Parafraseando
Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família
doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine
não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954.
A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma
família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a
partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do
eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de
casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que
a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o
pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível
de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro
era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava
minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares,
das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores
da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo
acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus
intestinos, o estatuto de realidade.
"O
que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e
verifiquei,
depois, a presença da minha já
esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no
seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está
olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o
que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais
irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um
tiro no peito, dentro do diário, é de ordem
racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos
que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia
ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de
que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há
nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter
cólicas intestinais. Mas segura este dado, por
favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma
elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à
presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de
Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos
grandes personagens da cena política, e chega e
criticar violentamente nas linhas do diário os líderes
militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização
econômica só.
Espártaco
é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de
olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu
redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a
casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a
gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago
privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é
parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só
é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que
aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine
é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua
classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial
da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas
opressiva para os lados da cozinha e do quarto de
empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro
de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que
já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é
até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e
filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família,
mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não
se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para
muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e
que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de
Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o
sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais
interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que
acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine,
mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto,
que permanece intacto, um local de onde não consegue se
desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se
esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à
casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela
polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório
Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de
Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por
que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha
aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo
sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui
defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois
de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que
estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de
areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da
água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do
Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando.
(...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina
enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente
abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só
me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente
desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e
entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que
estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que
“poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado,
no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe
as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não
sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de
fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque
sou o Cristo!”.
Mas
vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da
internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no
sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro
interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe
telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as
mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de
Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário
da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de
Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua
estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de
1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma
narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é
realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na
varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é
absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De
saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou
suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa.
Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos
estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está
faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para
outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus
vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos
de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto.
Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho.
Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece
à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é
possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura
das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só
ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da
realidade e encarar a própria subjetividade narrando as
coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os
fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito
interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita
do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por
Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente
(Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com
Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam
proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações,
merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante
extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo,
viu a brecha e se animou com o imprevisto da
ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas
“mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do
Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas
cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca
facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas
mas ficaram escondidas num lugar que só
Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr.
Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste
momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do
Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o
“Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e
o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a
versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o
hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia
que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone.
E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto
de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que
sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado.
Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas
“Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha
para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos
Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que?
Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como
o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos
Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário
tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho
realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar
os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção
de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O
livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do
Brasil…
Parafraseando
Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família
doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine
não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954.
A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma
família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a
partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do
eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de
casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que
a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o
pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível
de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro
era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava
minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares,
das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores
da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo
acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus
intestinos, o estatuto de realidade.
"O
que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e
verifiquei,
depois, a presença da minha já
esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no
seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está
olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o
que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais
irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um
tiro no peito, dentro do diário, é de ordem
racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos
que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia
ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de
que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há
nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter
cólicas intestinais. Mas segura este dado, por
favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma
elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à
presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de
Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos
grandes personagens da cena política, e chega e
criticar violentamente nas linhas do diário os líderes
militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização
econômica só.
Espártaco
é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de
olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu
redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a
casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a
gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago
privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é
parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só
é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que
aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine
é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua
classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial
da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas
opressiva para os lados da cozinha e do quarto de
empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro
de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que
já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é
até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e
filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família,
mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não
se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para
muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e
que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de
Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o
sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais
interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que
acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine,
mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto,
que permanece intacto, um local de onde não consegue se
desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se
esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à
casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela
polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório
Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de
Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por
que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha
aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo
sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui
defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois
de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que
estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de
areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da
água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do
Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando.
(...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina
enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente
abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só
me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente
desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e
entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que
estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que
“poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado,
no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe
as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não
sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de
fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque
sou o Cristo!”.
Mas
vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da
internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no
sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro
interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe
telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as
mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de
Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário
da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de
Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua
estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de
1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma
narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é
realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na
varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é
absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De
saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou
suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa.
Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos
estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está
faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para
outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus
vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos
de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto.
Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho.
Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece
à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é
possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura
das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só
ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da
realidade e encarar a própria subjetividade narrando as
coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os
fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito
interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita
do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por
Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente
(Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com
Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam
proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações,
merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante
extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo,
viu a brecha e se animou com o imprevisto da
ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas
“mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do
Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas
cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca
facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas
mas ficaram escondidas num lugar que só
Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr.
Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste
momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do
Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o
“Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e
o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a
versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o
hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia
que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone.
E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto
de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que
sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado.
Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas
“Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha
para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos
Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que?
Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como
o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos
Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário
tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho
realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar
os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção
de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O
livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do
Brasil…
Parafraseando
Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família
doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine
não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954.
A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma
família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a
partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do
eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de
casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que
a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o
pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível
de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro
era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava
minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares,
das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores
da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo
acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus
intestinos, o estatuto de realidade.
"O
que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e
verifiquei,
depois, a presença da minha já
esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no
seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está
olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o
que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais
irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um
tiro no peito, dentro do diário, é de ordem
racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos
que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia
ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de
que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há
nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter
cólicas intestinais. Mas segura este dado, por
favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma
elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à
presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de
Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos
grandes personagens da cena política, e chega e
criticar violentamente nas linhas do diário os líderes
militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização
econômica só.
Espártaco
é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de
olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu
redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a
casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a
gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago
privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é
parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só
é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que
aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine
é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua
classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial
da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas
opressiva para os lados da cozinha e do quarto de
empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro
de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que
já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é
até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e
filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família,
mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não
se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para
muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e
que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de
Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o
sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais
interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que
acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine,
mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto,
que permanece intacto, um local de onde não consegue se
desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se
esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à
casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela
polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório
Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de
Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por
que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha
aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo
sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui
defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois
de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que
estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de
areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da
água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do
Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando.
(...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina
enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente
abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só
me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente
desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e
entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que
estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que
“poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado,
no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe
as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não
sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de
fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque
sou o Cristo!”.
Mas
vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da
internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no
sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro
interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe
telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as
mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de
Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário
da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de
Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua
estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de
1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma
narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é
realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na
varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é
absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De
saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou
suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa.
Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos
estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está
faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para
outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus
vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos
de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto.
Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho.
Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece
à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é
possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura
das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só
ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da
realidade e encarar a própria subjetividade narrando as
coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os
fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito
interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita
do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos
Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por
Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente
(Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com
Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam
proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações,
merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante
extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo,
viu a brecha e se animou com o imprevisto da
ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas
“mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do
Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas
cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca
facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas
mas ficaram escondidas num lugar que só
Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr.
Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste
momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do
Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o
“Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e
o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a
versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o
hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia
que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone.
E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto
de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que
sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado.
Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas
“Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha
para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos
Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que?
Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como
o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos
Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário
tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho
realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar
os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção
de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O
livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do
Brasil…
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