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LUIZ PACHECO

 


Título: Luiz Pacheco
Dimensões: 9x9cm
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Maio de 2022
 
 
Luiz José Gomes Machado Guerreiro Pacheco foi um poeta surrealista, editor, crítico literário, enfim um comunista e grande polemista, de quem se disse quase tudo de mal e feio, enquanto vivo e depois de morto. Nasceu em Lisboa a 7 de maio de 1925. Era filho único de uma família de classe média de origem do Alentejo, o pai era funcionário público e músico amador. Na juventude, Luiz Pacheco teve alguns envolvimentos amorosos com mulheres menores de idade, o que o levaria por duas vezes à prisão.
 
Estudou no Liceu Camões e frequentou o primeiro ano do curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa. A partir de 1946, trabalhou como agente fiscal da Inspeção Geral dos Espetáculos, acabando por se demitir, por ter se cansado do trabalho. Essa inconstância juvenil o acompanhou por quase toda sua vida, conformando a trajetória de sua existência atribulada. Cada vez com mais filhos e sem meios de subsistência para sustentar as famílias já numerosas e crescentes - que ao todo foram 8 filhos de 3 mães adolescentes - chegou mesmo a viver em alguns momentos às custas de esmolas, hospedando-se em quartos alugados e indo parar à fila da Sopa dos Pobres.

A partir de 1945 começa a fazer alguns amigo  e inimigos quando começa a publicar diversos artigos em vários jornais e revistas, como O GloboBlocoAfinidadesO VolanteDiário IlustradoDiário Popular e Seara Nova. Em 1950, funda a editora Contraponto, onde publica escritores como José Cardoso Pires, Maria Lisboa, Raul Leal dentre muitos outros de quem, inclusive, conseguiu ser amigo.

Foi sempre muito próximo dos surrealistas portugueses e verdadeiramente o seu primeiro e apaixonado editor. A relação começa por volta de 1953 quando publica o Manifesto Surrealista “Afixação Proibida”. O crítico João Gaspar Simões chamou-o de "sacristão do surrealismo", se tornando amigo íntimo de António Maria Lisboa e de Mario Cesariny, que mais tarde cortaria relações com Pacheco por desavenças intelectuais, mas que de fato se deviam à questões paralelas. Quando em 1959 Cesariny troca a Contraponto pela Guimarães Editores, o caldo entorna. Pacheco sente-se traído e aproveita a ocasião de uma exposição de pinturas de Cesariny para escrever um artigo “Cesariny ou do Picto-Abjeccionismo” onde expões 3 razões para se detestar as pinturas de Cesariny, dentre elas, acusações de que se vendera ao Mercado, e de que a obra não passaria de um bluff surrealista, o que a geração atual talvez chamasse de fake. A briga se prolonga por alguns anos e Cesariny. O espólio dessa guerra é recolhido por um Pacheco com faro de editor, para publicar em 1974 o volume Pacheco vs Cesariny. Cesariny por sua vez funda o jornal O Gato, onde revela implicações sobre a suposta homossexualidade de Pacheco. Fato que Pacheco jamais perdoaria em Cesariny, e sempre que tinha a oportunidade de soltar algum veneno contra o antigo desafeto o fez, mesmo depois da morte de Cesariny.
 
Abrasivo, Pacheco era um homem sem filtros no melhor estilo das personalidades encrenqueiras e bipolares. Um crítico furioso, mas com uma lucidez provocadoramente genial. De sua boca saíram pérolas de insultos que muitos já até chegaram a pensar, mas pouquíssimos teriam a coragem sequer de dizer a primeira sílaba de seus pejorativos. Para ele, o escritor Fernando Namora era menor que um cão, Saramago deveria ter parado de escrever em “Memorial do Convento”, Inês Pedrosa era uma estúpida, Natália Correia uma devassa, e Cesariny, por alguns anos um dos seus melhores amigos literários, era um poeta de urinóis. Mais direto, corrosivo e politicamente incorreto, impossível.
 
Com Herberto Helder chegou quase às vias de fato. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, Helder havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo nosso bom e velho safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que agora decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.
 
Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o velho Pacheco, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. E realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns, e outros dizem até que rindo de toda aquela situação.
 
Pacheco era alto, magro, careca, usava óculos de lentes grossas decorrente de fortíssima miopia. Beberrão, porém hipersensível ao álcool desconcertava-se facilmente. Além do mais, era um inveterado hipocondríaco, o que lhe dava um ar compassivo pela sua asma crônica e caricato por vestir roupas usadas e andrajosas, ao mesmo tempo.
A sua obra literária, constituída por pequenas narrativas e relatos (nunca se dedicou ao romance ou ao conto) tem um forte pendor autobiográfico e libertino, inserindo-se naquilo a que ele próprio chamou de corrente "neo-abjeccionista". Em O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor (escrito em 1961), texto emblemático dessa corrente e que muito escândalo causou na época da sua publicação (1970), narra um dia passado numa Braga fantasmática e lúbrica, e a sua libertinagem mais imaginária do que carnal, que termina de modo frustrantemente num onanismo solitário.
Excêntrico, em 1989, Luiz Pacheco tornou-se militante do PCP, segundo o próprio afirmou em entrevista, "para ter um enterro igual ao de Ary dos Santos". Morreria 19 anos depois, sem a mesma pompa de Ary. Passou os últimos anos fisicamente debilitado, quase cego em decorrência de uma catarata, na casa de um filho, e posteriormente passaria por quatro lares de idosos na cidade de Montijo. Morreu a 5 de Janeiro de 2008, a caminho do hospital de Montijo.
 
 


ANTÔNIO GANCHO

 



Título António Gancho
Dimensões: 9x9cm
Data: junho de 2022
Técnica: xilogravura
 
António Luís Valente Gancho foi um poeta português, nascido EM 1940, na Rua dos Touros, n.7, em Évora. Poucos mais do que alguns episódios erráticos se sabe de sua infância. Sabe-se, por exemplo, que a família muda-se de Évora para Lisboa em 1957, quando o rapaz tinha 17 anos, e que teve um certo amor não correspondido no Liceu, por uma tal Gisela. Sabe-se que a avó morreu no ano de 1972, quando este já estava ingressado em instituições psiquiátricas, e que a após a morte do irmão não voltou mais a escrever. E não muito mais se sabe deste homem que é poeta.

Vítima das misérias institucionais do Estado e até mesmo de abuso psiquiátrico, António Gancho viveu desde seus 28 anos, em instituições psiquiátricas, internado primeiramente no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos após uma tentativa de suicídio, e, a partir de 1967, definitivamente na Casa de Saúde do Telhal, uma instituição psiquiátrica pertencente à Ordem Hospitaleira São João de Deus, na região de Sintra. Aí morreria o poeta em 2 de Janeiro de 2006. Foram 38 anos de sua vida em tais manicômios.

Afastado forçosamente da convivência editorial devido ao seu internamento, foi através do contacto com alguns amigos dentre os quais se destacam Álvaro Lapa, Ernesto Sampaio, António Palolo e Mário Cesariny, que frequentavam o mítico Café Gelo, e que eram ligados ao grupo dos surrealistas, que a sua produção chegou às mãos de um editor. Foi Álvaro Lapa, pintor e escritor, seu conterrâneo de Évora e frequentador do mítico Café, quem arranjou um editor quando o poeta disse que tinha um livro para publicar.
A poesia de António Gancho permaneceu inédita até 1985, data em que Herberto Helder reuniu, na sua antologia Edoi Lelia Doura, onze poemas do autor até então completamente desconhecido. Helder convidou-o para com uma seleção de 11 poemas em sua antologia Edoi Lelia Doura das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 1985).

