25 DE ABRIL




Grândola Vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó Cidade
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto a igualdade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó Cidade
Dentro de ti ó Cidade, oh, oh, oh
Juro em ter a companheira
A sombra de uma azinheira
Que já não sabia a idade






Casablanca




Ontem assisti Casablanca pela décima oitava vez, talvez. Estava ali na tela do TCM… eu tava de boréstia, confinado e biritando , pra variar… e por que não? Casablanca. Casablanca é um desses mistérios que a gente não consegue explicar, mesmo. 

Não é um filme bom pra caramba. O roteiro tem um monte de furadas e clichês de filmes pastosos de amor. Não por acaso, Humberto Eco disse certa vez que a fraca verossimilhança psicológica dos personagens e as reviravoltas que ocorrem sem razões plausíveis tornam o filme fraco. Os atores, principalmente os militares, são meio caricatos. Além disso, a Ingrid Bergman, ainda que patinando numa série de filmes medianos, vinha de Intermezzo, e Humphrey Bogart vinha de nada mais nada menos Reliquia Macabra, The Maltese Falcon. 

Ou seja, Aceitar trabalhar em Casablanca, só pela grana mesmo. Por que no fundo, lendo o roteiro, parecia um filme apenas de propaganda anti-nazista.  E era mesmo, por que os produtores de Hollywood nunca estão de bobeira. Nunca dão ponto sem nó. Nunca chamam periquito de meu loro.

O roteiro era de um professor de escola de segundo grau, Murray Burnett,  em parceira com Joan Alison,  que o concebeu originalmente como uma peça de teatro. Isso no começo dos anos 30, quando Hitler nem era Hitler, Franco não era Franco, Mussolini apenas ensaiava ser Mussolini, por isso muitos dizem que o texto foi sendo complementado por 4 roteiristas durante as filmagens. A peça se chamava Everybody Comes to Rick's . Quando a coisa apertou na Europa, Burnett e a mulher se mandaram para lá, para repatriar dólares de parentes judeus para a América, e ali terminaram a peça. Reza a lenda que numa parte da viagem, pararam num bar no sul da França, que tinha ao piano um cantor negro americano, o que pode bem ter bem influenciado na escolha de Dooley Wilson para  o papel de Sam. Detalhe. Wilson era baterista na vida real, e não pianista. Então por que Casablanca se tornou Casablanca?  

Aí entra um conjunção quase aleatória de fatores.  O filme estréia em 26 de novembro de 1942, em Nova York, em plena Segunda Guerra. E antes de mais nada é importante dizer que o filme somente seria exibido na Europa em 1946 na Itália, e na Alemanha Oriental somente em 1983, diretamente na televisão! A première do filme foi antecipada devido a um fato histórico. Alguns dias antes, no dia 8 de novembro, as tropas aliadas (que se opunham à Alemanha de Hitler) invadiram a cidade marroquina de Casablanca que, até então, estava sob o domínio da França de Vichy.

Filmado em 3 meses, Casablanca conta a história de Rick Blaine, um americano amargo, machão, sentimental e cínico que vive e trabalha em Casablanca, onde tem um badalado café. O Rick’s Café é frequentado tanto por nazistas, como por funcionários franceses, estelionatários, compradores de ouro, malfeitores, biscateiros, apostadores, vigaristas, trabalhadoras da noite, biriteiros inofensivos, apontadores de jogo do bicho, dissidentes, maconheiros, músicos, artistas, fumadores de haxixe, Jesus, só coisa ruim. Numa noite, entra Ilsa Lund, o grande amor do passado de Rick, aparece em seu bar ao lado do marido, Victor Laszlo, herói da resistência tcheca. Dois anos antes ela tinha o deixado numa estação de Paris, sob chuva, esperando. La pelas tantas ele se lamenta com Sam…” de todos os botequins do mundo ela tinha que entrar justo no meu?” Está arrasado. E de repente vira-se para Sam e diz, “ se ela aguentou eu também aguento, toca ai Sam!” O reencontro dos ex-amantes reacende o amor entre eles e o sofrimento em Bogart. Mas o cara é foda! É Bogart porra! 

