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Náufragos do escolho

Náufragos do escolho



 

 

RESENHA

Rogido, Francisco. Náufragos do escolho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023. 192 pp.

 

Há uma novidade de destaque no díspar universo da literatura brasileira contemporânea. A capa neo-surrealista deste livro de contos – tão bela quanto sinistra – tem um piano de calda pairando nas nuvens sobre uma obscura cena de cidade com um cinema ao canto. As pernas do instrumento estão derretendo, e sobre ele se mescla uma imagem de caveiras e bebês mergulhando de cabeça para baixo numa piscina que cai para dentro do piano. A faceta de estranhamento em Náufragos do escolho é reforçada pela epígrafe do volume. Assinada pelo filósofo oitocentista alemão Friedrich Nietzsche, declara: “Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo.”

De fato, pode-se dizer que já no título e subtítulo de seu livro de estreia, Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais), Francisco Rogido revela dois dos elementos essenciais dessa coletânea. Há, pois, uma relativa, mas inegável, estranheza na escolha do termo “escolho.” Vocábulo um tanto raro na linguagem do dia-a-dia no português do Brasil, ele é derivado de scoglio, em italiano, que significa “espinho”, ou, figurativamente, “dificuldade”, “obstáculo”, “perigo” ou “risco” para os barcos no mar.

Também vemos humor no inusitado catálogo de elementos desiguais que descrevem, entre parênteses, o conteúdo da obra. Exatamente quais seriam, por exemplo, os 98 “infernos possíveis” (talvez haja mais que isso), ou os 63 takes cinematográficos dos contos (será que há tantos)? Tais números talvez não importem, na perspectiva subjetiva de quem lê a obra. Com certeza dialogando com a sétima arte – em particular, nas elaboradas semelhanças estruturais, dialogais, rítmicas e visuais entre filme e literatura – os contos de Rogido proporcionam algum lirismo e alguma crença na bondade humana. É o que se percebe no conto “A falta agrava a tristeza da noite”, onde amor e sexo surgem subitamente entre personagens idosos que se (des)conhecem num hospital sob condições extremamente adversas, inclusive a proximidade da morte (159-165).

No todo do volume, entretanto, prevalecem as acentuadas doses de angústia, frustração, pessimismo, violência, horror e dor, efeitos quase sempre atenuados por ironia, humor, poesia, e, às vezes, por um sentimentalismo muito discreto. Um exemplo é “Lá não existem flores” (158). Apesar de ser um dos contos mais curtos da coletânea, de apenas meia-página, sua linguagem veloz nos leva muito longe no sentido de questionar a injustiça e o vazio existencial que assolam as vidas de tantos pessoas sem muito tempo para o lazer ou para o convívio com familiares e amigos, pois se ocupam de longas jornadas diárias de trabalho e vivem em bairros muito afastados, o que exige que acordem bem cedo (pelas quatro da manhã, como no caso do protagonista anônimo). Esse vendedor de flores se entristece por nunca ter sido capaz de participar dos eventos e ambientes alegres e festivos do tipo aonde vão diariamente as flores que vende. Entretanto, o que mais o inquieta não é essa exclusão ou a falta de filhos. É uma “ideia fixa”, que na sua idade avançada o faz questionar: “quem iria levar flores a seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?” (158).

Magistralmente desenvolvidas nos limites e poderes da palavra escrita em seus múltiplos e variantes takes e tons, as narrativas de Rogido tanto nos trazem consternação e vergonha da espécie humana quanto nos induzem ao carinho e à compaixão por centenas de personagens que, na sua maioria, são indivíduos pobres, como operários ou pessoas de classe média baixa, cujas existências, sentimentos mais profundos e visões de mundo pouco aparecem nos romances, revistas ou telenovelas. Na maioria das vezes, eles são os indivíduos (des)retratados nas reportagens de crime nos jornais e telejornais. Com certeza, dezenas dos personagens de Náufragos do escolho sofrem com as limitações e contradições de suas circunstâncias cognitivas, existenciais, intelectuais e socioeconômicas. Como cada um de nós, porém, são todos seres humanos e possuem um enorme potencial para inesperada superação e imprevista conformidade com os nossos próprios escolhos, inclusive aqueles que de repente podem empurrar quaisquer pessoas rumo ao delito, mesquinhez ou maldade, ou engendrar uma lição transformadora de empatia, generosidade, e perdão.

A inclusão de crimes na literatura é prática muito mais antiga, naturalmente, mas não há como não ver semelhanças entre as narrativas de Rogido e a abordagem de temas afins em Machado de Assis, especialmente onde o autor de Dom Casmurro explora os mistérios e defeitos morais da mente humana e as camadas invisíveis, capciosas, ou intersecionais do real. Por outro lado, o macabro e o imponderável no submundo dos contos de Rubem Fonseca, a linguagem concisa e popular em Dalton Trevisan, assim como o humor sardônico, sutil e sofisticado em Luis Fernando Verissimo, também têm eco em Rogido.

Em Náufragos do escolho há ainda outras semelhanças com mais vozes de relevo na literatura brasileira. Entre essas marcas, observa-se em Rogido a poesia do cotidiano e das reflexões filosóficas de Ana Cristina Cesar, a coragem estética e a destreza narratológica de Cassandra Rios ao questionar as sombras e os mitos da sexualidade humana (seja ela heteronormativa ou anticonvencional), e a determinação de Márcia Denser para evocar ideologias de gênero e assim contribuir para a emancipação das mulheres. Podemos até mesmo suspeitar da atuação dos princípios conceituais e metodológicos similares aos de Clarice Lispector, aqueles por trás da elaboração e utilização do formato fragmento, que, aliás, nem em Rogido e nem Lispector é exatamente “fragmento”, por se fazer complexo e autossustentável, apesar de seu minimalismo.

