Sunset Park


Terminada a leitura do último livro de Paul Auster, Sunset Park – ainda sem tradução par ao português -, é minha vez de dizer que é impossível transmirtir o que eu também senti, não apenas às primeiras páginas, mas nos seus capítulos seguintes que percorrem, esmiúçam, radiografam a alma de uns dez personagens em quase todas suas poucas grandezas e muitas misérias.

O livro centra-se na estória de Miles Heller, um jovem de 28 anos, e que aos vinte rompeu todos os laços o ligavam a familia e a Nova Iorque. Deixou a universidade e embrenhou-se pelo meio dos Estados Unidos, deixando uma breve e enigmática nota de despedida aos pais. Por muito tempo ninguém ouviu falar dele. Desde então peregrinando de cidade em cidade, fixou-se na Flórida, dedicando-se a trabalhos pesados, de baixa qualificação e baixo soldo. Vive uma vida simples trabalhando como “trashing out,” o único trabalho que parece prosperar num país afetado brutalmente pela crise da bolha imobiliária. Seu trabalho consiste em limpar os imóveis liquidados – outrora pertencentes a pessoas que não puderam arcar com suas hipotecas - prestes a retornarem aos bancos.

Solitário e deslocado em qualquer dos mundos que possa habitar, Miles, para além de limpar e pintar as casas desapropriadas, fotografa-as, retendo em suas máquina digital as pistas das vidas dispersas que um dia pertenceram àquele lugar, os fantasmas de pessoas que ele nunca conheceu ou conhecerá e que estão presentes nos objetos dessas casas, agora, vazias e abandonadas. Dos restos do desespero do pouco que ficou para trás, abandonados na solidão silenciosa de uma casa cheirando a mofo, suas fotografias não servem para nada. Seus anos de estudo na universidade, menos ainda. É um cara sem ambição, que vive com o mínimo necessário para viver e que mantém relações escassas com o mundo. Miles encontra o conforto para esse mundo em desolação na sua máquina digital, nos livros, que compra em edições baratas em sebos, e evidentemente, nos braços de Pilar Sanchez, sua namorada latina, com certos traços de Lolita, a quem conheceu exatamente quando ela lia, pela primeira vez, o The Great Gatsby num parque. Ele, já na terceira leitura, já que o pai o presentara quando tinha 16 anos, lançou toda a sua lábia literária para conquistar a moça de generosas ancas.

Miles, se apaixona por Pilar, mas como ela é menor, passa a ser chantageado pela irmã da moça para que roube objetos das casas nas quais ele trabalha, caso contrário ela o denuncia à polícia como um pervertido. Sem escolha, Miles retorna para NY a convite de seu amigo Bing, que vive numa casa abandonada no Brooklyn, em Sunset Park.

Na casa vivem Bing, um cara que se dedica a consertar objetos obsoletos, tais como relógios, máquinas de escrever e aspiraradores de pó; Alice, uma estudante de doutorado que prepara uma tese sobre o filme de William Wyler, The Best Days of Our Lives, como a síntese da história recente americana; e Ellen, que trabalha ironicamente numa agência imobiliária enquanto tenta sua carreira de pintora. Todos têm um quê de frustração. Todos, em certa medida, precisam uns dos outros naquela casa.

Juntar-se aos companheiros de Sunset Park, é tentador. Mas tem um preço alto para Miles que é o de reencontrar a cidade e a família que deixou para trás. Nesse estranho retorno ao passado Miles reencontrará o pai - um dos temas recorrentes na literatura de Auster – Morris, o um dia bem sucedido editor independente que agora vive as consequências da crise financeira que abate o mercado editorial; a madrasta, que o responsabiliza pessoalmente pela morte de seu filho; a mãe, Mary-Lee, uma atriz auto-centrada, sedutora – jogando com o próprio filho - com algo de beckettiana, que nunca deu muita atenção para o guri; e o padrasto, que tem de se sujeitar a dar aulas na Universidade da California por ter tido sua carreira de cineasta independente frustrada pela crise.

