Xilogravura. Título.. Lima Barreto. Woodprint. 11x14". P.A. 1/1
O moleque é um conto
irregular, mas muito legal de Lima Barreto. É cinematográfico, alias como quase
tudo que ele escreve… vai por mim. O conto fala de bullying, de subúrbio, de religião,
de racismo, de ritos de passagem com a beleza da ingenuidade que o cinema
somente iria descobrir com neo-realismo italiano. O
narrador já sai de cara citando Elisee Reclus, geógrafo e anarquista militante,
que tinha participado da Comuna de Paris. Vai vendo. E argumenta que os nomes de lugares na Terra
dos Papagaios, deveriam manter a grafia Tupy, por exprimirem melhor o sentido
das coisas da natureza, tipo a cor da água, as formas dos rochedos nas
montanhas, a vegetação e por aí vai. Mas, se você parar para pensar, essa preocupação
de Barreto com a memória é política e faz muito sentido, já que 10 … 15 anos antes os republicanos refizeram
bandeira, hino, símbolos nacionais, e até quase conseguiram apagar da memória
que existiu escravidão na terra Brasil.
No conto em si, ele vai traçando
uma série de correlações geográficas e humanas, dentro do bairro de Inhaúma (!)
um dos poucos bairros do subúrbio que na opinião dele guardavam nomes caboclos –
subúrbio de gente pobre, cheio de velhas mangueiras, lugar de macumbas e
feitiçarias.. Envolvido pela atmosfera da aldeia de Inhaúma, o leitor passa a conhecer
o barracão em que mora D. Felismina – uma preta de meia idade, mas já sem
atrativo algum - , espírita, mas contrária a bruxaria e ao feitiço. Vai vendo…
Mais adiante, D. Emerenciana e Baiana que assim como D. Felismina, negras trabalhadoras
que lavam roupas para fora para sobreviver. José é o personagem central de uma história sem
pai por perto. O moleque, em suas incursões à venda suburbana, onde costumava
comprar sabão e, à casa dos fregueses nas quais costumava entregar as roupas
limpas, é um garoto esperto e está ligado em tudo! Nesse percurso, o garoto vai topando com uma
série de figuras. Uma delas é o Coronel Castor (talvez uma espécie de Conde de
Affonso Celso), que oferecera à sua mãe ajuda para que o garoto pudesse
freqüentar a escola como os outros garotos de sua idade. Vai vendo….
O conto tem um acúmulo de
sutilezas… que vão empilhando pequenas tensões. Explico: Certo dia, José chega à casa do
Coronel Castor chorando, sem querer revelar-lhe por que o fazia. O Coronel
oferece-lhe uma fantasia de diabinho – era carnaval ishiquindôlêlê, aquela época
do ano em que zera tudo - em troca do
seu segrego. Chegando em casa é recebido com desconfiança pela mãe, que sabia
não ter o garoto dinheiro para comprar a fantasia. Um tanto constrangido pela desconfiança
demonstrada pela mãe, tenta, ainda nervoso, esclarecer a situação: desejava
assustar uns garotos, vizinhos do Coronel, que lhe tinham chamado de moleque,
negro, gibi.
Se esse conto daria um puta roteiro para um
filme de neo-realismo (italiano), eu não tenho certeza, mas como sempre, tenho
muitas desconfianças… sobre muita coisa…
O Moleque
Reclus, na sua Geografia
Universal tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os
nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a
vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas
palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a
altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região.
No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão eloquentes, para traduzir a forma
ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a
significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram
capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da
natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os
nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua
fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi
para nele esconder as suas águas.
— Niterói — água escondida.
Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da
cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui
floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo,
nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram
vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que
viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de
sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas,
que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes
lugares; e são assim bem recentes, relativamente.
Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não
conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter
presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo
tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em
escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em
parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de
hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.
Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras
obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos
monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos
quatrocentos anos.
O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual
repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua
grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.
Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos
edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo
instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras
vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.
Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um
instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho
capricho...
Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o
turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só
isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal
modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes
antecederam.
Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já
viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma
relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua
eternidade.
Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se
apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma
que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas
denominações talvez não durem tanto.
Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles
representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos,
macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um
general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de janeiro vão perdendo
insensivelmente os seus nomes tupis.
Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu
primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo.
E um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa
umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por que, ora são muito
estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem que nelas se
depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais
viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele
abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores,
aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas
redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a
teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos
de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é
pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde.
É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar
das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável,
tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se
comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a
recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já
não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua
eterna e imensa sabedoria.
Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os
mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e
a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus
desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso — o que era
preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas crenças desencontradas a
que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o
espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas
práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos
religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes
misturas as maiores religiões históricas.
Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades
presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma
dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada
instante de suas necessidades.
A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as
lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra que não tem querido
guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por elas têm passado,
ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das
atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos
cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre,
clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para
tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a
serra dos Órgãos, solene, soberba...
Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo
rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás
que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona
Felismina.
O "barracão" é uma espécie arquitetônica muito curiosa
e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana
de sapê e de paredes "a sopapos". É menos e é mais. É menos, porque
em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é
mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes
são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços
de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso "rancho" roceiro,
possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a
vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes;
mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com
dois aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só
possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado
da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo
cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem
soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso,
provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse
dos ovos.
Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore
de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma
laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a
não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes;
e, às vezes também, uma touceira de bananeira.
A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e
outros arbustos silvestres e tenazes.
O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da
vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos da primeira espécie. Dona
Emerenciana era casada com o senhora Romualdo, servente ou coisa que o valha em
uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e
honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca,
com dois filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais
modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.
A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:
— Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!
Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria. Com
os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua
história devia ser a triste história de todas essas raparigas por aí...
Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas
as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do
Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão — que lhe teria custado, quem sabe!
que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo — não se esquecia
nunca de colher pelo caminho uns "boas-noites", umas flores de
melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás — o que
encontrasse – para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramilhete.
Todos da rua dos Maricás — era este o nome daquele trilho de
Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias à
ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse
ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda,
com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe
perguntavam quem era:
— Uma vagabunda.
Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até
de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para
fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da
Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo
algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo
o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia
uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e
virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde
crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era
"rica". Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos,
casa que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar
alguma coisa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua. Tinha
"homem" enquanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la
mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía
uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua
vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu,
encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca — uma
menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era
conhecida por "Baianinha". E, ao ir às compras na venda, o caixeiro
lhe dizia por brincadeira:
— "Baianinha", tua
mãe é negra.
A pequena arrufava-se e
respondia com indignação:
— Negra é tu,
"seu" burro!
A Baiana, porém, era
"rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais
próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e
procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de
um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em
casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os
macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o
espiritismo, frequentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo
colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da
medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos
homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios
preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.
Certa vez salvou um dos
filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a
prometer que se emendaria.
Dona Felismina morava com o
seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o
olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e
também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.
Tinha todos os traços de sua
raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que
quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.
Era-lhe este seu filho o seu
braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez
anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele
não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a
roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas;
sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia à casa do "seu" Carvalho,
ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada,
a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua
mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:
— Zeca, vai à venda e traz
dois tostões de sabão "regador".
Na venda, entre todo aquele
pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros,
carvoeiros, de passagens; habitues do parati, como os há na cidade de chope;
conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive,
mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou
nascimento — entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:
— Caixeiro, "mi"
serve já dois tostões de sabão "regador"!
Se o caixeiro estava
atendendo à dona Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha
atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:
— "Mi despache",
caixeiro! dois tostões de sabão "regador".
"Seu" Eduardo, o
caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão
às compras, fazia docemente:
— Espere, menino. Você não
vê que estou servindo, aqui, a dona Aninha!
A mãe tinha vontade de pô-lo
no colégio; ela sentia a necessidade disso todas às vezes que era obrigada a
somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a
"seu" Frederico, aquele "branco" que fora colega de seu marido.
Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem
havia de fazer-lhe as compras?
À tarde, Zeca descansava,
brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto
da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja
fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.
Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão
que o pai deixara, na Caixa dos Guarda— Freios, o seu sonho não era viver no
centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis,
carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de
Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe
instantemente as "fitas" que os grandes cartazes anunciavam e o
tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra
criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do
fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a
olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes
figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo
aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez
não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de
casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe
adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema
brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a
passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do
divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar
também.
Como havia de ser uma
"fita”? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas?
Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é
que tudo aquilo falava?
Podia ter dinheiro para ir,
pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro;
mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para
a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam.
Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia
havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não
o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...
Zeca, por seu procedimento,
pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam
gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.
Muitos se interessavam com a
mãe, para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse
vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos
seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único
auxílio, o seu único "homem".
Uma vez quase cedeu. O
seu" Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em
Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas,
viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua,
bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e
expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:
— Não posso, "seu"
coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem
que é preciso aprender, saber, mas...
— Você vai lá para casa,
Felismina; e não precisa estar se matando.
Titubeou a rapariga e o
velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na
gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à
sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão — uma espécie de protesto de posse
contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da
recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais
enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca deixou de
interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a
sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para
que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada
simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das
filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe
pelas suas necessidades.
Certo dia, em começo do ano,
o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada.
Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio,
não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à
mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel
interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.
— Foi tua mãe?
— Não, "seu"
coronel.
— Que foi, então, Zeca?
O pequeno não quis dizer e
não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar
toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como
ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo
dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na
cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a
ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.
A atitude do pequeno, a sua
recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que
o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade,
procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre,
tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.
— Dize, Zeca. Dize que eu te
darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.
O pretinho levantou a cabeça
e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido
agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.
Confessou; e Castro nada
disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.
Aproximou-se o Carnaval; e,
quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a
roupa branca que estivera a secar.
Atarefada com esse serviço,
ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um
embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam
recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara
de "diabo".
Dona Felismina veio para o
interior do barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca,
distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá
fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de
pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de
olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão
amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.
A mãe, ao barulho dos
guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:
— Zeca, que é isso?
Uma visão dolorosa lhe
chegou aos olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos...
Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:
— Que é isso, Zeca? Onde
você arranjou isso?
— Não... mamãe... não...
— Você roubou, meu filho?...
Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você
arranjou isso, Zeca?
A pobre mulher quase chorava
e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava,
titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:
— Mas... mamãe... não foi
assim...
— Como foi? Diz!
— Foi "seu" Castro
quem me deu. Eu não pedi...
Dona Felismina sossegou e o
pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:
— Mas para que você quer
isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é
para gente rica, que pode. Enfim...
— Mas, mamãe, eu aceitei,
porque precisava.
— Disto! Ninguém precisa
disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!
— Eu precisava, sim senhora.
— Como, você precisava?
— Não lhe contei que há
meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante
do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! — ó moleque!
– o negro! — ó gibi!? Não lhe contei?
— Contou-me; e daí?
— Por isso quando o coronel
me prometeu a fantasia, eu aceitei.
— Que tem uma coisa com a
outra?
— Queria amanhã passar por
lã e meter medo aos meninos que me vaiaram
Música do dia. Bola de Meia, Bola de gude. Milton Nascimento
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