Muitas vezes narradas em primeira-pessoa por homens ou mulheres, ou ocasionalmente um animal, mesmo que já defunto, como no desconcertante conto “5x7” (11-14), as histórias de Rogido realmente nos colocam sob a pele de centenas de seres. Eles nos iluminam através das suas perspectivas sobre os desafios do viver e suas necessárias ações práticas, às vezes até mesmo diante de momentos-tabus, como o de quando lidar com o corpo de um (talvez) parente morto. Para ilustrar, vale recordar o comportamento de um cliente de Mateus Araripe, um autodeclarado “esteticista” funerário.

Desde o início do diálogo ligeiro, sem contextualização, que abre o primeiro conto da coletânea, intitulado “Mateus,” perpassamos um estranho humor através de fatos repugnantes e possíveis decisões oportunistas. “O senhor é parente?”, pergunta o esteticista. Evasivo, responde o cliente: “Pode ser” (9). Mateus faz saber: “Vai vazar... [...] Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam” (9). Após os dois acertarem o preço do serviço (800 reais incluindo a maquiagem do defunto, a venda da roupa, do terço, etc.), o cliente não hesita: “Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta” (10). O esteticista se mostra surpreso: “Que é isso, doutor... Que horror... Eu pensei que o senhor...” (10). O cliente não cede: “Pensei... pensei... o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro” (10). Logo arremata: “quem pensa demais acaba se enganando... Não esqueça a aliança, e os dentes de ouro, eu os quero também” (10).

 

Dário Borim Jr.. É tradutor, fotógrafo e professor de Literatura Brasileira na University of Massachusetts Dartmouth. 


Amores Encubados

 



Godofredo de Oliveira Neto – Amores Exilados – Editora Record. 239 páginas. 2011.
Amores Exilados é o título do livro décimo segundo livro de Godofredo de Oliveira Neto. Tecnicamente, o livro já havia sido publicado em 1997, numa espécie de livro avant la lettre sob o nome de Pedaço de Santo, mas o autor revisou boa parte do triângulo amoroso em questão e o transformou neste novo artefato literário. Paulo Mendes Campos disse um dia que “por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba. Este novo livro fala, como o próprio título enuncia, do exílio e do amor no plural, e de como o amor acaba, quando acaba. Assim como as saudades e a memória, que se não devidamente preservadas, também morrem aos poucos, Godofredo de Oliveira traça uma urdidura que, entre intrigas e enganos, carregada de tensão amorosa, militância política e a própria desconfiança patológica dos envolvidos nos movimentos revolucionários, leva ao limite o horizonte resolutivo das vidas clandestinas envolvidas.
A estória se centra no triângulo amoroso entre a francesa Muriel Sandrine Charlotte Leroux, o catarinense Fábio e seu companheiro de militância, o baiano Lázaro da Costa Costa, ambos exilados em Paris nos anos de chumbo - fazendo parte da mesma organização guerrilheira, a Aliança Socialista Libertadora. Os dois brasileiros vivem na clandestinidade e, exilados em Paris, fazem de tudo para se manterem longe dos problemas políticos internos do país e principalmente longe de problemas com a imigração francesa. Antes como imigrantes a exilados, na solidariedade forjada fora, recriam sua lógica de inserção e sociabilidades tentando participar do maior número de associações e grupos de debates possíveis, frequentando as reuniões com a comunidade brasileira de Paris e associações francesas na Maison de l'Amérique Latine, na Maison du Brésil da Cidade Universitária e na Mutualité. Era como se o exílio implicasse numa forma fatal de solidão e alienação e o reverso disso fosse a socialização. Uma sensação útil, verdadeira e válida em que por isso mesmo fosse tão importante estar unido ao amálgama dos estrangeiros exilados numa espécie de rede. Nessas redes de solidariedade discute-se política, arte, cultura, mas mais que isso, é onde os imigrantes aprendem sobre si próprios, dividindo perrengues e soluções, tais como conseguir um trabalho ou tal almejado estatuto de refugiado, afastando o fantasma do carimbo de indocumentando e evitando assim a deportação. Aprendem mesmo, por meios mais prosaicos, por onde manter contato com o Brasil usando telefone público em Denfer-Rochereau, que funcionava sem ficha, direto, de graça – tal como o mítico orelhão da Telerj, na Praça Tiradentes no final dos anos 1980. No orelhão de Denfer-Rochereau preço era sempre alto, pois o risco de ter as conversas gravadas pelos serviços de informação da França era sempre um medo a ser considerado.
O exílio, aliás, é um capítulo à parte: A solidão em alguns, a estranha alegria em outros, a angústia na maioria. O universo dos exilados era esse. A insegurança psicológica ou levava a abraçar com exagerado ardor o país do exílio ou a abominá-lo.” Outro, é o amor, ou o que se pensa de que é feito o amor. Godofredo, lá pelas tantas diz, Amar no exílio potencializa a sensibilidade” para o bem e para o mal, como fica claro no turbilhão obsessivo em que Fábio embraca na paixão por Muriel, que tal como uma espécie de Capitu, negocia de maneira sutil com as paixões de ambos, Lázaro e o próprio Fábio. No melhor estilo da dúvida deixada por Machado de Assis, Godofredo conversa bem com essa tradição literária “…Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu…. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca….” E isso fica claro numa das discussões entre Fábio e Muriel, antes da partida definitiva desta: Muriel fitava o companheiro. Parecia que ela não piscava; mais ainda parecia que as palavras diziam uma verdade, os olhos outra. Fábio escolhesse entre o verbo combinado, decorado, imitado e o cromatismo rebelde, livre, desconhecido.”