O sucesso de Casablanca pode ser considerado como o resultado de uma combinação de golpes de sorte  do destino ou acidentes de percurso. Além da pressa na filmagem, da questão do roteiro, alterado até o último minuto, a música quase deixa de ser  "As Time Goes By", de Herman Hupfeld, escrita em 1931. Max Steiner. O compositor da trilha sonora do filme, queria retirar a música e substituí-la por uma composição original, depois do filme acabado. Enfim, nesse meio tempo de pós-edição Ingrid Bergman já tinha cortado o cabelo curto, Bogart já ia começar a filmar Passagem para Marselha e enfrentavamais  um problema de separação com a atual mulher… enfim, ficou "As Time Goes By”.

A lenda mais inacreditável sobre o filme, é a que dá conta de que o ator principal, na pré-produção, não seria o Humphrey Bogart e sim Ronald Reagan. Felizmente Reagan teve de cumprir um serviço militar e Bogart pegou o papel.

O filme foi dirigido pelo húngaro Michael Curtiz, que filmou muito, mas um monte de filmes noir, bíblicos, com piratas, foras-da-lei, boxeadoresera considerado um faz tudo em Hollywood. Embrulhava e mandava. Está percebendo por que Casablanca não podia dar certo?

Humphrey Bogart costumava dizer que Casablanca era a melhor obra de sua filmografia. Isso pode ser um exagero. Eu gosto do Bogart, era um cara legal, era meio feio, meio magricela, e com boa vontade podia ser até um carioca do subúrbio. Mas ele as vezes mentia. A vida dele certamente mudou, mas não pelo filme…

Ele vinha de uma série de papéis de gangster e de detetives. A imagem dele era de cara durão e cínico. Tinha acabado de filmar a Reliquia Macabra, do Dasheill Hammett, pra mim um dos  melhores filmes e livros noir de todos os tempos.

Eu posso até concordar que a partir de Casablanca, Bogart se transformou numa espécie de manual, ou gramática expositiva de como um cara cínico e frio pode conquistar uma garota. Aquele cara que quando quer conquistar moça fala pouco, olha logo no olho e dá-lhe logo um beijo de tirar o ar. Todo mundo da minha geração e na anterior imitou alguma vez o Bogart. Quem não sonhou ser Bogart? Quem não? Fala ai? Andar por ai, entrar num bar ao lado de sujeitos meio sórdidos, meio Peter Lorre, que quando falam contigo, baixam os olhos entre medo e respeito. Puxar uma cadeira e estalar o dedo e pedir para o negão do violão, Flavinho, toca um Belchior aí! Depois vir uma garçonete toda derretida, e perguntar o que você quer… tipo, o que você quer ? (toda derretida).

Posso até concordar, mas o homem estava numa m... danada durante as filmagens. Antes de conhecer Lauren Bacall, mas isso foi bem depois, ele era um especialista em casar mal. Era só chave de cadeia que aparecia na vida do infeliz. Em Casablanca ele estava no terceiro relacionamento. Dizem as más línguas que era um cara muito fiel. Mas esse casamento era disparado o pior de todos, mesmo para um cara fiel e família e que dizia que todas as pessoas nasciam com 2 doses abaixo do normal. Casara-se com uma loura nem tão bonita, mas boazuda, alfabetizada e decotada, Mayo Methot. A.M. Sperber and Erick Lax contam em detalhes como essa vida a dois foi um inferno, não por ela ser má, mas é que depois de ¾ de uma garrafa de whisky, ela ficava um pouco alterada, ciumenta, possessiva, e quando esvaziava as garrafas mirava nos 3 Bogarts que via na frente. Por sorte ela sempre acertava o errado. Não bastasse as brigas em casa, Mayo ia várias vezes ao set de filmagem para arrumar quizumba com a Ingrid Bergman, que na época era casada com um dentista e comportadíssima. 