Posteriormente viriam dois livros O Ar da Manhã, de 1995, com toda a sua poesia reunida desde a década de 1960 até 1985, e As Dioptrias de Elisa de 1997. Para os que queiram se iniciar na poesia de Gancho, O ar da Manhã é um livro interessante, dividido em três conjuntos autónomos de poemas («Gaio do Espírito», 1985/86, «Poesia Prometida», 1985, e «Poemas Digitais», 1989). Trata-se de uma série de poemas que ora, exploram um jogo de palavras e sentidos que permitem quase uma materialidade sonora que ocorre em «Route / Rota / Caminho puro e são / Chanção / Coração / Sahara / Uazara / Oasara / Oasimara», ora traçando uma interessante intertextualidade com outros autores, como quando faz um tributo a François Villon e Oscar Wilde, escrevendo poemas em seus idiomas originais. Tais poemas provam que dominava do idioma francês e do inglês. 

Por vezes imprimia uma lucidez obscura, noturna, talvez decorrente dos sofrimentos e privações em instituições psiquiátricas, “Noite, vem noite sobre mim sobre nós/ dá repouso absoluto de tudo/ traz peixes e abismos para nos abismarmos/ traz o sono traz a morte…” 
 

 


MAURA LOPES CANÇADO

 



Título Maura Lopes Cançado
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: xilogravura


Filha de José Lopes Cançado e Affonsina Álvares da Silva, Maura foi a nona entre onze filhos. Nasceu a 27 de janeiro 1929, na próspera fazenda de seus pais em Minas Gerais, no atual município de São Gonçalo do Abaeté. Oriunda de uma família católica, não necessariamente mais rica, mas uma das mais aristocráticas mineira, Maura descendia de figuras históricas com forte influência e destaque na política mineira e nacional, sobressaindo o nome de José Maria Lopes Cançado - primo do pai de Maura -, um dos parlamentares participantes da Constituinte de 1946. A mãe de Maura, por sua vez, é descendente de Dona Joaquina Pompeu, latifundiária e mítica escravocrata na história mineira. Assim, cresceu com uma difusa sensação de que nem tudo é tão difícil como parece na vida.

Filha temporã, sua infância foi cercada de cuidados intensos, por apresentar uma saúde muito frágil. Um ambiente opressivo, onde tinha inveja da irmã mais nova, Selva, por exemplo, por esta poder usar um chapéu vermelho. Principalmente, por que a mãe tinha feito uma promessa de vesti-la apenas de azul e branco, cores da Nossa Senhora, enquanto o pai não permitia que se lhe cortassem os cabelo. A promessa tinha prazo de validade: até que completasse 7 anos. Mas justamente quando deixou de usar as cores, coincidência ou não, ela teve a primeira crise epilética.

Sua imaginação sempre foi intensa fabulando versões de sua própria vida. Contava às amigas de infância que era filha de russos e que um seu tio nascera na China. Aos 14 anos quis estudar alemão para ser espiã nazista, e voar.

Em tempos de estudante, frequentou as boas escolas de elite mineira, tendo por um período estudado em colégio interno em Patos de Minas.  Aos quatorze anos começou a frequentar o aeroclube de Bom Despacho com a intenção de tirar o brevê de aviadora. Ali conheceu o jovem de dezoito anos com quem iria se casar, Jair Praxedes, filho de um coronel do exército, de quem engravidou logo após o casamento, realizado apenas no religioso, dando à luz um menino Cesarion - mesmo nome do filho de Cleópatra e Júlio César. A relação durou doze meses. O casamento terminou quando tinha apenas quinze anos de idade, ano também marcado pela morte do pai.

Anos mais tarde a escritora descreveria sua passagem da infância para a  adolescência como “superangustiada”, cercada por pesadelos, tanatofobias, ataques de epilepsia, e, segundo relatou no Hospício é Deus, foi abusada sexualmente três vezes por empregados da família. Sobre o breve casamento, Maura admitiu que, durante o curto tempo de matrimônio, no fundo em quem pensava mesmo, sexualmente falando, era no coronel Praxedes, seu sogro, “maravilhoso, alto, imponente e importante”.

Com o filho ainda bebê, a mãe a presenteia com um pequeno avião, um Paulistinha - mesmo sabendo que a filha era epilética -, no qual coloca o nome de “Cesarion”, mas pouco tempo depois, o avião estava completamente destruído num pouso forçado de emergência. Foi então para Belo Horizonte para concluir seus estudos, mas o fato de ser jovem, mulher, divorciada, nos anos 1940, não reverberava bem no tradicional costume mineiro.  Com essa espécie de estigma, por ser uma mulher divorciada, perambulou de pensionato em pensionato, até poder se hospedar num luxuoso hotel na cidade. Morando sozinha, estudando duas ou três línguas, passou a frequentar a boemia de Belo Horizonte. Saía muito, fumava, bebia e frequentemente se divertia com esses novos amigos, até que em 1949, aos vinte anos, quando se descreveria como nervosa, doente, magra e sem sono, Maura se interna pela primeira vez na Casa de Saúde Santa Maria, uma clínica psiquiátrica, na capital de Minas Gerais. 

O fato é que Belo Horizonte ficara pequena para essa mulher que pensava e se comportava à frente de seu tempo. Sem perspectivas, decidiu então viver no Rio de Janeiro, aos 22 anos, não sem antes, no final dos anos de 1950, internar-se no Hospital Gustavo Reidel, no Engenho de Dentro. Se dizia uma mulher bonita e com uma inteligência acima do normal. 

Quando começa a se aproximar de jornalistas do Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã já se percebia uma personalidade sedutora e explosiva. Em menos de 7 anos já teria alguns polêmicos contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, passando a conviver e a beber com intelectuais e escritores como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Reynaldo Jardim.

Os ventos iam de encontro a Maura, pois coincidentemente o Suplemento Dominical tinha aberto espaço para essa nova geração de escritores, jornalistas e críticos que ainda contava com Ferreira Gullar, Mário Faustino, Clarice Lispector e José Louzeiro.  alguns destes  se tornariam platéia cativa para as histórias fantásticas de Maura.

Para se ter uma idéia da influência deste caderno do Jornal do Brasil, a arte de vanguarda tinha seu lugar de discussão no Suplemento Dominical, onde, entre outras coisas, o poeta Mário Faustino assinava a revolucionária página “Poesia-Experiência” e onde também foi publicado, em 1959, o famoso Manifesto Neoconcreto.

Quando o jornalista Sebastião de França, que morava na mesma pensão de Maura, nas proximidades da rua Riachuelo, trouxera o original de um poema para o parecer de Assis Brasil junto a uma advertência, “ela é maluca e bipolar," Assis responde: “Então somos dois”.