Fica evidenciado, assim, que para os dois brasileiros, mesmo apaixonados, ambos encaram de maneira distinta a solitude e a parceria, nas suas mais intimas interseções e tangências. Os enquadramentos do que é o amor, e de como ele vai terminando, tremulam e se desfocam de maneira distinta nas percepções do baiano e do catarinense. Lázaro o encara como algo fluido, na cabeça de Fábio como uma conquista onde a fidelidade amorosa é uma desesperada elipse que se opõe à realização da paixão. Os motivos são muitos. O ciúme, a parnóia, o abuso de tranquilizantes, as memórias traumáticas da tortura e das ações guerrilheiras das expropriações a bancos – por vezes, com desfechos trágicos – sobrepõe-se e atravessam o tempo todo a memória e as ações de Fábio. Outra coisa que não ajuda nada é a presença constante de Lazaro, que faz com que Fabio se sinta paranoicamente ameaçado e traído. Raiva, ódio e ira passam a se manifestar, borrando o equilíbrio do triângulo – que para Muriel e Lázaro era algo aparentemente natural. Ou seja, Eros, o propulsor da vida, dá lugar a Tânatos, sinonímia de ódio e agressividade, e todo o coletivo de significados onde pulsa o sentido de morte como fim. Dessa maneira, os amantes se deparam com a impossibilidade da posse real do ser amado e optam pela morte, pela perda, ou qualquer outra coisa. E é assim que Lázaro, o dissidente, o amigo de ala, o ex-companheiro de Muriel está lá o tempo todo. Pelo menos nos pensamentos de Fábio. Tá lá no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no retorcido do croissant, no disco do Geraldo Vandré presenteado pelo baiano. O baiano está em todo o canto, e o pior é que o baiano é um dos melhores amigos de Fábio.
O inferno na cabeça de um Fábio atormentado pelo seu passado recente de tortura, não estanca só com a prensença de Lázaro. Para piorar o baiano chama-a de Melusina e conhece alguns de seus segredos, sabe por exemplo, um pouco da difícil história de infância da francesa em Saint Bonnet de Salers no Cantal, perto de Aurillac. A mãe tinha matado o marido, quando a garota tinha sete anos. O pai de Muriel era na verdade um marinheiro grego, foragido de uma cadeia e que na fuga passou uma noite na casa do casal. Nasceu Muriel. O resto é a história que cruza o caminho do catarinense e do baiano, fazendo-os dividir a militência e as atenções da mesma mulher. Nesse contexto não teria como o ressentimento e as desconfiança de Fábio parasse de crescer, em proporções distorcidas.
No decorrer da leitura, não dá para deixar de associar, mais de uma vez, nossa Melusina com a Jeanne Moreau no filme de Truffaut, Jules et Jim, que o português chamou de Uma mulher para dois. Guardadas as proporções, a primeira metade do filme volta à memória quando a personagem Catharine, se une a Jules e depois da guerra, onde Jim e Jules lutam em campos opostos, acaba por se reaproximar de Jim. Algumas cenas do filme ficam vívidas no decorrer das linhas de Ameores Exilados. Mas as semelhanças param ai.
Godofredo constrói os personagens não em contradições, mas por descrições estanques, tornando precário entender mais de cada um, a não ser pelo que é dado pelo narrador em terceira pessoa. Talvez essa fosse uma das entratégias do autor, já que eram todos exilados e estranhos para eles mesmos. Até mesmo Muriel que fugia de seu passado, não deixava de ser uma exilada de si. A estratégia de Godofredo ao narrar é muito interessante, combinando quase que simultaneamente cenas do presente com flashbacks do passado de militância no Rio de Janeiro. Numa mesma tomada, estão todos os dissidentes jantando animadamente no apartamento de um amigo argelino em Paris e no parágrafo seguinte a cena da fuga pelo Estácio a caminho do Largo de São Francisco.
Essa estratégia persiste até a assembléia derradeira em Paris, quando Lázaro e Fábio sofrem um expurgo no dia 23 de setembro de 1973 - por razões meramente morais, diga-se de passagem - e são convocados para o retorno ao Brasil, entrando pela Bolívia, visando uma nova ação revolucionária. No Rio de Janeiro receberiam um envelope com instruções, alojamento e as armas. A partir desse momento, a estória ganha contornos interessantíssimos pois, pouco a pouco, a longa viagem de volta, na vida do exílio no exílio alimenta reflexões que abrem caminho para a revisão de suas certezas políticas. Lázaro, por exemplo, reavalia a luta armada e a tomada pura e simples do poder pelos operários e camponeses como um erro de adolescência ou de equívoco mesmo, mas encara o retorno de maneira menos dramática que Fábio. Fábio cruza fronteiras mais sensíveis. Não tem nada a perder depois de perder tudo o que um dia foi Muriel. Como o próprio título enuncia, neste livro, o exílio e o amor são sentimentos no plural : O amor adquire várias formas de afeição, e o exílio é muito mais que apenas um sentimento geográfico.


Musica do dia. Tristes Trópicos. Itamar Assumpção



Armadilha para Lamartine


Parafraseando Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954. A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares, das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus intestinos, o estatuto de realidade.
"O que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e verifiquei,
depois, a presença da minha já esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um tiro no peito, dentro do diário, é de ordem racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter cólicas intestinais. Mas segura este dado, por favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos grandes personagens da cena política, e chega e criticar violentamente nas linhas do diário os líderes militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização econômica só.
Espártaco é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas opressiva para os lados da cozinha e do quarto de empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família, mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine, mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto, que permanece intacto, um local de onde não consegue se desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando. (...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que “poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado, no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque sou o Cristo!”.
Mas vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de 1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa. Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto. Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho. Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da realidade e encarar a própria subjetividade narrando as coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente (Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações, merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo, viu a brecha e se animou com o imprevisto da ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas “mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas mas ficaram escondidas num lugar que só Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr. Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o “Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone. E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado. Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas “Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que? Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do Brasil…


MAURA LOPES CANÇADO

 



Título Maura Lopes Cançado
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: xilogravura


Filha de José Lopes Cançado e Affonsina Álvares da Silva, Maura foi a nona entre onze filhos. Nasceu a 27 de janeiro 1929, na próspera fazenda de seus pais em Minas Gerais, no atual município de São Gonçalo do Abaeté. Oriunda de uma família católica, não necessariamente mais rica, mas uma das mais aristocráticas mineira, Maura descendia de figuras históricas com forte influência e destaque na política mineira e nacional, sobressaindo o nome de José Maria Lopes Cançado - primo do pai de Maura -, um dos parlamentares participantes da Constituinte de 1946. A mãe de Maura, por sua vez, é descendente de Dona Joaquina Pompeu, latifundiária e mítica escravocrata na história mineira. Assim, cresceu com uma difusa sensação de que nem tudo é tão difícil como parece na vida.