Em meio a esse inferno, ele tinha talvez, o primeiro papel dele que além de arrogante, cínico, feio, magricela, ele poderia finalmente mostrar que dentro do terno, havia um coração (essa frase ficou piegas, depois eu mudo)

Enfim, outro dia falo só de Humphrey Bogart. O que importa é que ainda não sei por que este filme é tão bom de assistir!

O Moleque

Xilogravura. Título.. Lima Barreto. Woodprint. 11x14". P.A. 1/1

O moleque é um conto irregular, mas muito legal de Lima Barreto. É cinematográfico, alias como quase tudo que ele escreve… vai por mim. O conto fala de bullying, de subúrbio, de religião, de racismo, de ritos de passagem com a beleza da ingenuidade que o cinema somente iria descobrir com neo-realismo italiano.   O narrador já sai de cara citando Elisee Reclus, geógrafo e anarquista militante, que tinha participado da Comuna de Paris. Vai vendo.  E argumenta que os nomes de lugares na Terra dos Papagaios, deveriam manter a grafia Tupy, por exprimirem melhor o sentido das coisas da natureza, tipo a cor da água, as formas dos rochedos nas montanhas, a vegetação e por aí vai. Mas, se você parar para pensar, essa preocupação de Barreto com a memória é política e faz muito sentido, já que  10 … 15 anos antes os republicanos refizeram bandeira, hino, símbolos nacionais, e até quase conseguiram apagar da memória que existiu escravidão na terra Brasil. 

No conto em si, ele vai traçando uma série de correlações geográficas e humanas, dentro do bairro de Inhaúma (!) um dos poucos bairros do subúrbio que na opinião dele guardavam nomes caboclos – subúrbio de gente pobre, cheio de velhas mangueiras, lugar de macumbas e feitiçarias.. Envolvido pela atmosfera da aldeia de Inhaúma, o leitor passa a conhecer o barracão em que mora D. Felismina – uma preta de meia idade, mas já sem atrativo algum - , espírita, mas contrária a bruxaria e ao feitiço. Vai vendo… Mais adiante, D. Emerenciana e Baiana que assim como D. Felismina, negras trabalhadoras que lavam roupas para fora para sobreviver.  José é o personagem central de uma história sem pai por perto. O moleque, em suas incursões à venda suburbana, onde costumava comprar sabão e, à casa dos fregueses nas quais costumava entregar as roupas limpas, é um garoto esperto e está ligado em tudo!  Nesse percurso, o garoto vai topando com uma série de figuras. Uma delas é o Coronel Castor (talvez uma espécie de Conde de Affonso Celso), que oferecera à sua mãe ajuda para que o garoto pudesse freqüentar a escola como os outros garotos de sua idade. Vai vendo….

O conto tem um acúmulo de sutilezas… que vão empilhando pequenas tensões.  Explico: Certo dia, José chega à casa do Coronel Castor chorando, sem querer revelar-lhe por que o fazia. O Coronel oferece-lhe uma fantasia de diabinho – era carnaval ishiquindôlêlê, aquela época do ano em que zera tudo -  em troca do seu segrego. Chegando em casa é recebido com desconfiança pela mãe, que sabia não ter o garoto dinheiro para comprar a fantasia. Um tanto constrangido pela desconfiança demonstrada pela mãe, tenta, ainda nervoso, esclarecer a situação: desejava assustar uns garotos, vizinhos do Coronel, que lhe tinham chamado de moleque, negro, gibi.
 Se esse conto daria um puta roteiro para um filme de neo-realismo (italiano), eu não tenho certeza, mas como sempre, tenho muitas desconfianças… sobre muita coisa…




O Moleque

Reclus, na sua Geografia Universal tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região. No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão eloquentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas.

— Niterói — água escondida.

Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.

Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.

Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.

O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.

Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.

Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho...

Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.

Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.

Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.

Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.

Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo.

E um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por que, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde.

É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.

Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso — o que era preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões históricas.

Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.

A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra que não tem querido guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por elas têm passado, ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene, soberba...

Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.

O "barracão" é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes "a sopapos". É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso "rancho" roceiro, possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dois aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.

Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira.

A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.

O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhora Romualdo, servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com dois filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.

A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:

— Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!

Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas essas raparigas por aí...

Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão — que lhe teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo — não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns "boas-noites", umas flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás — o que encontrasse – para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramilhete.

Todos da rua dos Maricás — era este o nome daquele trilho de Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias à ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe perguntavam quem era:

— Uma vagabunda.

Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era "rica". Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma coisa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua. Tinha "homem" enquanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca — uma menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por "Baianinha". E, ao ir às compras na venda, o caixeiro lhe dizia por brincadeira:

— "Baianinha", tua mãe é negra.

A pequena arrufava-se e respondia com indignação:

— Negra é tu, "seu" burro!

A Baiana, porém, era "rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o espiritismo, frequentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.

Certa vez salvou um dos filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que se emendaria.

Dona Felismina morava com o seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.

Tinha todos os traços de sua raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.

Era-lhe este seu filho o seu braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia à casa do "seu" Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:

— Zeca, vai à venda e traz dois tostões de sabão "regador".

Na venda, entre todo aquele pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitues do parati, como os há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento — entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:

— Caixeiro, "mi" serve já dois tostões de sabão "regador"!

Se o caixeiro estava atendendo à dona Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:

— "Mi despache", caixeiro! dois tostões de sabão "regador".

"Seu" Eduardo, o caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às compras, fazia docemente:

— Espere, menino. Você não vê que estou servindo, aqui, a dona Aninha!

A mãe tinha vontade de pô-lo no colégio; ela sentia a necessidade disso todas às vezes que era obrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a "seu" Frederico, aquele "branco" que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?

À tarde, Zeca descansava, brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.

Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda— Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantemente as "fitas" que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar também.

Como havia de ser uma "fita”? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que tudo aquilo falava?

Podia ter dinheiro para ir, pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...

Zeca, por seu procedimento, pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.

Muitos se interessavam com a mãe, para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único "homem".

Uma vez quase cedeu. O seu" Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:

— Não posso, "seu" coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem que é preciso aprender, saber, mas...

— Você vai lá para casa, Felismina; e não precisa estar se matando.

Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão — uma espécie de protesto de posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe pelas suas necessidades.

Certo dia, em começo do ano, o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.

— Foi tua mãe?

— Não, "seu" coronel.

— Que foi, então, Zeca?

O pequeno não quis dizer e não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.

A atitude do pequeno, a sua recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.

— Dize, Zeca. Dize que eu te darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.

O pretinho levantou a cabeça e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.

Confessou; e Castro nada disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.

Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a roupa branca que estivera a secar.

Atarefada com esse serviço, ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara de "diabo".

Dona Felismina veio para o interior do barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca, distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.

A mãe, ao barulho dos guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:

— Zeca, que é isso?

Uma visão dolorosa lhe chegou aos olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:

— Que é isso, Zeca? Onde você arranjou isso?

— Não... mamãe... não...

— Você roubou, meu filho?... Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você arranjou isso, Zeca?

A pobre mulher quase chorava e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:

— Mas... mamãe... não foi assim...

— Como foi? Diz!

— Foi "seu" Castro quem me deu. Eu não pedi...

Dona Felismina sossegou e o pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:

— Mas para que você quer isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para gente rica, que pode. Enfim...

— Mas, mamãe, eu aceitei, porque precisava.

— Disto! Ninguém precisa disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!

— Eu precisava, sim senhora.

— Como, você precisava?

— Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! — ó moleque! – o negro! — ó gibi!? Não lhe contei?

— Contou-me; e daí?

— Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.

— Que tem uma coisa com a outra?