Aprovado pela editoria, o poema sai na primeira página do Suplemento Dominical em 24 de agosto de 1958,  ao lado de um artigo e um outro poema:   O artigo era da temida Barbara Heliodora sobre a visita do ator e teatrólogo Alessandro Fersen, e sua montagem Il Diavolo Peter, no Brasil. O poema ao lado, era de um poeta amazonense, o bissexto  Antisthenes Oliveira Pinto, um dos articuladores do Clube da Madrugada manauara.

No período em que colaborou com esses jornais, teve sucessivas crises que a levaram a hospitais psiquiátricos, sendo que boa parte dessas internações foram voluntárias. Uma das primeiras dessas crises mais evidentes acontece justamente quando da publicação de “No quadrado de Joana”, conto publicado na primeira página do SDJB, onde a personagem catatônica, obsessiva, anda em linha reta, sem parar, pelo pátio quadrado de um hospício. Na ocasião, Maura agradece tão exageradamente a Reynaldo Jardim, que o episódio é narrado da seguinte forma pelo jornalista José Louzeiro, colega de Maura no Suplemento Dominical, “Ela ficou tão surpresa que no dia seguinte, nós estávamos na redação – era uma redação só para o suplemento, um espaço muito bem iluminado, o chão muito cheio de sinteco –, ela se atirou no chão pra agradecer o Reynaldo Jardim, de joelhos. Escorregou, esfolou os dois joelhos, nos deu um trabalho… Tivemos que levar Maura na farmácia pra remendar o joelho, ficou todo esfolado. Essa era a Maura.”

Segundo Carlos Heitor Cony, este foi o início de uma série de contos magistrais. Cony declarou certa vez que a comparavam a Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. “Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura”, conclui Cony.

Maura se tornou escritora revelação de 1958 quando publicou em 16 de novembro “No quadrado de Joana”. Um conto que traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício, conto, inclusive, que chega a ser elogiado por Clarice Lispector. No ano seguinte publica 3 contos no Suplemento Dominical, "O Rosto" em 19 de abril, "Introdução a Alda" na edição de 22 de agosto e "O Sofredor do ver" em dezembro do mesmo ano. No ano de 1961 publica "Rosa recuada" em maio, e em julho publica um de seus mais tocantes contos, "Espiral ascendente", que traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia, a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre -  tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra e ameaçou jogar-se de uma cachoeira.  Uma situação que lembra bem o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud no limite da fronteiras da sanidade, entre a arte e a vida. Outros 2 contos, "A menina que via o vento" e "Espelho morto" seria publicados respectivamente em dezembro de 1964 e novembro de 1965. 

Já, tanto nesses primeiros contos, como em seu primeiro livro Hospício é Deus, apresentava uma escrita diferente. Uma preferência pela técnica narrativa da autoficção, permeada por uma veia confessional.  Não por acaso o crítico Assis Brasil, um dos poucos, senão o único crítico renomado a analisar seu livro de contos, a considerava uma revelação literária da virada dos anos 50 para os 60.

Ainda trabalhando na redação do Jornal do Brasil, tinha surtos bipolares. Num dos episódios de extrema agressividade, Maura atirou uma máquina de escrever pela janela da redação do JB. Também chegou a jogar uma estante sobre um colega sem nenhum motivo aparente. Reconhecendo sua própria fragilidade se internou voluntariamente, em 1959. Internou-se no Hospital Gustavo Riedel do Engenho de Dentro, ficando entre outubro de 1959 e março de 1960.

Nesse período, já com 30 anos. Por sugestão de Reynaldo Jardim, escreveu o diário que viria a ser publicado cinco anos mais tarde como O hospício é Deus: diário I, publicado em 1965, enquanto os contos que haviam sido lançados no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã viriam a ser publicados na coletânea O sofredor do ver, seu segundo e último livro com uma coleção de contos, em 1968.

Em O Hospício É Deus, descreve a infância passada na fazenda e analisa os precoces embates em seu mundo interior. As expressões e modo de narrar, denotam o contexto opressivamente religioso e católico que a obrigara a usar azul e branco até os 7 anos de idade. Denuncia os abusos sofridos por Maura e outros pacientes no Gustavo Riedel e foi um marco na luta antimanicomial:
Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providencias para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. […] o professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”.

Os diários teriam supostamente uma segunda parte que foi esquecida por José Álvaro, editor do livro, dentro de um táxi. Nunca foi encontrada. 

Após este período de internação,  já passava por dificuldades financeiras, dividindo apartamento na rua Riachuelo com uma bailarina e trabalhando como escrevente datilógrafa no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Permaneceu nesse trabalho, como funcionária pública, por oito anos, sempre entre uma licença e outra para se internar ainda às custas do IPASE, o extinto Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado.
Já nos anos 1970, estava num estado de completa pauperização. Dependia da ajuda de amigos e de seu incansável filho, Cesarion, agora com 27 anos. Ele a acompanhava e custeava as internações, algumas pela via de convênios médicos.

Segundo Carlos Heitor Cony, quando calma, era uma mulher “doce, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.”  

Numa dessas internações, na noite de 11 de abril de 1972, Maura, recolheu-se à noite para dormir. Cerca de três horas depois, foi até o consultório médico, dizendo a uma funcionária que havia matado uma das pacientes, que se encontrava na enfermaria do Hospital Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma jovem grávida, morta por estrangulamento, com uma faixa de pano rasgada de um lençol. O médico plantonista relatou que Maura assumiu a responsabilidade pela morte da jovem paciente.
Maura foi julgada pelo Tribunal do Júri e, em 15 de outubro de 1974. Foi considerada inimputável - incapaz de responder ao caráter criminal dos fatos cometidos. O juiz aplicou uma medida de segurança de internação em um estabelecimento psiquiátrico judiciário com uma duração de seis anos.

Nesta época, o manicômio judiciário do estado do Rio de Janeiro não aceitava mulheres e as clínicas e hospitais psiquiátricos particulares se recusavam a recebê-la. Maura foi então enviada à Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, onde ficaria por 6 anos.

A jornalista Margarida Autran encontrou a escritora em julho de 1977 no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito. Encontrou-a abandonada, numa cela imunda, infestada de percevejos. A jornalista a descreve como uma mulher envelhecida, desnutrida, parcialmente cega e com dentes podres, sem nenhum acompanhamento psiquiátrico. O banho de sol lhe era negado, por seu comportamento constantemente irascível, e seu único contato com o mundo era um radinho de pilha. Por meses ninguém a visitava. José Louzeiro e outros amigos do Sindicato dos Escritores do Município do Rio de Janeiro, compadecisdos, se prontificaram, à época, a pagar uma clínica psiquiátrica e a operação de cataratas, tendo votado a enxergar. Mas depois de seis anos de reclusão no hospital psiquiátrico, Maura foi solta em 1980, passando por várias outras clínicas nos 13 anos seguintes, sem nunca mais voltar a escrever.

Nos últimos anos, com a saúde debilitada pela asma e por não aceitar parar de fumar, passou a ser constantemente internada no Centro de Terapia Intensiva. Em 19 de novembro de 1993, Maura faleceu vítima de insuficiência respiratória decorrente de “doença pulmonar obstrutiva crônica”, aos 64 anos de idade, no Rio de Janeiro (RJ)
“Morreu esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas particulares”, escreveu Carlos Heitor Cony (1916-2018), em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo em junho de 2007.