Confesso que me assustei, pois para um escritor americano que, ainda que escreva de NY – ou seja, um lugar que não pertence aos Estados Unidos -, escreve para um público alérgico a personagens derrotados, pior, avesso a personagens que não se redimem do meio para o final, o livro deixa falsas pistas. Auster, nesse livro, resvalou. Quase me deixou a sensação que iria usar do artificio baixo de justificar a fuga de Miles expondo desde o começo as premissas examinadas para compor sua ‘fuga’: ou seja, a morte acidental de seu meio-irmão, na qual ele esteve envolvido.

Me assustei mais ainda com a tentativa de Auster impor uma relevância política à voz dos subalternos, num esforço de engajamento no mundo em recessão. Felizmente essa segunda impressão foi logo desfeita pelos fetiches do próprio escritor que sempre cria um oprimido, para além de outsider, sempre com algum traço artístico.

Desaponta, sem dúvida, a falta de profundidade psicológica de personagens tão interessantes como Bing, Elen e Alice. A insistência nos detalhes sobre a história do Baseball, como amálgama da relação entre pai e filho, por vezes também se torna enfadonha. Mas em todo o caso, não deixa de ser um livro sobre a inocência da juventude, sobre a estranha sensação de estar vivo, como algo desconfortável.

Marota tradução do primeiro parágrafo...
"Por quase um ano, ele vem tirando fotos de coisas abandonadas. São pelo menos duas ordens de serviço por dia, e as vezes seis ou até mesmo sete, e a cada vez que entra numa casa, se depara com as coisas, com os inumeráveis objetos deixados para trás por famílias que partiram. Os ausentes fugiram com pressa, envergonhados, confusos, e certamente onde quer que vivam agora (se é que encontraram um lugar para viver e não estão vivendo nas ruas) seus lares são menores do que perdido. Cada casa é uma estória de fracasso – de falência, de inadimplência, de dívida - e ele assumiu que deveria documentar os últimos e persistentes traços dessas vidas para demonstrar que essas famílias desaparecidas estiveram ali uma vez, que os fantasmas dessa gente que nunca verá e que nunca conheceu, estão ainda ali, presentes nos restos de coisas desfeitas de suas casas vazias[...].”

"For almost a year now, he has been taking photographs of abandoned things. There are at least two jobs every day, sometimes as many as six or seven, and each time he and his cohorts enter another house, they are confronted by the things, the innumerable cast-off things left behind by the departed families. The absent people have all fled in haste, in shame, in confusion, and it is certain that wherever they are living now (if they have found a place to live and are not camped out in the streets) their new dwellings are smaller than the houses they have lost. Each house is a story of failure — of bankruptcy and default, of debt and foreclosure — and he has taken it upon himself to document the last, lingering traces of those scattered lives in order to prove that the vanished families were once here, that the ghosts of people he will never see and never know are still present in the discarded things strewn about their empty houses."

Nota. Foto. Casa Abandonada. Barrio de Campos. Galiza/Janeiro/2011.
Música do dia. Barracão. CD. Brasileirinho. Grandes Encontros do Choro Contemporâneo.

Licença Creative Commons
This work is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil License.

O Lugar dos Zé Manés no Mundo do Trabalho

Um dos grandes dilemas do homem que trabalha, que se esforça numa jornada de 8, 9, 10 horas por dia e volta para a casa esperando no fim do mês por um salário que muitas vezes, simplesmente, não dá, não é mais o cerne da questão no mundo do trabalho. Não, não é. O que nos torna reféns do devir, hoje, é o medo de perder o emprego num mundo do trabalho sem ética.
Para Richard Sennett, professor de sociologia da Universidade de Nova Iork e da London School of Economics e autor também do ensaio Carne e Pedra, O Declínio do Homem Público e The Hidden Injuries of Class, estamos imersos numa nova face do capitalismo que afeta o caráter de indivíduos em seus mais sutis detalhes na vida pessoal. E um dos pontos de partida, para que Sennett sustente seu argumento, reside exatamente a falta de condições para que o homem contemporâneo construa uma narrativa linear de sua vida profissional e pessoal, sustentada na experiência - como a daqueles dos anos que o Fordismo vigorava.

A “CORROSÃO DO CARÁTER – conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo,” lido em português, afanado por meu caráter corroído, da casa de minha prima, é trabalho muito bom, dividido em oito didáticos breves capítulos, onde se define a nova idéia de tempo capitalista, e se mostra as dificuldades de se compreender as novas relações de trabalho num mundo onde as referências e a ambição individual – ou a muitas vezes confundida, luta pela sobrevivência - é cada vez mais anti-ética. Além disso, o livro trata dos aspectos mais psicológicos dessa diluição do caráter. Os sentimentos despertos nos indivíduo como o fracasso, o desnorteamento, e a decorrente depressão.