— Queria amanhã passar por lã e meter medo aos meninos que me vaiaram

Música do dia. Bola de Meia, Bola de gude. Milton Nascimento

Dicas de otimismo em tempos de Pandemia



Tem bem uns cinco anos que estou vivendo aqui, na California, e nesse tempo  aprendo e percebo coisas curiosas sobre o otimismo. Esse lugar aqui tem Santa Barbara, Surfistas, tecnologia, freeways rápidas, Santa Mônica, mulheres peitudas, Hollywood, praias lindas, carros intocáveis, artistas pra caramba, mão de obra barata, poucos casos de Corona, enfim... um lugar que tem tudo para dar certo.  Parece que aqui nunca ninguém se separou, nunca faliu, nunca foi racista, nunca perdeu um ente, nunca foi imigrante, nunca viu um amor acabar, nunca pegou num livro na vida, parece que não tem pobre, nem triste, nem cholo, nem doente, nem velho, nem pessimista.  Tenho a vaga impressão de que aqui não existem pessimistas. Ou se existem, dissimulam sua tristeza com um sorriso embrulhado naquele papel fininho do entusiástico e confiante  "good morning". Preciso deixar claro que sou um pessimista no meio de toda essa gente, e preciso deixar mais claro ainda que isso não me incomoda nem um pouco.

Antes de mais nada, no caso de opinião contraria à minha, é importante que você tenha em mente que a despeito do otimismo reinante, que por mais que você queira  se assumir com um ar de forçada felicidade e jovialidade - farsas, alías, facilmente detectáveis - todos , na minha opinião, são intimamente pessimistas. Inclusive voce, seu/sua idiota, com um sorriso no rosto. Sustento meu argumento com a prática dos retóricos em revogar meu próprio argumento: vivemos, sim, num mundo de pessimistas, por que só é otimista quem acredita no otimismo. E eu tenho um faro danado para identificar idiotas crentes, basta dar três olhadas rápidas no fundo de seus olhos.

Acaso, tenho certeza, que como eu, já provaste, mesmo que por instantes, naquele dia em que acordas com o pé esquerdo, suspender toda essa tola cordialidade que rege tuas relações cotidianas com os demais. Ao invés dela, optas por um modo grave e honesto de mau humor no viver. Nem bom dia dás! Eu mesmo, já o fiz várias vezes, e uma vez, por exemplo, quando  levei Lucíola, minha vira-lata, para desonerar seus intestinos nas redondezas da casa, pela manhã, uma vizinha desejou-me 'bom-dia' com aquela pretensa expressão jovial que imediatamente discerni ser a máscara por trás daquela vida suburbana, amarela, vanilla,  meio merda que ela leva, temporária de seus verdadeiros e angustiantes anelos. Ao invés de retribuir-lhe o mesmo 'bom dia' fiz questão de olhar fixamente nos olhos, como se comunicasse a ela que estava a par de seu segredo. Desde então, essa senhora nunca mais tratou-me com os mesmos ares cordiais, mas ao contrário, tem feito o possível para me evitar  e se me encontra num mesmo ambiente, sempre desvia o olhar.

Esse meu experimento sociológico é vocacional. Funciona. Me faz bem. É terapêutico. Fez-me perceber que todos tendem ao mesmo comportamento de medo e defesa, assim que percebo essa última e delirante forma de esperança, fecho a cara e corto logo o mal pela raiz, pois é comum ao gênero humano o não suportar a realidade. Mas nós, os pessimistas, enfrentamos sérios problemas, também.

Certo dia, encontrei-me utilizando meus métodos com um senhor que me parecia bastante distinto, o qual ao perguntar-me 'qual era o meu problema', deu-me o vislumbre de finalmente ter encontrado alguém cuja visão de mundo compartilhasse da mesma amplitude que a minha, e ao redarguir-lhe com a proposta de que 'dissesse o seu problemas antes', esse distinto senhor quis dar-me um soco bem o meio da cara, tamanho era seu desespero interior. Inapto, pelo provável glaucoma, pela limitação da idade, pelo insucesso do seu jab, e desconhecendo minha admiração por Beethoven e Muhamad Ali, frustrado, apenas desferiu-me palavras de baixo calão: Fuck you! O you, no caso, era direcionado a mim.