No mesmo ano, Flávio Moreira da Costa organizou no Brasil a obra “Os melhores contos de loucura”, na qual é a única escritora mulher, que ainda estaria na expectativa de ser revisitada. Em 2011, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil reeditou pela primeira vez a íntegra do livro “O sofredor do ver” que possuía apenas uma edição conhecida e muito rara datada de 1968.



CAMILO PESSANHA

 



Título Camilo Pessanha
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Camilo de Almeida Pessanha, conhecido como Camilo Pessanha, nasceu em Coimbra, Portugal,
no dia 7 de setembro de 1867. Filho de Antônio de Almeida Pessanha, um estudante do terceiro ano de Direito, e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira, uma empregada de sua casa. Mesmo que a relação nunca tenha sido oficializada, o casal teve 5 filhos três homens e duas mulheres.

Camilo Pessanha viveu pouco tempo de sua infância em Coimbra, para onde retornaria apenas para terminar seus estudos secundários e ingressar na faculdade em 1884. O pai, recém formado, era transferido constantemente de postos. Inicialmente como juiz itinerante para os Açores, na Ilha de São Jorge, permanecendo ali por alguns anos, e depois para Lamego, região do Douro, onde Camilo Pessanha teve sua instrução primária, e em seguida estudou no Liceu Central de Mondego. Curiosamente, o pai só o veio a perfilhar para efeitos burocráticos de ingresso na Universidade de Coimbra.

Durante o período acadêmico, teve uma carreira satisfatória, mas teve que interromper os estudos por dois anos. Nos sete anos, entre o ingresso e a formatura, que passou na Universidade de Coimbra, experimentou a poesia e a vida boêmia, o que refletia em sua saúde. Neste período começou a colaborar com alguns jornais da época, publicando seus poemas em revista e jornais, entre eles, “A Gazeta”, “A Crítica”, de Coimbra e o “Novo Tempo”, de Mangualde. Nas férias, tentava se restabelecer, na casa da família, na Quinta de Marmelos, em Mirandela. Alguns de seus poemas foram publicados nas revistas “Ave Azul” e “Centauro”.  

Em 1891, concluiu o curso de Direito. No ano seguinte passa em quarto lugar, em concurso público de 50 vagas, e é nomeado Procurador Régio de Mirandela. Dois anos depois vai para Óbidos, onde advoga, ao lado de seu grande amigo Alberto Osório de Castro, até 1894. Data deste período a mítica que o segue: Devido a uma desilusão amorosa, justamente pela suposta paixão não correspondida por Ana de Castro Osório, irmã de seu melhor amigo, decide largar tudo e ir embora para Macau. Nas cartas trocadas entre Camilo e Ana, há uma sincera cumplicidade, mas não verdadeiramente algo que se possa chamar amor. Uma declaração comovente sobre sua vida, suas dificuldades e a doença da mãe, que sofria dos nervos. Decidido por partir, concorre, então, a uma vaga de professor de filosofia no recém criado Liceu de Macau. O concurso, aprovação e partida acontece em menos de seis meses.

Nunca voltou para Portugal, ao menos definitivamente. Mas retornava frequentemente para passar férias e outras vezes por motivos de sua frágil saúde. Nessas vindas e passagens por Portugal, por vezes a pretexto de tratar da saúde, sempre que podia as prolongava. Dividia suas estadas entre uma quinta da família perto de Braga, e em Lisboa, hospedava-se no Hotel Francfort, no Rocío, onde era frequentador assíduo da boemia do café Martinho e da cervejaria Trindade.

Na primeira vez que volta a Portugal, dois anos após a partida fica na quinta da família, mas consultas médicas o levam a Lisboa. Uma oportunidade excelente para conviver com a intelectualidade lisboeta. Numa destas estadas, acabou conhecendo Fernando Pessoa -  que aprendera e memorizara suas poesias. Retornado a Macau, depois de sua segunda estada em Portugal, é nomeado como Conservador do Registro Predial, cargo que exerceria paralelamente às aulas do Liceu.

Supostamente, nessa vinda de 1896, deixara um filho em Macau recém-nascido de data incerta, cuja a mãe era supostamente uma concubina – a quem ele tinha comprado de um comerciante chinês. Nesse intervalo de 3 anos, visita novamente Portugal. E somente iria perfilhar o filho João Manuel de Almeida Pessanha  em 24 de Agosto de 1900. Consta em cartório que teve como testemunhas  dois colegas do Liceu, João Pereira Vasco e Mateus António de Lima. Ou seja, Camilo, que somente foi reconhecido como filho tardiamente, fez o mesmo com o filho, sendo que supeita-se ainda que o pai de Camilo também era um filho bastardo.

Não se sabe ao certo quando se tornou maçom, nem em que período da vida em Macau viciou-se na neurose do ópio. No trabalho, diziam que era um tanto desleixado em seu dia a dia, mas mesmo assim foi nomeado Juiz de Direito Substituto em 1904. No ano seguinte, adoece gravemente, e volta a Portugal em estado bastante grave, apenas regressando a Macau em 1909. Neste meio tempo, instala-se na quinta de um primo, nos arredores de Mirandelo, para recuperar sua saúde frágil, já a essa altura bastante tomada pelos efeitos do ópio e suas abstinências. Sabe-se ao certo que foi por conta de João de Castro Osório e da própria Ana de Castro que seus poemas tomaram materialidade, já que declamava-os de memória sem ter manuscritos. Na empreitada, ambos conseguiram transcrever 30 poemas, que em 1920, graças a seu primo João de Castro Osório, que preparou os manuscritos, e Ana de Castro Osório  - a mesma que tinha recusado seu pedido de casamento -   que cuidou da edição final dos papéis, nasce “Clepsidra”, o livro de poesia que o imortalizou.

Na terra a que um dia chamou de “o chão antipático do exílio”, aprendeu a falar cantonense, traduziu poemas da dinastia Ming e foi um colecionador de arte oriental.Tinha muitos serviçais e concubinas, e não se furtava, muitas vezes de deixar-se fotografar como um mandarim magro, vesgo e viciado em ópio. Quando a mãe de seu filho João Manuel de Almeida Pessanha morreu, deixara dois filhos. João e uma menina, a quem chamaria anos mais tarde “Àguia de Prata”  -  e que tomaria em todos os sentidos o lugar da mãe na vida do poeta.

Figura proeminente na vida pública, Pessanha era chamado constantemente para proferir conferências em cerimônias oficiais do Estado Português, onde  os altos estamentos da burocracia colonial, de certo modo, faziam vista grossa para suas concubinas, e o vício do ópio. Mas isso era longe, do outro lado do mundo. Em suas estadas em Portugal, sem o ópio, bebia radicalmente, e com isso aumentava a imagem de poeta maldito de alma inquieta, viajando de forma intensiva para a colônia do Oriente.

Quando morreu, deixou a maior parte de seus bens para companheira e enteada, Kuoc Ngan Yeng, conhecida como “Águia de Prata”, em detrimento do filho -  nesse caso, seu irmão - João Manuel Pessanha.