Filha temporã, sua infância foi cercada de cuidados intensos, por apresentar uma saúde muito frágil. Um ambiente opressivo, onde tinha inveja da irmã mais nova, Selva, por exemplo, por esta poder usar um chapéu vermelho. Principalmente, por que a mãe tinha feito uma promessa de vesti-la apenas de azul e branco, cores da Nossa Senhora, enquanto o pai não permitia que se lhe cortassem os cabelo. A promessa tinha prazo de validade: até que completasse 7 anos. Mas justamente quando deixou de usar as cores, coincidência ou não, ela teve a primeira crise epilética.

Sua imaginação sempre foi intensa fabulando versões de sua própria vida. Contava às amigas de infância que era filha de russos e que um seu tio nascera na China. Aos 14 anos quis estudar alemão para ser espiã nazista, e voar.

Em tempos de estudante, frequentou as boas escolas de elite mineira, tendo por um período estudado em colégio interno em Patos de Minas.  Aos quatorze anos começou a frequentar o aeroclube de Bom Despacho com a intenção de tirar o brevê de aviadora. Ali conheceu o jovem de dezoito anos com quem iria se casar, Jair Praxedes, filho de um coronel do exército, de quem engravidou logo após o casamento, realizado apenas no religioso, dando à luz um menino Cesarion - mesmo nome do filho de Cleópatra e Júlio César. A relação durou doze meses. O casamento terminou quando tinha apenas quinze anos de idade, ano também marcado pela morte do pai.

Anos mais tarde a escritora descreveria sua passagem da infância para a  adolescência como “superangustiada”, cercada por pesadelos, tanatofobias, ataques de epilepsia, e, segundo relatou no Hospício é Deus, foi abusada sexualmente três vezes por empregados da família. Sobre o breve casamento, Maura admitiu que, durante o curto tempo de matrimônio, no fundo em quem pensava mesmo, sexualmente falando, era no coronel Praxedes, seu sogro, “maravilhoso, alto, imponente e importante”.

Com o filho ainda bebê, a mãe a presenteia com um pequeno avião, um Paulistinha - mesmo sabendo que a filha era epilética -, no qual coloca o nome de “Cesarion”, mas pouco tempo depois, o avião estava completamente destruído num pouso forçado de emergência. Foi então para Belo Horizonte para concluir seus estudos, mas o fato de ser jovem, mulher, divorciada, nos anos 1940, não reverberava bem no tradicional costume mineiro.  Com essa espécie de estigma, por ser uma mulher divorciada, perambulou de pensionato em pensionato, até poder se hospedar num luxuoso hotel na cidade. Morando sozinha, estudando duas ou três línguas, passou a frequentar a boemia de Belo Horizonte. Saía muito, fumava, bebia e frequentemente se divertia com esses novos amigos, até que em 1949, aos vinte anos, quando se descreveria como nervosa, doente, magra e sem sono, Maura se interna pela primeira vez na Casa de Saúde Santa Maria, uma clínica psiquiátrica, na capital de Minas Gerais. 

O fato é que Belo Horizonte ficara pequena para essa mulher que pensava e se comportava à frente de seu tempo. Sem perspectivas, decidiu então viver no Rio de Janeiro, aos 22 anos, não sem antes, no final dos anos de 1950, internar-se no Hospital Gustavo Reidel, no Engenho de Dentro. Se dizia uma mulher bonita e com uma inteligência acima do normal. 

Quando começa a se aproximar de jornalistas do Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã já se percebia uma personalidade sedutora e explosiva. Em menos de 7 anos já teria alguns polêmicos contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, passando a conviver e a beber com intelectuais e escritores como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Reynaldo Jardim.

Os ventos iam de encontro a Maura, pois coincidentemente o Suplemento Dominical tinha aberto espaço para essa nova geração de escritores, jornalistas e críticos que ainda contava com Ferreira Gullar, Mário Faustino, Clarice Lispector e José Louzeiro.  alguns destes  se tornariam platéia cativa para as histórias fantásticas de Maura.

Para se ter uma idéia da influência deste caderno do Jornal do Brasil, a arte de vanguarda tinha seu lugar de discussão no Suplemento Dominical, onde, entre outras coisas, o poeta Mário Faustino assinava a revolucionária página “Poesia-Experiência” e onde também foi publicado, em 1959, o famoso Manifesto Neoconcreto.

Quando o jornalista Sebastião de França, que morava na mesma pensão de Maura, nas proximidades da rua Riachuelo, trouxera o original de um poema para o parecer de Assis Brasil junto a uma advertência, “ela é maluca e bipolar," Assis responde: “Então somos dois”.

Aprovado pela editoria, o poema sai na primeira página do Suplemento Dominical em 24 de agosto de 1958,  ao lado de um artigo e um outro poema:   O artigo era da temida Barbara Heliodora sobre a visita do ator e teatrólogo Alessandro Fersen, e sua montagem Il Diavolo Peter, no Brasil. O poema ao lado, era de um poeta amazonense, o bissexto  Antisthenes Oliveira Pinto, um dos articuladores do Clube da Madrugada manauara.

No período em que colaborou com esses jornais, teve sucessivas crises que a levaram a hospitais psiquiátricos, sendo que boa parte dessas internações foram voluntárias. Uma das primeiras dessas crises mais evidentes acontece justamente quando da publicação de “No quadrado de Joana”, conto publicado na primeira página do SDJB, onde a personagem catatônica, obsessiva, anda em linha reta, sem parar, pelo pátio quadrado de um hospício. Na ocasião, Maura agradece tão exageradamente a Reynaldo Jardim, que o episódio é narrado da seguinte forma pelo jornalista José Louzeiro, colega de Maura no Suplemento Dominical, “Ela ficou tão surpresa que no dia seguinte, nós estávamos na redação – era uma redação só para o suplemento, um espaço muito bem iluminado, o chão muito cheio de sinteco –, ela se atirou no chão pra agradecer o Reynaldo Jardim, de joelhos. Escorregou, esfolou os dois joelhos, nos deu um trabalho… Tivemos que levar Maura na farmácia pra remendar o joelho, ficou todo esfolado. Essa era a Maura.”