Em outras ocasiões, ocorreram situações similares. Uma garotinha, aparentemente feliz com seu pirulito de dez cores, enorme, maior que sua cara, brincando com suas boneca nova, num parque, correu aos prantos na direção de sua mãe, tecnicamente considerada uma milf, quando eu lhe disse que açúcar causa diabetes, e que consequentemente a glicose inchará suas pernas e  limitará  sua visão corroborando para outras comorbidades. Por essas e por outras , passei a ser persona non grata aqui na minha quebrada. Vizinhos atravessarem a rua, quando assoma minha figura dobrando a esquina.

O modo como os otimistas estão por toda a parte, sem encontrar uma única exceção entre eles , é algo deveras assombroso, e sendo eu talvez uma das poucas pessoas no mundo a saber com exatidão de tal fato, eu jamais consigo resistir à tentação em desvelar-lhes o segredo de que não há a mínima certeza em nenhum futuro.

E além do mais, ser pessimista é bem melhor, por que a gente sempre fica feliz: quando acerta e até quando erra.

Música do dia . Ludwig van Beethoven '  Grosse Fuge, Op. 133

A solidão de Stockmann




...apagar o passado recente que nos interpela com seu rol de vigarices e preconceitos, é apagar uma série de eventos e fatos inequívocos que tramaram contra a Democracia desde o dia 2 de dezembro de 2015... por isso eu me pergunto:  por que tanta inquietação contra o Presidente Jair Messias Bolsonaro? Por que só agora? Estranho, não... 

...apagar este passado é insistir, como disse Freud, em que todo o esquecimento é intencional... é apagar a intolerância contra a amplidão dos Direitos Humanos... é apagar o conceito Ditadura, da nossa Ditadura, pelas mesmas razões... é apagar convenientemente o conceito de corrupção das chamadas rachadinhas... é não permitir que um Ministro da Justiça nos contamine com seu insistente falso moralismo... e, por falar em moralismo, é conveniente não esquecer de nosso lixo imoral e da impunidade pelo derramamento de óleo na costa, pela diplomacia entreguista, pelos incêndios na terra dos Amazonidas, pelos 35 milhões de analfabetos funcionais, pelas infecções e mortes decorrentes das epidemias de Chikungunya e dengue, pela morte de Marielle Franco, pelas mortes de líderes camponeses e indígenas, pela retórica vazia de Mandetta e Teich, lobistas do mercado da morte na Saúde Pública, pelos 15% de desemprego,  pelas mortes acumuladas decorrentes de assaltos e balas perdidas, pelos massacres em rebeliões de cadeias, pela criminalização do aborto, pelo desmonte sistemático do SUS e a privatização da saúde, pelos 15 milhões de analfabetos, pela soma de todos os bens produzidos não passar de pífio PIB de 1.9%, pelas milícias policiais e digitais, coordenadas pelo gabinete do ódio, que desestabilizam até as forças armadas, pelo messianismo político, pelo dólar a R$ 5,00, pela reforma da previdência, por vermes como Guedes, Damares, Sales e Weintraub, pela crise sanitária, por 48 milhões de cidadão sem esgoto e água tratada, pelo golpismo escrachado no impeachment de Dilma - que alguns chamaram pedagógico -, e last but no least, pela dispensa criminal de isolamento na pandemia de SARS-CoV-2...

...etc. etc. etc...

.. a lista de tudo que já se sabia há tempos, não tem fim...

Elogio da morte





A Morte do Rubem Fonseca, me fez lembrar de Lima Barreto. Não sei bem por que, não me perguntem, tampouco estou com paciência para análises das associações livres de minhas idéias e devaneios. Freud diz que, na prática da análise, na associação livre de idéias do paciente é impossível não dizer a verdade, inclusive quando nos equivocamos ou tentamos mentir deliberadamente. Isso é coisa que gente muita versada no austríaco, descolada e inteligente, chama de recalque do reprimido. 