No Cemitério de São Miguel Arcanjo, em Macau, encontra-se uma singela campa, onde repousam os restos mortais de Camilo de Almeida Pessanha, falecido em 1 de Março de 1926. Ao lado de Augusto Gil, Raul Brandão e Antônio Nobre, outros autores que também se destacaram no Simbolismo português, Camilo Pessanha virou nome de rua e seu rosto magérrimo de olhos cruzados, foi bastante amenizado na sua figura estampada nas notas de 100 patacas macauenses, por muitos anos.


GRAMIRO DE MATOS

 


Título Gramiro de Matos 
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

É como se para um poeta fosse um grande azar ter nascido na terra de Gregório de Matos, Caetano e Dorival Caymmi. É muito complicado se falar de um poeta baiano desconhecido, maldito e esquecido, mas Ramiro Silva Matos Neto nasceu em uma pequena cidade do interior da Bahia, Iguaí, em março de 1944. Filho de Izaias Rocha de Matos, um construtor de casas e pintor naif e Anália Silva Matos, fez o curso primário em sua terra natal, transferindo-se para Vitória da Conquista – BA, onde estudou e concluiu o curso ginasial. Em Jequié-BA estudou o colegial e em Salvador – BA, pela Universidade Federal da Bahia, formou-se em Direito, em 1973.

Durante o curso de direito frequentou as aulas de teatro na Universidade Federal da Bahia, onde fez parte de movimentos artísticos que emergiam por toda a cidade de Salvador. Em 1972, Ramiro Silva Matos Neto adotou o nome de Gramiro de Matos, nome adotado após o encontro descrito pelo próprio como: “messiânico e telemental com o poeta medieval Gregório de Matos”, publica Urubu-Rei pela Editora Gernosa, um livro radicalmente experimental, com uma poética  tributária das culturas indígenas brasileiras, e das experimentações vanguardistas herdadas do concretismo e da cultura riponga da década de 60.

No início da década de 1970, Ramirão, como era chamado, juntou poucas coisas, pegou uma sacola hippie e partiu com a namorada hippie para o Rio de Janeiro. Na cidade, conviveu com grandes intelectuais como Jorge Amado, Glauber Rocha e era amigo de Waly Salomão e Torquato Neto, fazendo parte do movimento tropicalista, juntamente com esses seus dois parceiros. Entretanto, não teve a mesma sorte de Jose Agrippino, no grupo do desbunde tropicalista.  Enquanto Agrippino, antes de despirocar de vez da cabeça, apostou na estratégia áudio-visual fazendo filmes para permanecer lembrado, Gramiro de Matos, não - talvez por sua personalidade mais reflexiva, menos falante, introspectiva. De qualquer maneira Gramirão, ainda como estudante de de direito frequentou os lugares míticos da geração desbunde, como o “Solar da Fossa” ou as “Dunas da Gal”, na companhia de Waly Salomão e Torquato Neto. E de certa forma interagiu com toda a experimentação artística desse grande grupo.

Urubu-rei foi um livro bastante elogiados pela crítica na época. O autor, igualmente, cuja literatura foi considerada “impenetrável”, devido ao exagero nos experimentalismos concretistas e pop. O tropicalista que foi ficando esquecido, nos anos 1970 era um dos  protegidos de Jorge Amado e do parceiro de Waly Salomão. Chegou a ser considerado por Jorge Amado como “a mais nova experiência da linguagem depois de Guimarães Rosa”.

Jorge Amado, aliás, mesmo achando-o meio doidão, escreveu o texto de apresentação em Os morcegos estão comendo os mamãos maduros pela Editora Eldorado em 1973, um dos livros de contos de Gramiro de Matos. De certo, Gramiro era diferente. Inventava uma espécie de linguagem que mesclava português colonial com espanhol, que quase gerava um dialeto Crioulo, ou mesmo um Galego falado na Galiza. Impulsionava relações idiomáticas entre línguas indígenas e africanas, constituindo multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas.

Ou seja, livros como Panamérica (1968), de José Agripino de Paula, Me segura que eu vou dar um troço (1972), de Waly Salomão, Urubu-Rei (1972) e Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (1973), de Gramiro de Matos e Catatau, de Paulo Leminski (1975), foram inseridos nesse grupo pela crítica literária da época, apesar de suas diferenças de estilo e proposta.

A partir de 1974, o autor decide seguir a carreira acadêmica. Vai realizar uma série de viagens à África e Portugal durante seus anos de doutorado, financiado pela Fundação Caloustre Gulbenkian. Sua intenção era a de investigar o impacto da literatura brasileira nos autores das colônias lusas, até então. O afastamento da sua terra trouxe um afastamento do universo literário, também. Durante esses anos de estudo presenciou a Revolução dos Cravos e escreveu algumas impressões e vivências sobre o episódio. Nesse período também ficou mais próximo de Glauber Rocha, que nessa época residia em Sintra. Acompanhou sua agonia e sua luta para filmar Império de Napoleão.

Em 1978 publicou um romance histórico-surrealista A conspiração dos búzios. Mas,apesar da tentativa de se reconectar com o ambiente cultural brasileiro, o autor caiu no esquecimento na década seguinte. De seus estudos acadêmicos, resultou nas mais de 600 páginas de uma tese de doutorado: “Influências da literatura brasileira sobre as literaturas africanas de língua portuguesa”, defendida na Universidade de Lisboa, 1982 e publicada posteriormente no Brasil. 

Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, de 1973, tiveram ampla divulgação em estudos profundos empreendidos por Silviano Santiago(2000), bem como na imprensa da época. Santiago em Os Abutres, num ensaio de 1972, parte da peça Urubu-Rei de Gramiro de Matos discutir a geração do desbunde de 1960. Ele defende a “curtição” da cultura, em contraposição à sua leitura sociológica do bom e do mau gosto.  Ou seja, ao incluir o Urubu-Rei de Gramiro de Matos no grande quadro do Tropicalismo, colocando-o justamente como um “abutres do lixo americano”, tornou o lixo da sociedade de massa brasileira, algo que pudesse ser reinventado num outro diapasão que misturasse prosa, linguagem de computador, poesia, cérebros eletrônicos, dialetos indígenas, mitologia negra, o portunhol das peças de Anchieta, ou seja, uma literatura que não cabia apenas na literatura.Um diapasão que não se  limitasse ao Modernismo nacionalizante. 

Talvez o grande mérito da leitura de Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, resida no fato de despertar questões referentes a sua linguagem desestabilizadora e política, impulsionada por relações idiomáticas entre o português, o espanhol, línguas indígenas esquecidas e as diversas variações do crioulo português afircano, constituindo-se por multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas. O autor tenta trazer para as ranhuras do Tropicalismo a antropofagia de Oswald de Andrade: junta e separa palavras, cola recortes de jornais, inunda a sintaxe de estrangeirismos e barbarismo, desrespeita a língua como quem ironiza a autoridade gramatical, ousa reescreve o conto Cabeça Caxinauá numa versão pop, e chega a citar poemas inteiros de Gregório de Matos. Ou seja, independente do que os críticos digam, um tipo de leitura para fortes: ou você ama, ou simplesmente faz pose e analisa academicamente.

Alguns intérpretes, consideram a literatura de Gramiro de Matos uma forma de luta política contra a violência da língua padrão e, ao mesmo tempo, um conceito de " combate em línguas ", tanto para propósitos acadêmicos como estéticos. O que é uma suposição até cabível, numa literatura de contracultura que já tinha sido considerada inclassificável pelos críticos da época de seus primeiros livros.

