desamparados a procura de laços que os unissem, virou uma estória desiteressante, onde a amiga secreta de Robby, filho de Richard, é a dona da galeria de arte onde Christine, amiga de Richard, deseja expor. E o filme acaba. Assim. Com todos solitarios, não mais solidários, novamente.

Não lembrei de falar desse filme na conversa do almoço com o Rodrigo, estudioso do comunismo brasileiro, mas também não sei se ele entenderia – como eu, a muito mais tempo aqui, não entendo - que para haver entendimento sobre solidão americana é necessário compreender que mesmo num filme eufemista há uma emanação realista dele todos os dias assim que se sai de casa pela manhã em direção ao trabalho. É só imaginar. Por isso não acho nenhum filme extraordinário como os criticos babacas do CityPaper me enganaram na época.
Preferimos falar da sua pesquisa, da constrangedora constatação de que as universidades brasileiras tiveram um boom de crescimento durante a ditadura, das recentes memórias de Jorge Amado, dos inumeros processos contra Enio Silveira da Civilização Brasileira - e minha alusão sobre o filme the apartament que só nós saberemos a que se refere - e do republicano espanhol Max Aub, ou seja preferimos falar de nós e de alguns que conhecemos, no que fizemos muito bem.

http://www.meandyoumovie.com/

Sicko na verdade é uma doença mental


O novo documentário de Michael Moore, Sicko, chegou as telas daqui nesse último fim de semana. Chegou já causando barulho. Não por uma parte essencial da narrativa se passar exatamente em Cuba, mas por que mostra que nessa história de saúde, planos, cuidados com a vida, não existem boas intenções.

Mas, a porpósito, por ter filmado parte do documetário na terra de Fidel, violou o embargo que os EUA promovem contra a ilha. Assim, Moore terá que se ver com a justiça americana. Não deve dar em nada, mas ele chegou a temer que o governo usasse isso como pretexto para embargar a estréia do filme nos EUA, no último fim de semana. O que aparentemente não aconteceu, pois o lobby dele (Millenium e MGM) que conta com a ajuda providencial de Bob Weinstein, fundador da Miramax, cá pra nós, também não deve ser faco.

Enfim, o filme retrata a miséria promovida pelos milionários planos de saúde americanos (Cigan, Aetna....) a milhões de americanos que vivem à margem do sistema. Um dos fios condutores da narrativa centra-se no drama de 3 ou 4 bombeiros e voluntários que trabalharam no resgate das vítimas do atentanto contra as torres gêmeas. Retrata a vida desses bombeiros e enfermeiros que hoje em dia convivem com doenças pulmonares causadas pelas várias semanas que ficaram aspirando pó, fumaça, e miasmas dos corpos sob os destroços do World Trade Center. Por serem voluntários, na época, foram tratados personagens que engrossavam o caldo dos heróis anônimos que participaram do resgate de milhares de corpos sob os escombros da vergonha de todos. Hoje, através das lentes de Michael Moore, fazem parte do grupo de americanos que não tem acesso ao sistema privado de saúde, e que pagam um preço alto por isso.
A miséria destes e de muitos outros começou num passado não muito distante de 2001. Começou mais especificamente no governo republicano de Richard Nixon que deu as primeiras cartas brancas para a Kaiser Permanent operar com as contas de alguns sindicatos americanos, como o dos professores da California - mas isso não está no documenário. Com o passar dos anos, as pessoas foram vendo que as coisas não estavam bem paradas e Hilary Clinton – meio que oportunisticamente pois aproveitou-se da face free-rider de primeira dama - tentou resgatar a discussão de um sistema de saúde unificado. Os sindicatos e lobbies do setor compraram, subornaram, negaram e recusaram a proposta do que eles chamavam de socialização da saúde nos EUA. A ironia apresentada por Moore é que Hilary também recebeu generosas contribuições da indústria de fármacos para sua eleição para o senado... justamente quando ela já não mais os atacava.
Enquanto os lobbies operavam no Congresso, uma espécie de procedimento padrão fundou-se nas empresas seguradoras. Quanto mais operações negassem, mais vantagens em bônus e outros benefícios, seus funcionários teriam. Com isso Moore recolhe depoimentos das vítimas desse processo, exatamente dos ex-bombeiros, pessoas com câncer, doentes terminais e viúvas deste perverso processo onde todo mundo que trabalha do lado do mal se acha inocente, obviamente. Aliás o ponto alto do doc é o depoimento de uma operadora de telemarketing de uma dessas Aetnas da vida que simplesmente surta na frente das câmeras. Pede a todos que não contem seus dramas para ela, que a deixem trabalhar em paz, negando seus pedidos de operação, de retiradas de cancros, fistulas ou seja lá o que for... para que ela possa ter uma vida normal como todas as outras pessoas. Realmente uma personagem que nem Nelson Rodrigues nunca jamais poderia ter pensado.
Outra parte impagável, e de gosto certamente duvidoso, é a hora em que ele enche três barcos de doentes e ruma em direção a Guantânamo exigindo das autoridades militares locais o mesmo tratamento que os militares dão aos suspeitos de terrorismo, sugerindo que os homens da aukaêda dispõem de melhor atendimento médico que cidadãos americanos - mas não comece a tacar pedra não, pois já ouvi um monte de gente no Brasil dizendo que preso, bandidos e afins tem vida melhor que os libertos...
Não gosto de duas coisas em Moore. Por um lado, sua capacidade de manipular informações, introduzindo depoimentos emocionais, personificando de maneira pontual heróis e vilões; e por outro lado, sua espécie de didática narrativa, com perguntas estúpidas que fazem o espectador refletir calhordamente e indignar-se indutivamente. Também não gosto de sua auto-indulgência e compassividade ao fazer questão de mostrar que está sendo atacado todo o instante por dizer a verdade. Mas no fim do filme os americanos aplaudiram...sinal que gostaram.Para dizer a verdade, esse talvez seja o menos ambicioso dos documetários dele, e talvez o que vá fazer mais barulho nos próximos debates presidenciais.
Poesia do dia:
Adelante a toda despedida, Arturo Tendero
La noche es el soporte
de la derrota. Por la mañana oiremos
latir de nuevo el corazón
y nos abrazaremos a la duda