Em outras palavras, algumas verdades podem ser ditas, assim meio sem querer, principalmente numa semana em que partem para o outro lado do espelho Garcia Roza, Rubem Fonseca, Moraes Moreira, e que Aldir Blanc anda balançando numa corda bamba. A propósito, para um cara raso como eu, o recalque psiquico, essa coisa de expulsar da consciência o que parece intoleravel,  pode bem estar é no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no risco da pemba, no giro da pomba, no som do atabaque… vai por mim, tá la.


Nota: Se eu pudesse ser um ASPONE[ Assessor de Porra nenhuma] de Deus, eu sugeriria ao Senhor que levasse logo esse tal de Olavo de Carvalho. Vai Oxalá… dá uma força ai… o cara é fumante, só fala merda, e é um cara do mal… vai por mim... o senhor sabe disso…


Mas voltando ao tema, não me parece crível, que nos Compêndios de Literatura Brasileira, coloquem na mesma cumbuca do chamado pré-modernismo Euclides da Cunha que cometeu aquele intragável capítulo A Terra no grandíssimo Os Sertões; Monteiro Lobato, uma espécie de matuto ilustrado com vocação para o lucro e sempre mais político, sempre mais empresário, que escritor;  Augusto dos Anjos, que só por Eu, já o tiraria desse grupo nefasto;  e por fim a tríade Graça Aranha, Raul de Leôni e Simões Lopes Neto  -  que sinceramente nunca li e nunca os lerei por algo que me parece preconceituoso em mim: eu achava que Canaã, seria um livro chato, antes de começar a folheá-lo. Depois tive a certeza de que meu preconceito passou a ser um conceito. Canaã é realmente um treco chato pra cacete! 


Portanto, me fazer tentar crer que Graça Aranha e Simões Lopes Neto possam estar ao lado de Lima Barreto… sinceramente… No cú pardal! Mas nem fodento!


A distância entre o intelectual e a realidade, na escrita do Lima Barreto, assim como na de Rubem Fonseca, está muito acima destes camaradas. Ela é dada por uma espécie de descrença metódica alimentada pelos indicadores da rua. A desconfiança da ação de um cara que transita pelas ruas, como um estranho, trespassado de dúvidas, constatando mazelas, sendo discriminado pelo mercado editorial, no caso de Lima e pela Academia, no caso de Rubem, mostram bem a que vieram os dois no panorama da literatura brasileira: são inclassificáveis pontos fora da curva. 


Dentre as muitas crônicas de Lima Barreto, uma das, talvez não a mais impactante mas muito gráfica, que li há uns 27 anos, seja a Elogio da Morte. Essa crônica é de setembro ou outubro de 1918 (não lembro), portanto 10 anos após a morte de Machado de Assis – e talvez por isso o fechamento dela tal como se dá. Neste mesmo ano, um Lima Barreto de 37 anos, alcoólatra, já com algumas internações, começa uma série de correspondências com o contemporâneo “novo rico”  Monteiro Lobato, que acabara de comprar a Revista do Brasil e que com tremendo faro empresarial se interessava pelo Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá. Lobato prometera que publicaria mais coisas de Lima. Mentiu safadamente. Lima, iludido, se entusiasmara com a ideia e passou a escrever-lhe com frequência. Fazendo inclusive resenhas de escritores iniciantes, promovendo a editora do H. G Wells de Taubaté. Com o tempo, após a primeira publicação, e uma premiação pela Academia Brasileira de Letras, na qual Lima foi barrado anos antes, Lobato passou a ignorar as cartas deste, que morreria 3 anos depois, alcoólatra, abandonado, esquecido, desvalorizado e claro, amargado pelas putarias da vida e do universo literário.



Elogio da morte



Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.

A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.

É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.

É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar..

São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.

Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.

A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.

Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.

Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.

Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.

Ao vencedor, as batatas!