A Conspiração dos Búzios é um livro de 1976. A primeira edição era absolutamente artesanal financiada pelo próprio autor e ilustrada pelo fotógrafo Mario Cravo Neto. O enredo era uma mistura incomum de roteiro de cinema com narrativa histórica, em que o autor  reencena a Conjuração Baiana do século XVIII. Ainda no diapasão da porralouquice, era numa espécie de paródia épica que flutuava entre lirismo, surrealismo e o tom de documentário que retrata as reminiscências de revoltosos condenados à forca, nos dias que antecedem à condenação, dando uma espécie de sobrevida a cada um dos conspiradores que saem do Pelourinho para serem enforcados na praça da Piedade. Na passeata fúnebre, o autor mostra detalhes da cidade, do casario e da vida dos personagens.

Ainda em Portugal, publicou em Lisboa uma Antologia da novíssima poesia brasileira (Livros Horizonte, 1982), que reunia as experimentações poéticas das vanguardas concretistas e tropicalistas, e das poéticas resultantes, dos anos 60, 70 e 80, trazendo  textos de Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, Carlos Nejar, Chacal, José Carlos Capinam, Roberto Schwarz, Afonso Romano de Santana, dentre outros.

Quando volta ao Brasil, nos 1980, continuou sendo considerado um autor impenetrável pelas novas gerações.

E agora, em meados dos anos de 1980, com um canudo de estudos africanos embaixo do braço, e uma tese de 600 páginas ilegíveis, decepcionado com a falta de interesse das universidades pelos estudos africanos, afastou-se aos poucos da escrita e da academia. Tocou a vida como comerciante, marchand, depois colecionador de quinquilharias.

Mesmo tendo publicado em 2016, pela Civilização e Barbárie A conspiração dos búzios, romance-experimental inédito escrito em 1976, ainda durante os estudos de doutorado, Gramiro de Matos é considerado “o tropicalista esquecido”. Hoje, raramente é citado entre as principais figuras literárias da sua geração, e sequer tem verbete no Wikipedia.


O tropicalista, marginal e reinventor de linguagens, Ramiro Silva Matos Neto vive hoje em Salvador, completamente afastado dos círculos literários toca sua vida longe da literatura. Divide seu tempo colecionando moedas antigas, administrando sua pousada, e fazendo comentários nas redes sociais - geralmente contra governos de esquerda – defendendo a Democracia.

 

 


HERBERTO HELDER


Título Herberto Helder 
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira. Este é, ao certo, o nome próprio que consta em sua certidão de nascimento. Nasceu no Funchal, em 23 de novembro de 1930, e era o filho caçula da família, composta por mais duas irmãs mais velhas. A mãe morre quando o menino tinha 7 anos. O fato abalou as estruturas da família, e com certeza, a sua relação com o mundo – quem duvidar disso, pode ler A Colher na Boca, que o poeta iria publicar com 31 anos. A partir dos 18 anos, a vida de Herberto Helder se torna literalmente a vida de um judeu errante e misterioso.

Conclui o curso no liceu de Lisboa, para onde foi aos 16 anos. Em 1948 entrou na Faculdade de Direito em Coimbra, mas logo no ano seguinte mudou de curso, transferindo-se para a Faculdade de Letras. Nesta, passou três anos, e sabe-se que frequentou as aulas de filologia românica, mas igualmente não concluiu o curso.

De regresso a Lisboa, teve o seu primeiro emprego, na Caixa Geral de Depósitos, um emprego que abandonaria logo, como inúmeros no decorrer da vida. A partir desse momento, passa a ter diversos trabalhos. Foi agenciador de publicidade, meteorologista na Ilha da Madeira - para onde tinha regressado em 1954 -, representante de laboratório farmacêutico, redator de publicidade, editor.

Como o pai tinha negado um empréstimo para ir ao Brasil - a exemplo das irmãs que já lá estavam -, Herberto Helder resolveu tentar a sorte percorrendo a Europa. Entre 1958 e 1960, perambulou por França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, trabalhando, aí sim, nas mais inusitadas funções. Já tinha uma relação com Maria Ludovina Dourado Pimentel, e precisava de dinheiro para o nascimento da primeira filha que estava a caminho. Neste período, trabalhou como descascador de batatas na Bélgica, agenciador de marinheiros em bairros de prostitutas na Antuérpia, estivador, empacotador de aparas de papelão, tudo o que se pode imaginar, não necessariamente nesta mesma ordem. E reza a lenda que chegou a passar fome, já que quando retornou, repatriado, teve de fazer um tratamento para avitaminose.  

Antes de partir, às pressas, deixara os manuscritos de O Amor em Visita com Luiz Pacheco, que à época era apenas um brilhante iconoclasta poeta surrealista. Herberto ainda deixou alguns poemas publicados nas revistas Cadernos do Meio-Dia, KWY e Folhas de Poesia, antes de partir para sua primeira parada, França. Ficavam para trás a mulher grávida e as tertúlias do Café Gelo, onde se encontrava frequentemente como António José Forte, Hélder Macedo, João Vieira, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco.

Forçado a regressar a Portugal, arrumou talvez aquele que fosse o primeiro trabalho estável em décadas. Como bibliotecário da Fundação Gulbenkian, percorreu vilas e aldeias da Beira Alta, Ribatejo e Baixo Alentejo, num projeto de biblioteca itinerante. E nesses anos publica justamente o que os especialistas consideram a obra em homenagem a sua mãe, A Colher na Boca, além de Poemacto e Lugar.

Entrou para a Emissora Nacional em 1963, como redator do noticiário internacional, mas permaneceu ali apenas cerca de um ano. Tempo bastante para publicar Os Passos em Volta em 1963, um livro extremamente autobiográfico e premonitório de sua constante transitorialidade:

“Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.”

Em 1964, publicou com António Aragão, o n.º1 de Poesia Experimental, uma série que teve em suas páginas poetas como Mário Cesariny, a concretista Salette Tavares, e o poeta barroco alemão  Quirinus Kuhlman. Eclético, foi alimentando a aura de enigmático, enquanto lutava para pagar as contas do mês. Trabalhou como tradutor de bulas e literatura explicativa de medicamentos para laboratórios, além das obras literárias de Hans Christian Andersen e Italo Calvino. Também se submeteu como voluntário para testes de grupos psicanalíticos no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria.

Publicou, em 1968, Apresentação do Rosto pela Editora Ulisseia, que foi rapidamente apreendida pela polícia, sendo destruídos os quase 1.500 exemplares impressos, de uma vez. No ofício de proibição, de 22 de julho de 1968, os “críticos literários” da PIDE descrevem a obra como uma “autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade”.

Herberto, já estava na alça de mira da PIDE desde a publicação de A Filosofia na Alcova, edição portuguesa do Marquês de Sade de 1966, prefaciada por David Mourão Ferreira e por Luís Pacheco. A tradução era justamente de Herberto Hélder, usando o seu único pseudônimo conhecido Helder Henrique. Antes de Apresentação do Rosto, aquilo já havia lhe custado um processo judicial, afinal a obra de Sade ainda por cima vinha ilustrada. O fato é que a cassação deu a Herberto uma certa aura de maldito. Nessa época, abandona a grupoterapia, passa a trabalhar num atelier de arquitectura e pouco depois como diretor literário da Editorial Estampa. Ainda participa, como ator, no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, o que pode ter sido sua última aparição em público.

