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El Juguete Rabioso


É absolutamente desconcertante pensar que Roberto Arlt escreveu La Vida es Puerca, seu primeiro livro, com apenas 22 anos.  E mais incrível ainda é imaginar, caso sua filha Mirta Arlt tenha falado a verdade, que começou a rascunhá-lo quando tinha 18 anos. O livro em tela foi publicado em 1926  com o nome de El Juguete Rabioso, por sugestão do editor e amigo pessoal Ricardo Güiraldes, pensando que com este título alcançaria um público maior. Se estrepou. Arlt nunca vendeu muito, mesmo tendo nascido como Clássico. Antes de El Juguete, houve supostamente um manuscrito perdido chamado Diário de um Morfinômano, que oficializou El Juguete como o primeiro seu primeiro livro. 


Imediatamente depois desse, Arlt publicou, o que para mim, seguido ao Facundo de Sarmiento, é o livro que define em alguma medida o que seria a essência da cultura argentina, Los Siete Locos - um livro incrível  que li muito antes do surgimento deste Ilusão da Semelhança, assim que cheguei aozuza,  e que não apenas me impactou, me arrebatou, sendo que  este é um livro que merece o carinho e a dedicação crítica para uma futura resenha muito mais pensada. Durante anos a obra de Arlt foi criticada e o autor considerado um escritor menor no ambiente literário portenho. Apenas nos anos 1950 e com as ponderações de escritores do calibre de um Piglia, e do empenho se sua filha Mirta, este o obscuro escritor ganhou alguma relevância. Curioso é que o próprio Arlt considerava o El Juguete, inferior a Los Siete Locos, comparando este último a uma pistola automática, enquanto o primeiro a apenas uma pistola antiga. Sendo que os dois são, sem dúvida nenhuma contusos, e além disso,  esplênicos, traumáticos e perfurantes. 



O livro, dividido em quatro capítulos muito claros e bem definidos: Los Ladrones, Los Trabajos y los Dias, El Juguete Rabioso, Judas Iscariotes. Alinhava muitos elementos biográficos da vida do autor e se centra na trajetória de um protagonista chamado Silvio Drodman Astier que no primeiro capítulo é um rapaz de uns 14 anos, e no último ja é um jovem em idade adulta. Astier é um protagonistas que não quer estudar, mas lê desesperadamente. Seu fascínio passa pelos autores literários do banditismo, teorias do eletromagnetismo, pelo jornalismo sensacionalista, que permeia um protagonista imerso na sensação iminente de violência presente nas grande cidades, e mais ainda na classe social à qual pertencia o protagonista.


No primeiro capítulo, intitulado Los Ladrones, o jovem Astier tem 14 anos, é muito pobre e influenciado pela literatura sobre ladrões, bandidos e aventureiros, se junta com alguns amigos, dentre eles Enrique e um outro jovem falsificador para fundar um clube de malfeitores para organizar pequenos roubos e outras falcatruas. Até que decidem alçar um vôo mais alto e assaltar uma biblioteca. A execução do plano fracassa por um vigia aparecer no momento do roubo, e o grupo se dispersa, cada um indo para seu lado em fuga. Enrique, atormentado pelo medo da polícia e mais ainda por suas alucinações persecutórias, vai parar na casa de Silvio pedindo guarida. E no final nada acontece. Mas a intensidade psicológica do episódio impacta de tal maneira os rapazes que decidem pôr um fim naquela ideia. A situação econômica aperta na casa de Sílvio e a família então muda-se para bairro mais pobre.  