Segundo Carlos Heitor Cony, este foi o início de uma série de contos magistrais. Cony declarou certa vez que a comparavam a Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. “Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura”, conclui Cony.

Maura se tornou escritora revelação de 1958 quando publicou em 16 de novembro “No quadrado de Joana”. Um conto que traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício, conto, inclusive, que chega a ser elogiado por Clarice Lispector. No ano seguinte publica 3 contos no Suplemento Dominical, "O Rosto" em 19 de abril, "Introdução a Alda" na edição de 22 de agosto e "O Sofredor do ver" em dezembro do mesmo ano. No ano de 1961 publica "Rosa recuada" em maio, e em julho publica um de seus mais tocantes contos, "Espiral ascendente", que traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia, a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre -  tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra e ameaçou jogar-se de uma cachoeira.  Uma situação que lembra bem o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud no limite da fronteiras da sanidade, entre a arte e a vida. Outros 2 contos, "A menina que via o vento" e "Espelho morto" seria publicados respectivamente em dezembro de 1964 e novembro de 1965. 

Já, tanto nesses primeiros contos, como em seu primeiro livro Hospício é Deus, apresentava uma escrita diferente. Uma preferência pela técnica narrativa da autoficção, permeada por uma veia confessional.  Não por acaso o crítico Assis Brasil, um dos poucos, senão o único crítico renomado a analisar seu livro de contos, a considerava uma revelação literária da virada dos anos 50 para os 60.

Ainda trabalhando na redação do Jornal do Brasil, tinha surtos bipolares. Num dos episódios de extrema agressividade, Maura atirou uma máquina de escrever pela janela da redação do JB. Também chegou a jogar uma estante sobre um colega sem nenhum motivo aparente. Reconhecendo sua própria fragilidade se internou voluntariamente, em 1959. Internou-se no Hospital Gustavo Riedel do Engenho de Dentro, ficando entre outubro de 1959 e março de 1960.

Nesse período, já com 30 anos. Por sugestão de Reynaldo Jardim, escreveu o diário que viria a ser publicado cinco anos mais tarde como O hospício é Deus: diário I, publicado em 1965, enquanto os contos que haviam sido lançados no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã viriam a ser publicados na coletânea O sofredor do ver, seu segundo e último livro com uma coleção de contos, em 1968.

Em O Hospício É Deus, descreve a infância passada na fazenda e analisa os precoces embates em seu mundo interior. As expressões e modo de narrar, denotam o contexto opressivamente religioso e católico que a obrigara a usar azul e branco até os 7 anos de idade. Denuncia os abusos sofridos por Maura e outros pacientes no Gustavo Riedel e foi um marco na luta antimanicomial:
Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providencias para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. […] o professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”.

Os diários teriam supostamente uma segunda parte que foi esquecida por José Álvaro, editor do livro, dentro de um táxi. Nunca foi encontrada. 

Após este período de internação,  já passava por dificuldades financeiras, dividindo apartamento na rua Riachuelo com uma bailarina e trabalhando como escrevente datilógrafa no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Permaneceu nesse trabalho, como funcionária pública, por oito anos, sempre entre uma licença e outra para se internar ainda às custas do IPASE, o extinto Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado.
Já nos anos 1970, estava num estado de completa pauperização. Dependia da ajuda de amigos e de seu incansável filho, Cesarion, agora com 27 anos. Ele a acompanhava e custeava as internações, algumas pela via de convênios médicos.

Segundo Carlos Heitor Cony, quando calma, era uma mulher “doce, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.”  

Numa dessas internações, na noite de 11 de abril de 1972, Maura, recolheu-se à noite para dormir. Cerca de três horas depois, foi até o consultório médico, dizendo a uma funcionária que havia matado uma das pacientes, que se encontrava na enfermaria do Hospital Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma jovem grávida, morta por estrangulamento, com uma faixa de pano rasgada de um lençol. O médico plantonista relatou que Maura assumiu a responsabilidade pela morte da jovem paciente.
Maura foi julgada pelo Tribunal do Júri e, em 15 de outubro de 1974. Foi considerada inimputável - incapaz de responder ao caráter criminal dos fatos cometidos. O juiz aplicou uma medida de segurança de internação em um estabelecimento psiquiátrico judiciário com uma duração de seis anos.

Nesta época, o manicômio judiciário do estado do Rio de Janeiro não aceitava mulheres e as clínicas e hospitais psiquiátricos particulares se recusavam a recebê-la. Maura foi então enviada à Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, onde ficaria por 6 anos.

A jornalista Margarida Autran encontrou a escritora em julho de 1977 no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito. Encontrou-a abandonada, numa cela imunda, infestada de percevejos. A jornalista a descreve como uma mulher envelhecida, desnutrida, parcialmente cega e com dentes podres, sem nenhum acompanhamento psiquiátrico. O banho de sol lhe era negado, por seu comportamento constantemente irascível, e seu único contato com o mundo era um radinho de pilha. Por meses ninguém a visitava. José Louzeiro e outros amigos do Sindicato dos Escritores do Município do Rio de Janeiro, compadecisdos, se prontificaram, à época, a pagar uma clínica psiquiátrica e a operação de cataratas, tendo votado a enxergar. Mas depois de seis anos de reclusão no hospital psiquiátrico, Maura foi solta em 1980, passando por várias outras clínicas nos 13 anos seguintes, sem nunca mais voltar a escrever.

Nos últimos anos, com a saúde debilitada pela asma e por não aceitar parar de fumar, passou a ser constantemente internada no Centro de Terapia Intensiva. Em 19 de novembro de 1993, Maura faleceu vítima de insuficiência respiratória decorrente de “doença pulmonar obstrutiva crônica”, aos 64 anos de idade, no Rio de Janeiro (RJ)
“Morreu esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas particulares”, escreveu Carlos Heitor Cony (1916-2018), em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo em junho de 2007.