Em Julho de 1969, nasce seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira, de uma relação com Isabel Figueiredo. Herberto Helder sempre foi obsessivamente discreto em relação à sua vida privada. Entretanto, mesmo neuroticamente silencioso, coincidentemente, ou não, consta que Herberto Helder apesar dos dois filhos, nunca teve uma união estável com uma companheira. Afinal, coincidentemente ou não, sempre que nasce um filho, Herberto Helder decide viajar. E para longe.

Dessa vez, volta a perambular pela Europa. E pouco mais de um ano depois parte para ser correspondente em Angola. O amigo João Fernandes, frequentador do Café Gelo, em Lisboa, arranjou-lhe a vaga de jornalista na ainda colônia portuguesa.

Em 1971, fez reportagens para a revista Notícias sob vários pseudônimos, e publicou Vocação Animal, publicação onde se afirmava que o autor deixara de escrever em 1968. A aventura em Angola deixou marcas profundas. Trabalhou em Luanda, De 1971 a 1974, onde foi redator da Notícia, uma revista editada pela empresa Neográfica, cujo capital era dividido por Manuel Vinhas do grupo Vinhas, da CUCA, a primeira cervejeira de Angola, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA. Em Luanda encontra nova companheira que o iria acompanhar pelo resto de sua vida, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar, a Mastaba, uma espécie de sucursal do Gelo lisboeta, onde se reuniam artistas e intelectuais, os chamados reviralhos.

Mas a aventura em Angola dura pouco. No ano seguinte, após um grave acidente de carro, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda" – que se reduziam tecnicamente, a dois livros Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).

Em seus artigos e escritos deste período, manifesta a admiração por Jack Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan, Leonard Cohen, Jim Morrison. Cita Patti Smith em Photomaton & Vox de 1979 e aconselha a todos a leitura de Henry Miller, antes que seja tarde demais.

A Portugal, mesmo, só retornou depois do 25 de Abril, para trabalhar em rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, da qual se publicaram apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra em 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra em 1978.

Alguém já disse, com razão, que apesar da linguagem rítmica, sua poesia deveria ser lida com o incômodo físico de uma pedra no sapato. O poeta era um atormentado, mas sendo bem lido tem algo de sentido de humor dentro e fora de sua poesia. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo sempre irônico, e safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.

Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o aldrabão, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. Como em muitas das histórias obscuras de Herberto, realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns e outros que até rindo da situação.


Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007. Muitas perguntas ficam no ar sobre sua neurótica aversão a entrevistas, e sobre seu desejo de separar o público e o privado de maneira obsessiva, escondendo-se como pessoa. Alguns dizem que a desconfiança da imprensa devia-se ao fato de reconhecer-se homem de ambiguidades e contraditório - o que realmente não explica nada.
Alguns trabalham com a hipótese da tentativa de se preservar – o que explica menos ainda. Outros, como o velho Luiz Pacheco, associam a misantropia com uma estratégia de marketing editorial 

O fato é que recusa o Prêmio Pessoa em 1994, “por razões pessoais”  -  recusa que o tornou mais famoso. Em 1988 já tinha recusado os 10 mil Euros do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1988. Aos 64 anos o poeta que disse certa vez que “nada é mais apaziguador que ter falhado em todo os lados da biografia,” na certa pensou que 30 paus não vão fazer diferença nenhuma para um camarada que como eu, fui estivador, bibliotecário e até agenciador de putas… Do pouco que conhecemos Herberto, na certa o pensou, mas para manter a aura de enigmático, não o disse.

Em 2007 Pen Clube de Portugal indicou o nome de Herberto Helder para  Prémio Nobel da Literatura, o que igualmente seria uma tremenda perda de tempo. A essa altura, nem o desdentado Luiz Pacheco duvidaria que Herberto Helder daria uma de Jean-Paul Sartre.

ITAMAR ASSUMPÇÃO

 



Título Itamar Assunção
Dimensões: 9x9cm
Data: Outubro de 2021
Técnica: Xilogravura


No início da década de 1980, à margem de toda e qualquer imposição mercadológica que poderia ser ditada pelas gravadoras, uma nova cena cultural surgia em São Paulo. Ao redor do Lira Paulistana, um teatro localizado no bairro de Pinheiros, um certo Francisco José Itamar de Assumpção, pulou para lado de fora dessa margem para engrossar o caldo, e lançou o seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, pelo selo independente do próprio teatro da Lira.

Bisneto de escravos de origem angolana, o baixista, poeta e performance Francisco José Itamar Assunção, nasceu em 13 de setembro de 1949, no Tietê. Era neto de um alfaiate e seu pai, Januário, era fiscal do Instituto Brasileiro do Café, órgão criado no segundo governo de Getúlio Vargas, onde os fiscais tinham cargos vitalícios. Junto com a mãe, Cida, tinham um terreiro de umbanda em Arapongas onde Januário era Pai de Santo e a mãe recebia igualmente entidades.  Aos 12 anos de idade, quando sua avó materna, que era católica, morre, Itamar se muda para Arapongas no Paraná. Diga-se de passagem, ele e os dois irmãos, Narciso e Denise - que mais tarde se tornariam atores - cresceram ouvindo batuques, seja no terreiro da família ou os festejos de tambú, com as danças de umbigada, de comunidades remanescente de escravos bantu.

Em Arapongas iniciou estudos de contabilidade, abandonando o curso para atuar no teatro e fazer shows em Londrina. Começou a andar com a turma do GRUTA – Grupo de Teatro Universitário de Arapongas. Em 1971, Itamar participa do IV Festival Universitário de Música Popular de Londrina com a canção Caboclo da Mata, interpretada pelos seus irmãos. Ganham o prêmio de “Melhor Apresentação Total” deste ano, e o do ano seguinte. Essas primeiras composições ainda estavam muito marcadas pela tendência à música de protesto, gênero que abandonou logo. Mas na cidade, conhece em 1973 outro músico, que também viria a se tornar marginalmente famoso, e com quem iria colaborar por longos anos, Arrigo Barnabé. Moravam na mesma “república” e isso, para quem já participou de alguma confraria, tem muita importância na vida de um cara.

No final dos anos 70, formou com o guitarrista Tony Penhasco, a primeira banda, a Mão de Pilão, e compôs Nego Dito. A canção ficou em terceiro lugar no Segundo Festival da Feira da Vila Madalena em 1980. Para Arrigo Barnabé, esse momento foi o ponto de inflexão de Itamar, largou a música de protesto e deu aquela afinada que faltava no estilo.

O cara que “aprendeu da importância de não dar muita importância” e “ficar com os seus pés no chão”, entrou e saiu do panorama poético e musical brasileiro, mantendo sua eterna integridade e coerência. No final da década de 1970 as gravadoras internacionais captavam artistas de grande projeção, pois enxergavam no país um grande e lucrativo mercado de disco. Esse não foi, definitivamente o caso de Itamar Assunção. E se foi, ele fez o possível para criar nuvens de fumaça suficientemente espessas para sair de fininho.