Em Los Trabajos y Los Dias, Silvio tem 15 anos, já não estuda e mora com a família neste bairro mais decadente com uma vizinhança compostas por imigrantes e judeus. Já não tem mais contato com seus antigos amigos e é obrigado pelas circunstâncias a arrumar um trabalho para sobreviver e trazer um qualquer para a casa. Consegue então um trampo na Livraria Don Gaetano, onde Silvio também passa a viver nos fundos do estabelecimento, passando a desempenhar tarefas bastante humilhantes como ir ao mercado com Don Gaetano, suportar suas grosserias, num ambiente tóxico e pesado,  ser maltratado pela esposa rude de Gaetano. Desesperado por sair daquela casa, Silvio vai a procura de um homem que tinha oferecido emprego. Enquanto espera a chegada do homem, Silvio conjectura um futuro melhor. Pensa que o tal homem lhe dará um trabalho e que sua vida vai mudar de rumo. Entretanto neste livro, nada que é ruim, não escusa piorar, e   para piorar tudo, o homem o expulsa de sua casa dizendo que não o conhecia parando de incomodá-lo.  


Aos 16 anos volta para casa da sua mãe com uma terrível sensação de derrota. Aceitando a sugestão de uma vizinha, consegue ingressar na escola de aviação como aprendiz de mecânico onde permanece por um tempo e é admirado por alguns por sua inteligência. É nesse capítulo que se descobre. num diálogo entre Silvio e um superior  que o pai de Silvio cometera suicídio. Mas, que tudo se encaminhava, no presente, para a pobre matéria ilusória de futuro sólido, ao menos economicamente.  Entretanto, um novo revés. Um dos superiores o dispensou da escola por supostamente ter de acomodar um de seus apadrinhados. Sem aviso prévio, cancelam sua inscrição e o sargento, que trata dos papéis, comunica-lhe que naquele local não precisam de pessoas inteligentes. Ao contrário, precisam de homens embrutecidos.

O mais interessante deste capítulo, justamente chamado El Juguete Rabioso, é a idéia de que a vida do protagonista é brinquedo que passa de mão em mão, útil por um período e dispensado assim que deixa de ter serventia. O rancor de se perceber usado todo o tempo torna-o um camarada diferente. Ao deixar a escola militar, Sílvio sente-se destruído e vagueia pela cidade, instala-se uma pensão e acaba dividindo quarto  um rapaz homossexual, que  o assedia sem sucesso. No dia seguinte, acaba por entrar em delírio, pensando em ir para a Europa num navio. Compra um revólver para sua proteção, e no auge das alucinações, acaba pensando em suicídio. Quando tenta se matar o revolver falha. Chega a ser engraçada essa sina de nada dar certo… 


No capítulo Judas Iscariotes, já temos um Silvio adulto, trabalhando como vendedor para uma fábrica de papéis, trabalho que lhe parece humilhante. Aliás, o adendo de que qualquer trabalho, que não seja o trabalho intelectual e inventivo,  tornar-se todo o tempo humilhante para o protagonistas, não deixa de ter um lado um tanto patológico. Passado um tempo ele encontra-se novamente com um companheiro do clube de cavalheiros. O rapaz trabalha como investigador e diz que o velho companheiro Enrique esta preso como estelionatário. Comenta igualmente de um outro amigo, coxo, que trabalha na feira de flores e que ao encontrá-lo sugere que ambos roubem a casa de um engenheiro, Arsenio Vitri. Astier topa, mas entre numa crise de consciência se delata ou não o antigo companheiro. 


O livro termina com essa sensação de que o protagonistas se redime por vias tortas, massacrado pela cultura de massa que se personifica nas pequenas tragédias cotidianas, no arrependimento, alimentando o medo, que é o núcleo da paranóia no mundo moderno. Ricardo Piglia dizia que a obra de Arlt “pode ser lida como uma profecia: mais do que refletir a realidade, seus livros acabaram por cifrar sua forma futura”. E realmente é isso! Um livro altamente político, sem ser panfletário onde a manipulação da esperança e da crença, a invenção dos fatos, a fragmentação do sentido, e a lógica do conspiração do andar de cima vai nos iludindo, como na Teoria do Iceberg de Hemingway, onde o mais importante nunca se conta - a história como nos diz o Michael de Certau, é construída em cima do não-dito, da alusão, do apenas ligeiramente sugerido numa desconcertante obra de um autor de 22 anos.