No mesmo ano, Flávio Moreira da Costa organizou no Brasil a obra “Os melhores contos de loucura”, na qual é a única escritora mulher, que ainda estaria na expectativa de ser revisitada. Em 2011, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil reeditou pela primeira vez a íntegra do livro “O sofredor do ver” que possuía apenas uma edição conhecida e muito rara datada de 1968.



CAROLINA MARIA DE JESUS

 


Título Carolina Maria de Jesus
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: litogravura sobre xilogravura
 
Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira, escreveu Carolina Maria de Jesus em um dos seus livros mais emblemáticos. Nasceu a 14 de março de 1914, na cidade mineira de Sacramento. A mãe era uma pequena agricultora, sendo que o pai era um homem bastante agressivo. Ambos semi-letrados. Cresceu sempre com alguns problemas respiratórios e aos sete anos, a mãe obrigou-a a frequentar a escola. Mas ela abandonou os estudos no segundo ano, por já entender que sabia ler, escrever, e perceber que tinha já apego suficiente à leitura, para que não precisasse mais da escola.
Quando sua mãe morreu, tinha 23 anos e migrou para São Paulo, tentar a vida. Na cidade, trabalhou como babá, doméstica, explicadora, e catadora de papel. Por um tempo foi empregada doméstica de um famoso cardiologista paulista, o que permitiu Carolina ter acesso à biblioteca do médico, nos dias de folga.
Em 1937, se muda para o novo bairro do Canindé, uma comunidade pobre às margens do Rio Tietê, onde constrói, ela própria, uma casa com restos de papelão, madeira e chapas de metal. Aos 33 anos, desempregada e grávida tem seu primeiro filho de uma relação com um marinheiro português, passando a dividir seu tempo entre cuidar do bebê e sair pelas noites para coletar papel, a fim de conseguir dinheiro para sustentar a nova família. Carolina teria mais dois filhos em 1949 e 1953. Os três filhos, como ela mesmo disse, foram de relacionamentos diferentes e todos frutos de gravidezes não planejadas, o primeiro filho nasceu de um português, o segundo de um comerciante espanhol e a terceira  de empresário brasileiro que a agredia e humilhava. Carolina nunca quis se casar para, ainda segundo ela, não ter que ser submissa aos homens.
Ao mesmo tempo em que trabalhava como empregada doméstica ou catadora, ia registrando o cotidiano da comunidade onde morava nos cadernos que encontrava e no material que recolhia. Em algo como 15 anos, juntou mais de vinte cadernos de escritos, cujos crassos erros gramaticais e de grafia, ao mesmo tempo em que denunciavam sua pouca escolaridade, não a impediram de fazer sucesso no mercado editorial. Um destes cadernos, um diário que havia começado em 1955, deu origem a seu livro mais famoso, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960, no qual ela supostamente diz, Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira.  
Qualquer aluno da área de humanas em estudos latino americanos numa universidade americana, qualquer mesmo, já folheou Quarto de Despejo, que na versão deles saiu com um título mais edulcorado: Child of the Dark. Alunos brasileiros não tiveram esse privilégio intelectual por algumas décadas, pois suas reflexões sobre o Brasil, a miséria, a desesperança, a violência, e a condição da mulher negra na miséria brasileira, não se encaixaram no Modernismo, nem em suas versões regionalistas plastificadas, nem em sua terceira fase de prosa urbana, e nem na prosa memorialista ou autobiográfica de um Pedro Nava ou Érico Veríssimo. E, muito, muito menos no otimismo dos 50 anos em 5 do período Kubitschek.
Estima-se que o livro, ao longo dos anos vendeu mais de 1 milhão de cópias. Em 1962, Quarto de Despejo foi publicado nos Estados Unidos pela editora E. P. Dutton com o título Child of the Dark. No ano seguinte, como parte da coleção Mentor, a tradução ganhou uma edição de bolso publicada primeiro pela New American Library, depois pela Penguin USA. No Brasil, chegou a ficar na lista dos mais vendidos por meses, batendo inclusive Gabriela, cravo e canela do já renomado Jorge Amado.
Segundo o historiador americano Robert Levine, somente das vendas desta edição, que totalizaram mais de trezentas mil cópias nos EUA, Carolina e sua família deveriam ter recebido, pelo contrato original, o equivalente a mais de cento e cinquenta mil dólares. Mas a autora nunca viu a cor desse dinheiro.
As hipóteses para que isso tivesse acontecido são muitas, e envolvem um compreensível desconhecimento da autora sobre as falcatruas do mercado editorial, um certo mau-caratismo de editores, e até uma suspeita de estelionato intelectual. Tudo vago e nebuloso, numa óbvia maciota, onde mesmo que ninguém possa provar nada contra ninguém, fica aquela pulga atrás da orelha.
É certo que Carolina tinha direito a dez por cento do preço de venda das traduções, com trinta por cento de sua parte reservada ao jornalista Audálio Dantas, que trabalhava como uma espécie de copidesque, revisor e agente literário. Até aí, tudo bem. Ela recebia pequenos pagamentos em dólares das editoras americanas, mas, por força do contrato original, não podia autorizar traduções de sua obra: este direito fora cedido à editora Paulo de Azevedo, uma filial da editora Francisco Alves.  
De uma certa forma, o encontro com o jornalista Audálio Dantas, da Folha da Noite, em 1958, foi fundamental para que Carolina Maria de Jesus fosse conhecida como escritora. Alegou-se por muito tempo que o jornalista foi até a comunidade para fazer uma reportagem. Em lá chegando viu uma mulher negra, magra, mercurial, esbravejando contra uns homens que tomavam o espaço destinado às crianças, e ameaçando-os: caso não saíssem dali, iria colocá-los em seu livro. Audálio, com seu faro jornalístico, quis ver os manuscritos do tal livro. O nexo que fez aquele alagoano ir até a rua A, barraco número 9, entrar na casa humilde, constatar a miséria, pegar alguns daqueles cadernos encardidos, folheá-los, certificar-se dos imensos erros gramaticais, e assim mesmo levá-los consigo para ler com mais calma em casa, é um desses mistérios da intuição sobre o cheiro da notícia, que o jornalismo somente mostra para os bons jornalistas.