O livro, apesar de ser anterior à bolha imobiliária que afetou Estados Unidos e União Européia de maneira violenta, é muito atual com até um certo ar de saudosismo. O autor começa a exemplificar seu argumento logo nas primeiras páginas com a estória de Enrico, um imigrante que fundou uma família e a sustentou com os esforço – sem querer ser piegas – de seu trabalho e seu suor. Enrico era o típico exemplo de trabalhador fordista. Tinha um emprego rotineiro e repetitivo, baseado no uso disciplinado do tempo. Através de seu salário, sustentava sua família e mesmo sem grandes perspectivas de ascensão profissional – devido à sua condição de imigrante e baixa escolarização – sentia-se à vontade em seu trabalho baixamente qualificado mas relativamente estável, pois contava com uma rede de proteção sindical bastante eficiente. Através desse trabalho Enrico podia contruir uma narrativa composta de estórias cumulativas de vitórias e até mesmo derrotas em sua vida. Já com seu filho, Rico, e com sua nora, a estória é outra. Ambos são profissionais qualificados num ambiente de crise econômica, o que os obriga muitas vezes a term empregos em cidades distintas, obrigando-os a viajar de avião pendularmente. Ou seja, Rico se esforça para não demonstrar nenhum laço ou vestígio com o universo do trabalhado braçal ao qual o pai pertencia. No novo Sonho americano Rico quer fugir da rotina. O grande problema é que esta rotina baseada no tempo linear foi substituída por novas formas de domínio e controle, mas Rico não se dá conta disso. Rico, com um trabalho muito mais intelectualizado que o pai, e educado para ser um trabalhador muito mais competitivo, tem uma rotina de incertezas e mudanças constantes.

Sennett compara, não por acaso, esse dois modelos de trabalhadores. O trabalhador fordista, burocratizado e rotinizado, que planeja sua própria vida familiar e suas metas se baseando em um tempo linear, cumulativo e disciplinado, e que constrói sua própria história e expectativas a partir de uma perspectiva de longo prazo. E o trabalhador flexibilizado do capitalismo das últimas décadas, que muda de endereço freqüentemente, que não estabelece laços duráveis de afinidade com os vizinhos, muda de emprego e de casa constantemente, ou seja, vive uma vida de incertezas e descartável, mas acima de tudo de laços frágeis. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis está corrompendo o caráter e como isso acontece é demonstrado ao longo do ensaio.
Neste sentido, Sennett considera que a sociedade se depara com a ponta de um dilema. O problema do antigo trabalho rotineiro com o da reestruturação do tempo implicam em instituições mais flexíveis, criando novas formas de poder e controle. Essas novas formas de flexibilização geram um movimento estrutural de reinvenção institucional, de ruptura do presente com o passado de forma a minar a burocracia aumentando o grau de especialização, num mercado que ocupa apenas temporariamente um nicho de consumidores.

Com isso as formas de controle do RH mudam também. O trabalho em casa, o chamado teleworking, toma o lugar do trabalho no escritório; “o controle face-aface” cede ao controle eletrônico de troca de emails e mensagens diretas. Isso, espelhado num trabalho em equipe, parece dar mais libertade ao trabalhador, ludibriado pela falsa idéia de que a concentração de poder sem centralização dá ao trabalho em equipes, maior controle sob o trabalho que se desenvolve. Grande balela! Sennett afirma que isso é conversa pra boi dormir, pois na verdade quem decide o que fazer e quando, ainda é o capitalista, restando aos trabalhadores apenas o refugo das decisões de como realizar as suas atividades ASAP, ou seja, “rapidinho mermão senão você roda.”

A aparente liberdade dada ao trabalhador através do trabalho em equipe, sem o patrão por perto para vigiá-lo, na verdade colocou o trabalhador ainda mais sob o jugo do capitalista, já que a atomização cada vez maior das suas tarefas fez com que este não se precisasse mais de tanto treinamento. Como conseqüência, deixou de possuir o domínio sobre seu emprego, por isso ele sempre está mudando de área, e como já não possui vínculos fortes com suas tarefas na empresa, muda de função e até mesmo de emprego de manaira mais fácil e rápida.

