Armadilha para Lamartine


Parafraseando Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954. A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares, das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus intestinos, o estatuto de realidade.
"O que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e verifiquei,
depois, a presença da minha já esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um tiro no peito, dentro do diário, é de ordem racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter cólicas intestinais. Mas segura este dado, por favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos grandes personagens da cena política, e chega e criticar violentamente nas linhas do diário os líderes militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização econômica só.
Espártaco é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas opressiva para os lados da cozinha e do quarto de empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família, mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine, mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto, que permanece intacto, um local de onde não consegue se desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando. (...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que “poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado, no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque sou o Cristo!”.
Mas vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de 1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa. Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto. Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho. Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da realidade e encarar a própria subjetividade narrando as coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente (Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações, merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo, viu a brecha e se animou com o imprevisto da ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas “mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas mas ficaram escondidas num lugar que só Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr. Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o “Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone. E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado. Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas “Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que? Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do Brasil…


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