O Túnel

El túnel (1947), de Ernesto Sábato, é um desses livros curtos que não chegam a prender o leitor mas o inquietam por passar um certo vazio, uma certa crise da existência que ultrapassa os limites da compreensão. O tema da inadaptação do indivíduo à sociedade contemporânea foi sem dúvida um dos temas prediletos da Escola de Frankfurt, e seria demasiadamente inóspito ambientá-lo no enredo de uma novela até que - primeiramente Camus com L’Étranger(1942) - Sábato se aventurasse a escrever a estória de Juan Pablo Castel e de como este assassinou a Maria Iribarne.

Já na primera página, sem rodeios, ele começa justificar o ato.

Castel é um pintor que desenvolve uma estranha obsessão por uma das apreciadoras de um de seus quadros. Num de seus vernissages, o pintor se admira com a atenção que uma mulher deposita num de seus quadros, ao notar um detalhe que havia passado despercebido por todos os críticos, mas não desapercebido por Iribarne. O detalhe. Uma janela onde uma mulher olha para o mar. Então, o pintor, sem maiores explicações, decide procurar a mulher por toda a cidade numa busca desesperada por não se sabe exatamente o que.

Em meio a procura, traça e fantasia uma série de possibilidades para encontrá-la, abordá-la, puxar um papo e conhecê-la. O mais interessante é que em meio a uma série de suposições e probabilidades quase matemáticas de tão logicamente traçcadas, Castel a encontra por obra exatamente do acaso, numa das ruas de Buenos Aires e a segue até seu trabalho. Dois dias se seguem até que Castel telefone e descubra que há um homem na vida de Maria Iribarne. Telefona novamente e a empregada diz que há uma carta para ele. Castel, desesperado, vai até a casa de Maria e encontra Allende, um homem mais velho e cego, que que se diz seu marido e lhe dá a carta de Maria. Allende diz que Maria esta numa fazenda fora de Buenos Aires com Hunter, primo do próprio Allende.

O que se segue é uma evidente rejeição de Maria a todas as tentativas de Castel em conquistá-la. Confundido e decepcionado, Castel começa a beber e frequentar prosíbulos. Escreve uma carta a Maria e logo em seguida se arrepende do conteúdo pois diz na missiva que não crê que seu amor a ele e a seu marido possa conviver com o amor a Hunter, com que acredita estar alimentando um romance adúltero. Tenta recuperar a carta ja despachada na agência postal sem sucasso. Pede, então, ao telefone, que Maria o encontre pois ameaça se suicidar.

Maria não atende ao chamado de Castel. Quando este novamente chama para sua casa, descobre que ela já havia retornado para a fazenda. Decide então partir para a fazenda armado de uma faca. Já na fazenda, Castel lembra-se dos momentos felizes com Maria. Nesse momento já não se sabe o que é realidade ou absessão em suas discussões absolutamente intelectualizadas e sua cabeça totalemente conturbada, transtornada pela incompreensão dos críticos, o amor não correspondido de Maria, e a indicação de que nem sequer Allende, Hunter ou Lartigue – amigo de Hunter – o levavam a sério. Suas tentativas de justificação dos mínimos atos levam uma certeza ao leitor. A do pessimismo deixado entre as projeções e a realidade. Nesse momento Castel pronuncia a frase que fecha um livro cheio de obsessões e pessimismos: “en todo caso había un sólo túnel, oscuro y solitário: él mío, el túnel en que había transcurrido mi infãncia, mi juventud, toda mi vida.”

Quando chega à fazenda mata a Maria Iribarne. Logo em seguida telefona para Allende e confessa que assassinou a Maria justificando que esta o enganava. Allende de revolta contra Castel , que se entrega a polícia, enquanto Allende se suicida.

Enfim, é um desses livros que não prendem o leitor, mas deixa de alguma forma uma marca incômoda. Aquela da presença de Juan Pablo Castel, assim como Mersault, de maneira análoga, talvez, havia deixado naqueles que leram O Estrangeiro há anos atrás.