Carolina permitiu que Audálio levasse uma meia dúzia desses cadernos, dos quais primeiramente publicou trechos na Folha da Noite, em 1958. Os cadernos tinham 13 entradas com contos, poemas, confissões, e começavam em 1955. Audálio Dantas, então, organizou este material e começou a publicá-los homeopaticamente, conseguindo inclusive uma publicação da revista O Cruzeiro - com a qual ele passaria a colaborar em 1959, chegando a viajar por vários países da América Latina em reportagens como correspondente. Paralelamente, tocava as negociações com a Livraria Francisco Alves para que Quarto de Despejo mantivesse a grafia original, revisando apenas a pontuação.
Anos mais tarde, misteriosamente, essa versão é desmontada pelo próprio Audálio no livro Tempo de Reportagem (Leya), ao menos parcialmente. O autor afirma que durante anos Carolina andara pelas redações dos jornais, inclusive do Rio de Janeiro(!) anunciando-se como poetisa negra, sem ser levada muito a sério por nenhum repórter. Segundo o próprio jornalista, Carolina já tinha sido protagonista de uma reportagem, nos anos quarenta, e também já tinha publicado alguns de seus poemas na Folha da Manhã em fevereiro de 1940, sem muita repercussão. Ou seja, é como quem diz, não sou o responsável nem o culpado pelo que se gerou, pois Carolina já se entendia como escritora e perseguia esse momento de glória por mais de 20 anos.
O relacionamento pessoal de Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus, sempre foi marcado por uma certa tensão exposta nos diários dela, o que leva pesquisadores contemporâneos a questionarem até mesmo a idoneidade de Audálio Dantas, já que ao mesmo tempo em que a estimulava para que escrevesse cada vez mais, insistia para que Carolina continuasse escrevendo numa linguagem confessional no formato de diários do cotidiano. E a razão era transparente. O mercado aceitava. E mais, o mercado queria textos desse formato, vindos de uma escritora negra e marginalizada. Ele entendera isso desde o primeiro livro. Ela também, mas se rebelava contra essa certa imposição classista que beirava o racismo.
Daí surgiram vários atritos, que não se limitavam a questões estilísticas do texto de Carolina. E as divergências surgiram justamente quando começavam a entrar os primeiros dinheiros da publicação. Exemplo: em 1961 ela compra uma casa num bairro de classe média paulistana, ainda com os móveis dos antigos moradores dentro, dos quais não conseguia se livrar. Audálio intermediara a compra dessa primeira casa de alvenaria para Carolina. Uma casa entulhada de moveis velhos, suja e infestada de pulgas. E não parava aí. Ele sugeria em como gastar seus proventos, abria suas correspondências, e estava sempre por perto quando se tratava de dinheiro e controle das novas experiências de socialização nos novos círculos literários. Audálio Dantas já tinha até nome para o novo livro que o mercado queria: Casa de Alvenaria.
Uma relação profissional de altos e baixos que extrapolava o profissionalismo. Uns dias ela se queixava de Audálio, comparando-o inclusive a um senhor de escravos, e em outras ocasiões dava-lhe acesso aos talões de cheque e até mesmo a chave da casa para que entrasse quando quisesse.  
No ano seguinte ao lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, o crítico de teatro Decio de Almeida Prado deu notícia da adaptação da obra para teatro feita pela escritora gaúcha Edy Lima - uma escritora sem experiência em adaptações teatrais. Com Ruth de Souza no papel de Carolina, a peça teve direção de Amir Haddad e cenário de Cyro Del Nero. Ruth de Souza, que era dez anos mais nova que Carolina e aceitou o papel como um desafio numa fase de transição da vida. A atriz, que já estudara na Howard University em Washington D.C., a convite do Itamaraty, e com peças e filmes marcantes na carreira, vinha militando no Teatro Experimental do Negro desde meados dos anos 40, sempre com papéis secundários. Resolveu deixar o grupo para encarar novos desafios no grupo Vera Cruz - o que gerou inclusive algum atrito com Abdias do Nascimento. Já com participações em filmes como Sinhá Moça, e peças marcantes na carreira como Oração para uma negra, de 1958 de William Faulkner, Ruth vai à Favela do Canindé com Carolina e o local onde ela havia residido antes do sucesso repentino. A peça em si não agradou muito aos críticos, que viram uma adaptação mais para o cômico – focando nas brigas e bate-bocas da comunidade – que para o drama. Entretanto, Ruth de Sousa foi poupada das críticas, assumindo que a atriz sustentou realisticamente até o fim o peso dramático do sofrimento da protagonista Carolina Maria de Jesus.
Com o lançamento do primeiro livro, já adaptado para o Teatro, mesmo que numa montagem mal feita - segundo os críticos -, Carolina se lançou em novas veredas. Poucos sabem, mas além de escritora Carolina  cantava e tocava violão. E bem. Chegando inclusive, em 1961, a gravar um disco com 12 faixas, raríssimo hoje em dia, chamado Quarto de Despejo, com músicas de sua autoria. As loas se seguiam. As traduções do livro para o inglês, francês e italiano já estavam no prelo internacional e até a revista Paris Match chegou a fazer um perfil completo da escritora. Enquanto no Brasil recebia críticas e comentários elogiosos de escritores e intelectuais como Sérgio Milliet, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira, no exterior, Carolina era recebida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octávio Paz.
Certamente, Quarto de Despejo, é uma narrativa cheia de melancolia, com muitas lacunas sobre a vida pessoal, mas que propicia ao leitor um mergulho no cotidiano de uma mãe solteira, negra, pobre, que luta para manter os filhos em meio a um ambiente hostil cercado por vizinhos pouco solidários. A autora relatou no livro que muitos dos moradores da favela eram rudes e a hostilizavam, e isso ficou claro principalmente quando começou a fazer sucesso. Carolina definiu a favela como "tétrica", "recanto dos vencidos" e "depósito dos incultos que não sabem contar nem o dinheiro da esmola." Algo que Lima Barreto também chegou a dizer, certamente com muito mais resignação, sobre subúrbio do Rio.