O Lira, como era chamado, era um teatro de 150 lugares, onde diversas manifestações culturais dessa nova vanguarda paulista tiveram lugar. Muitos grupos musicais alternativos passaram por seu palco como o Língua de Trapo, Rumo, Premeditando do Breque, e até mesmo o rock de grupos como o Gang 90, Titãs, Violeta de Outono e Ultraje a rigor, passaram por seus holofotes alternativos.

Quando Beleléu, Leléu, Eu é lançado, pelo selo independente do teatro Lira, Itamar Assunção já tinha uma turma ao redor suficiente visionária. Ao lado de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, entre outros jovens artistas, Itamar desbravou a senda de fazer música com dinheiro do próprio bolso. Não à toa, Ás próprias custas S.A. é o termo que dá título ao seu segundo LP, de 1981. Mas voltando ao primeiro, Beleléu, Leléu, Eu, o cantor lançara o disco em 1980, acompanhado da banda Isca de Polícia. Esse é um dos seus discos mais famosos e faz parte, inclusive, encontra-se na 86ª posição da lista dos 100 Melhores Discos de Música Brasileira de todos os tempos organizado pela revista Rolling Stones. Isto é, se você tem uma coleção de discos de música brasileira, você precisa ter este disco.

As performances de Itamar Assunção eram um capítulo à parte. Um homem que na vida privada, cuidava das filhas, amava a mulher, e tinha um carinho especial por plantas e orquídeas, no palco se transformava quando interpretava por exemplo Nego Dito. No palco, criava uma relação meios que simbiótica entre o marginal e o homem, encarava o público, as vezes o destratava.  A cada olhar, a cada movimento de seu corpo, parecia que Francisco José, um homem massacrado pela condição de pobre e periférico, ia tirar uma navalha do bolso, para se defender da vida como pudesse, para cobrar dela aquele boleto vencido. Às vezes, descia do palco e encarava uma pessoa a esmo na platéia, caminhava em meio ao público e começava a dialogar rispidamente com ela. Se pudéssemos fazer algum paralelo com um artista estrangeiro, talvez, apenas um Tom Waits, ou Nick Cave, guardadas as proporções, chegariam perto do nível de desempenho de um papel no meio de uma manifestação artística.

Em sua vida há várias situações mal explicadas de atitudes hostis sofridas por ele. Como num episódio em que Itamar corria pela rua para entregar o cartão da esposa, branca, e que um policial encarou como assédio. Ou, mais grave ainda, no episódio em que foi preso por suposto roubo. O parceiro da letra Prezadíssimos Ouvintes, Domingos Pellegrini, conta no Vol.2 do Song Book de Itamar Assunção um episódio passado em 1972, quando o artista tinha 23 anos. Pellegrini tinha lhe emprestado um gravador, que Itamar levou-o consigo para casa. No caminho, a polícia o prendeu e o encarcerou por 5 dias, numa cela incomunicável, simplesmente por acreditar que ele tinha roubado o gravador. Ainda que o poeta tivesse encarado o episódio com bom humor, chegando a criar o nome da nova banda, Isca de Polícia, a partir do episódio, para bom entendedor pode haver sim algo de estrutural no nexo que liga esses eventos às “sutilezas” das várias camadas do racismo que imperam no Brasil.

Em outros momentos, esse racismo não era expresso de forma tão grosseira e brutal, mas de maneira eufemizada sob a máscara da denegação. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e algumas vezes foi encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba.

Arisco ao mercado fonográfico e a movimentos políticos organizados, não foi um poeta negro que fez de sua etnicidade um bastião de luta constante. Mas os ecos da condição social impostas e da opressão policial sempre estiveram em sua lírica.  Como na música Cabelo duro em que fala categoricamente “eu tenho o cabelo duro mas não o miolo mole, sou afrobrasileiro puro, é mulata a minha prole”, Ou mesmo na Negro dito, “tenho o sangue quente, não uso pente, meu cabelo é ruim”.  E o que dizer de “a textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura” ? Quando alfinetava, igualmente, a ética Bandeirante em Cultura Lira Paulistana.

E não que ele não tenha feito discos de samba, como fez de fato na obra dedicada a Ataulfo Alves em 1996. Ou seja, cantou samba – à sua maneira – mas não por exigência de vontades de gravadoras. Na única vez em que teve um disco seu lançado por uma grande gravadora, foi em 1988, Itamar não deixou de ser irônico com sua própria condição de marginal. O homem deu nome ao disco lançado pela Intercontinental: Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!! 

E foi além. Usando gancho as práticas de marketing da indústria fonográfica, criou as vinhetas como Pesquisa de mercado I, II e III; canções como Sutil e Mal menor ganharam uma roupagem radiofônica, comercial. Tudo com fins mercadológicos, trazendo refrões fáceis, melódicos e harmonias buscando os hits e batidas mais populares.

Em meados da década de 1990, já se via um Itamar cansado da pecha de maldito, entretanto foram os anos mais prolífico para o poeta em termos de shows e rearranjos de clássicos da música brasileira.  Em 1993, compôs “Só vejo azul” com Rita Lee, que, em troca, participou da faixa “Venha até São Paulo” de Itamar Assumpção, no disco Bicho de 7 cabeças I.  E outras ações artísticas inusitadas foram Bicho de 7 cabeças de 1993, que foi assinado por Itamar e pela banda Orquídeas do Brasil, composta apenas por musicistas mulheres, e o já citado disco dedicado à obra de Ataulfo Alves em 1996. Um dos pouquíssimos projetos que o quase obsessivo artista deixou pela metade foi Pretobrás – Por que que eu não pensei nisso antes? (1998 – 2010), cujos volumes 2 e 3 sairiam somente após a sua morte precoce, em 2003.

A música Código de Acesso, mostra bem sua relação com as gravadoras e com a Indústria Cultural.

Para muitos, Itamar não passava disso: um doidão. Um doidão desses geniais, que tanto podia acordar cedo para cuidar das orquídeas, das plantas e fazer o café da manhã dos filhos, cuidar das orquídeas e fazer o café da manhã para as crianças, depois de um show, sem dormir por três noites à fio.

Uma nova geração de músicos independentes, têm nele uma referência fundamental. Por exemplo, a cantora trans Liniker fez uma versão para Fim de festa, e a banda Teto Preto cantou recentemente, Já deu pra sentir, bem como Metá Metá remusicou Tristeza não. Outros que revisitaram o poeta foram o grupo Tono Nega música e o cantor Criolo com O tempo todo. Além do resgate musical, Itamar Assunção é tema de inúmeras teses na área de história e estudos literários.

Dono de uma incansável cabeça criativa, quando morreu Itamar deixou diversos escritos e rascunhos de letras e canções, que foram reunidos e lançados pelo Itaú Cultural no volume Cadernos Inéditos.

No ano de 2000 os médicos descobriram um câncer no seu intestino. Mesmo doente, em meio a cirurgias e pesados tratamentos, Itamar manteve a rotina de shows nos intervalos das internações. Nesse período também gravou um disco em parceria com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que acabou cancelado, e num segundo volume de Preto Brás iniciado em 1998, que ele pretendia que fosse uma trilogia de discos. Lutou por três anos contra as complicações decorrentes do câncer, mas a doença reincidira para a região pélvica.

O cantor, poeta e compositor paulista Itamar Assumpção morreu na noite de 12 de junho de 2003, aos 53, em sua casa.