Toda essa flexibilização aparentemente positiva tem uma outra face que afeta o indivíduo, conceito que sociológicamente poderia ser descrito como o “Zé Mané”. O Zé Mané é esse cidadão que se mata de trabalhar no mundo flexibilizado e que não se dá conta de uma coisa muito grave.... a corrosão de seu prórpio caráter.

Segundo Sennett, o caráter é mais ou menos algo que lembra vagamente, na ética aristotélica, “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros, ou se preferirmos ... são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem.” Buscar essa coesão de significado é algo que era possível no mundo de Enrico, mas não no de Rico, seu filho. Por que?

Bom, primeiro por que o trabalho flexível leva a um processo de degradação dos antigos profissionais de ofício (o velho trabalho do técnico, do especialista em alguma àrea...), à degradação das metas de longo prazo, à tolerância, e por fim a flexibilização do caráter também. A nova ordem do mundo da produção concentra-se na capacidade imediata, não leva em conta que acumulação da experiência. Daí a preferência do capitalismo pelos mais jovens, como Rico, por serem mais adaptáveis às formas flexíveis de trabalho.
A questão é… até então, na crista da onda, Rico se sentia afetado por isso?
Claaaro que não. Rico não passa de um Zé Mané.

Um Zé Mané de classe média não conseguia ver os riscos desse mundo com o qual corroborou, pois mesmo com seu caráter, cheio de grafite, já mais oxidado que uma canalização de ferro fundido, só via que no jogo capitalista atual todos acreditam ser potenciais vencedores, e sabem que os vencedores fazem parte de um minúsculo grupo, e que portanto não se mexer é condenar-se ao fracasso. Mas tem gente que fracassa e Rico ainda não era um destes.

Ele acrditava que o trabalho em equipe gera um novo tipo de caráter, onde o homem motivado é o homem irônico, que ganha prosélitos nas esferas superiores, e em decorrência de viver em um tempo flexível, sem padrão de autoridade por perto e com responsabilidade voláteis, não consegue se reconectar com a ética e o respeito ao próximo.Mas tampouco isso é algo que o afete tão profundamente. O Zé Mané de Rico estava na crista da onda. O problema é como construir essa nova história de vida sem valores muito sólidos, e em um capitalismo em que as pessoas estão nesse mesmo barco à deriva. A resposta para esse estado de natureza, esse salve-se quem puder, esta na maneira como as pessoas enfrentam o fracasso.

Para Rico, a resposta veio com o sentimento de esvaziamento, frente ao medo de perder o emprego. Até aí tudo bem, pois esse era um medo do seu pai também, e de qualquer outro homem e mulher com ou sem juízo – como eu ou você, meu caro leitor. Mas, em Rico foi mais profundo pois numa dessas fases de desemprego sentiu mais dificuldade em se recolocar no mercado percebendo que perdeu o contato com a moral social e cultural. Caiu na real pois seu pai frequentava um clube de imigrantes onde ele tinha amigos com os quais ele conversava sobre os mesmo temas. Rico, forçado a constantes viagens e a muitas horas de trabalho, não tem vida social. Portanto, percebe que não tem com quem dividir seu drama.

Fracassar é ruim. Lógico. E como diria Alvaro de Campos, “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Mas o fracasso é algo que atinge as pessoas e para superá-lo é necessário compartilhar a experiência do fracasso com um grupo ou uma comunidade para que este adquira um senso de coerência coletiva e não passe apenas como uma injustiça sofrida por um indivíduo. Isso o pai de Rico tinha esse senso. Rico, não, mas como é um Zé Mané, ainda estava jovem, na crista da onda, com os filhos relativamente pequenos, só se deu conta do buraco em que estava mais tarde.

O grande mérito de Sennett foi o de aproximar a teoria sociológica do leitor comum. Ele consegue demonstrar como esta corrosão acontece gradativamente utilizando exemplos reais, de operários, prestadores de serviço, e desempregados da IBM, ao optar pela narrativa e não puramente o uso de estatísticas e tabelas. Sennett consegue dar vida as hipóteses de planilha mostrando que as novas relações do novo capitalismo flexível corromperam e corrompem o caráter do ser humano. Mais ainda, ao demonstrar esses exemplos reais de atomização das relações humanas e trabalhistas, Sennett mostra que o homem do novo milênio sofre com a própria construção de sua narrativa de vida e narrativa histórica pois o cabra fica impossibilitado, sem padrão e nem responsabilidade.