O cotidiano da vida no Canindé, narrado no livro é violento, cheio de doenças, inveja, histórias de alcoolismo, fome e esquecimentos. A fome, aliás, logo de início, é definida como a escravidão do Brasil moderno. Nesse sentido o livro já começa com um soco no estômago do leitor. Logo no início, ela fala que não tem dinheiro nem sequer para um presente de aniversário da filhinha mais nova, Vera. O jeito foi arranjar um sapato no lixo “e dar uma arrumada nele para que a menina não ficasse sem a lembrança na data especial”.
Nestes anos seguintes a vida tinha melhorado. Não muito. Um pouco. Carolina e a família, após vários problemas de relacionamento com a vizinhança, já não moravam em Santana. Agora vivam numa casa mais simples em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo, a duas horas do centro. A essa altura, em 1963, publicou, por conta própria, o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, que apesar de não trazerem muito retorno financeiro, vinham num momento da vida em que a luta desesperada pela sobrevivência dera uma trégua.  O filho mais velho, já com 21 anos, trabalhava numa fábrica, e os dois menores ainda estavam concluído seus estudos secundários. Nesses primeiros anos em Parelheiros, por algum motivo deixou de receber seus direitos autorais, e novamente, Carolina Maria, foi obrigada a voltar às ruas para catar papelão e garrafas para vender, além plantar abacates, bananas e mandiocas para serem vendidos num mercado local. Ou seja, vida melhorara, mas parece irônico que para uma escritora já com quase 50 anos e quatro livros publicados, e um destes sendo vendido em 14 países, não melhorara o suficiente para tirá-los da linha da pobreza.
O tempo passava e o estrondoso sucesso do primeiro livro foi ficando datado e opaco na memória, enquanto os subsequentes não chegavam a empolgar. O público leitor brasileiro, que esperava os diários seguintes com um mínimo de confissões e indiscrições, não parece ter visto grandes novidades nas obras posteriores. E aquele livro, que fora abraçado pelo leitor de classe média e se tornara fenômeno editorial, edulcorando um certo fetiche de objeto exótico da pobreza, foi ficando esquecido.
Com as quedas das vendas dos livros, houve um afastamento natural entre Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus. Coincidência ou não, em 1965 Dantas e Carolina cortaram relações e em 1966, Audálio trocou a revista O Cruzeiro pela Quatro Rodas onde foi ser editor de Turismo. Nesta época virou correspondente da revista Veja em uma guerra que acontecia em Honduras nos tempos do golpista Lopez Orellano. Em 69, mudou para a revista Realidade. Diz que nunca mais viu Carolina.
Recentemente, alguns estudos acadêmicos, afirmam que o trabalho do jornalista não se limitou à edição e ao prefácio do livro. Acredita-se que Audálio usou menos de 10% do material recebido de Carolina ( que passavam das 2000 páginas), exercendo uma forma de controle sobre sua fala. Isso dizem os acadêmicos. Os manuscritos de Casa de Alvenaria, por exemplo, teriam mais de 700 páginas. Algo que seria inviável do ponto de vista editorial.
Além disso, há passagens inteiras em Casa de Alvenaria que ela nem sequer escreveu o que aparece no livro tal como publicado, como o encontro da escritora com o ator Grande Otelo, por exemplo – que de fato aconteceu, mas que não há vestígios de registro nos originais, até o momento. Chega-se a desconfiar que Audálio mesmo não tendo interferido no contrato com a edição brasileira, chegou a interceder nos acordos de tradução entre a Francisco Alves e editores estrangeiros, mas não necessariamente em benefício próprio. Nos diários, muitas vezes, Carolina afirma que Dantas sacava no banco as transferências que vinham do exterior, e fazia os pagamentos para a escritora em dinheiro. Como aconteciam atrasos e variações cambiais, a escritora passara a ficar desconfiada. Em 11 de dezembro de 1963, ela escreve no diário: “O povo fala que o Audálio ficou rico com meu livro […] que espoliou minha ingenuidade. Mas tudo tem um dia de libertação. E agora eu estou livre! Mas quem continua recebendo o dinheiro dos direitos estrangeiros é o meu sinhô Dantas…”. As recentes leituras dos diários também dão conta que os dois tiveram um caso, numa dessas viagens ao exterior, e tudo pode não ter passado de um grande mal entendido passional – ou não.
O próprio biógrafo Tom Farias, trata a questão toda com muita honestidade e profissionalismo. Mas o fato é que para limpar essa barra de homem branco, opressor e aproveitador da biografia de Audálio Dantas, nos dias de hoje, vai ser difícil. Mesmo sabendo que ambos eram adultos e vacinados, e mesmo sabendo que pouco antes de morrer, Carolina de Jesus dissera em entrevista que Audálio era uma “boa pessoa” e não mais aquele “sinhozinho” que escrevera nos idos 1963, a pulga sempre fica atrás da orelha.
E escritora publicou quatro livros em vida. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada; Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada; Pedaços de fome e Provérbios e postumamente foram publicados mais seis livros, entre contos e fragmentos adicionais de diários. 
Carolina Maria de Jesus morreu aos 62 anos em seu quarto, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977. Vítima de uma crise de insuficiência respiratória devido à asma, doença que carregava desde seu nascimento. Sua trajetória como escritora e mulher negra, que tinha muito a dizer, nos faz pensar na grande balela que é a ideologia da meritocracia no Brasil, já que usar Carolina de Jesus como exemplo do "quem quer, vence" sempre pode ter algo de inequívoco, dependendo sempre de qual berço a pessoa veio.