Hipóteses como a de um Rico em dois tempos, em duas entrevistas, uma anos atrás e uma recente, Sennett descobriu duas pessoas. Dois Ricos. O primeiro arrogante, sentado ao seu lado num vôo local pelos Estados Unidos. No outro, um Rico mais modesto, workaholic sem tempo para se dedicar à educação dos filhos, sem saber se os filhos estão na escola ou se estão o dia todo zanzando pelos shopping centers ao arbítrio dos perigos que rondam adolescentes num país onde tudo é muito fácil se conseguir, e mais fácil ainda se corroer. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis, num universo onde o poder existe mas onde a autoridade é invisível, está corrompendo o caráter. Ou seja, um Rico menos Zé Mané... mas, devido ao seu isolamento, seu caráter completamente enferrujado, chega um pouco atrasado para pegar a tempo seu bonde na História.


A questão mais profunda para um Zé Mané como Rico é... "Que lugar ocupo eu, no Mundo do Trabalho?"



Música do dia. Roda Viva. Chico Buarque.
Licença Creative Commons
This work is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil License.

Caminho Noturno

Ludwig Hohl é um autor suiço que viveu no século XX, e que em seu tempo foi completamente outsider. Viveu a maior parte de sua vida em extrema miséria, miséria suiça obviamente. Estudante problema, largou a escola e se bateu boa parte da vida contra o problema do alcoolismo. Consta que recebeu uma herança e casou cinco vezes, perdendo a herança e as cinco mulheres, gradualmente, no decorrer da vida. Na vida, deixou uma filha e ao que me consta pouco mais de meia dúzia de livros entre contos, poesia e aforismos.




Um desses livros é o ótimo Camino Nocturno, traduzido para o espanhol pela editorial minúscula. Um pequeno livro com nove contos enigmáticos, escritos entre 1931 e 1937, com temas que giram em torno ao desamparo do ser humano, os diversos graus de incomunicabilidade do dia-a-dia e, obviamente à miséria e o egoísmo humanos. Os seis primeiros contos, são uma espécie de parábola de difícil penetração em sua moralidade, algo que me deixou com a meditação sobre a condição da nossa miséria e dos nossos ao nosso redor. Como no conto El erizo, um animal meio mutante, que é criado com todo o carinho por um casal que o trata com todo o carinho como se tratara de um bebê, logo quando de sua chegada, e que aos poucos vai crescendo em formas disformes e bizarras, detido no sótão da casa, transformando-se numa espécie de javali ou fera que na mínima oportunidade é capaz de devorar os pais adotivos. O mesmo hermetismo encontra-se em La hoja, quando um homem se vê impedido ou adia voluntariamente uma decisão em virtude da contemplação de uma folha que se cai de uma àrvore. Proposital ou acidentalmente, a série de eventos em volta de um ponto de fuga, determina a procrastinação do protagonista desse conto que é brev[issimo mas de um profundo significado para aqueles que acreditam que acima de tudo há metafísica suficiente, mais em não fazer nada que em não pensar em nada! Já a partir do sétimo conto, Hohl deixa a contemplação de lado e parte para o lado prático da vida com protagonistas mais tangíveis como é o caso de La borracha, que em tradução para um português mais erudito poderia ser expressa por A Manguaça, uma mulher que trabalha com seu marido num pequeno bar, mas que em virtude das constantes crises e recaídas, torna a vida dos fregueses e do próprio marido um inferno com cheiro de gin e cebola.


Como deduzível, o trabalho de Hohl nunca foi comercial, e por vezes para um leitor brasileiro que confunde o Espírito hegeliano com os batuques de um cambono no fundo do terreiro, pode até sentir uma certa aversão à profundidade e à falta de humor. Mas é um escritor que de alguma maneira se torna necessário nos dias de hoje, quando tudo é tão prêt-à-porter.

Música do dia. Luar do Sertão. Catulo da Paixão Cearense.Paulo Tapajós e Coral do Joab da Turma do Sereno.