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LUIZ PACHECO

 


Título: Luiz Pacheco
Dimensões: 9x9cm
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Maio de 2022
 
 
Luiz José Gomes Machado Guerreiro Pacheco foi um poeta surrealista, editor, crítico literário, enfim um comunista e grande polemista, de quem se disse quase tudo de mal e feio, enquanto vivo e depois de morto. Nasceu em Lisboa a 7 de maio de 1925. Era filho único de uma família de classe média de origem do Alentejo, o pai era funcionário público e músico amador. Na juventude, Luiz Pacheco teve alguns envolvimentos amorosos com mulheres menores de idade, o que o levaria por duas vezes à prisão.
 
Estudou no Liceu Camões e frequentou o primeiro ano do curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa. A partir de 1946, trabalhou como agente fiscal da Inspeção Geral dos Espetáculos, acabando por se demitir, por ter se cansado do trabalho. Essa inconstância juvenil o acompanhou por quase toda sua vida, conformando a trajetória de sua existência atribulada. Cada vez com mais filhos e sem meios de subsistência para sustentar as famílias já numerosas e crescentes - que ao todo foram 8 filhos de 3 mães adolescentes - chegou mesmo a viver em alguns momentos às custas de esmolas, hospedando-se em quartos alugados e indo parar à fila da Sopa dos Pobres.

A partir de 1945 começa a fazer alguns amigo  e inimigos quando começa a publicar diversos artigos em vários jornais e revistas, como O GloboBlocoAfinidadesO VolanteDiário IlustradoDiário Popular e Seara Nova. Em 1950, funda a editora Contraponto, onde publica escritores como José Cardoso Pires, Maria Lisboa, Raul Leal dentre muitos outros de quem, inclusive, conseguiu ser amigo.

Foi sempre muito próximo dos surrealistas portugueses e verdadeiramente o seu primeiro e apaixonado editor. A relação começa por volta de 1953 quando publica o Manifesto Surrealista “Afixação Proibida”. O crítico João Gaspar Simões chamou-o de "sacristão do surrealismo", se tornando amigo íntimo de António Maria Lisboa e de Mario Cesariny, que mais tarde cortaria relações com Pacheco por desavenças intelectuais, mas que de fato se deviam à questões paralelas. Quando em 1959 Cesariny troca a Contraponto pela Guimarães Editores, o caldo entorna. Pacheco sente-se traído e aproveita a ocasião de uma exposição de pinturas de Cesariny para escrever um artigo “Cesariny ou do Picto-Abjeccionismo” onde expões 3 razões para se detestar as pinturas de Cesariny, dentre elas, acusações de que se vendera ao Mercado, e de que a obra não passaria de um bluff surrealista, o que a geração atual talvez chamasse de fake. A briga se prolonga por alguns anos e Cesariny. O espólio dessa guerra é recolhido por um Pacheco com faro de editor, para publicar em 1974 o volume Pacheco vs Cesariny. Cesariny por sua vez funda o jornal O Gato, onde revela implicações sobre a suposta homossexualidade de Pacheco. Fato que Pacheco jamais perdoaria em Cesariny, e sempre que tinha a oportunidade de soltar algum veneno contra o antigo desafeto o fez, mesmo depois da morte de Cesariny.
 
Abrasivo, Pacheco era um homem sem filtros no melhor estilo das personalidades encrenqueiras e bipolares. Um crítico furioso, mas com uma lucidez provocadoramente genial. De sua boca saíram pérolas de insultos que muitos já até chegaram a pensar, mas pouquíssimos teriam a coragem sequer de dizer a primeira sílaba de seus pejorativos. Para ele, o escritor Fernando Namora era menor que um cão, Saramago deveria ter parado de escrever em “Memorial do Convento”, Inês Pedrosa era uma estúpida, Natália Correia uma devassa, e Cesariny, por alguns anos um dos seus melhores amigos literários, era um poeta de urinóis. Mais direto, corrosivo e politicamente incorreto, impossível.
 
Com Herberto Helder chegou quase às vias de fato. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, Helder havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo nosso bom e velho safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que agora decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.
 
Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o velho Pacheco, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. E realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns, e outros dizem até que rindo de toda aquela situação.
 
Pacheco era alto, magro, careca, usava óculos de lentes grossas decorrente de fortíssima miopia. Beberrão, porém hipersensível ao álcool desconcertava-se facilmente. Além do mais, era um inveterado hipocondríaco, o que lhe dava um ar compassivo pela sua asma crônica e caricato por vestir roupas usadas e andrajosas, ao mesmo tempo.
A sua obra literária, constituída por pequenas narrativas e relatos (nunca se dedicou ao romance ou ao conto) tem um forte pendor autobiográfico e libertino, inserindo-se naquilo a que ele próprio chamou de corrente "neo-abjeccionista". Em O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor (escrito em 1961), texto emblemático dessa corrente e que muito escândalo causou na época da sua publicação (1970), narra um dia passado numa Braga fantasmática e lúbrica, e a sua libertinagem mais imaginária do que carnal, que termina de modo frustrantemente num onanismo solitário.
Excêntrico, em 1989, Luiz Pacheco tornou-se militante do PCP, segundo o próprio afirmou em entrevista, "para ter um enterro igual ao de Ary dos Santos". Morreria 19 anos depois, sem a mesma pompa de Ary. Passou os últimos anos fisicamente debilitado, quase cego em decorrência de uma catarata, na casa de um filho, e posteriormente passaria por quatro lares de idosos na cidade de Montijo. Morreu a 5 de Janeiro de 2008, a caminho do hospital de Montijo.
 
 


ANTÔNIO GANCHO

 



Título António Gancho
Dimensões: 9x9cm
Data: junho de 2022
Técnica: xilogravura
 
António Luís Valente Gancho foi um poeta português, nascido EM 1940, na Rua dos Touros, n.7, em Évora. Poucos mais do que alguns episódios erráticos se sabe de sua infância. Sabe-se, por exemplo, que a família muda-se de Évora para Lisboa em 1957, quando o rapaz tinha 17 anos, e que teve um certo amor não correspondido no Liceu, por uma tal Gisela. Sabe-se que a avó morreu no ano de 1972, quando este já estava ingressado em instituições psiquiátricas, e que a após a morte do irmão não voltou mais a escrever. E não muito mais se sabe deste homem que é poeta.

Vítima das misérias institucionais do Estado e até mesmo de abuso psiquiátrico, António Gancho viveu desde seus 28 anos, em instituições psiquiátricas, internado primeiramente no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos após uma tentativa de suicídio, e, a partir de 1967, definitivamente na Casa de Saúde do Telhal, uma instituição psiquiátrica pertencente à Ordem Hospitaleira São João de Deus, na região de Sintra. Aí morreria o poeta em 2 de Janeiro de 2006. Foram 38 anos de sua vida em tais manicômios.

Afastado forçosamente da convivência editorial devido ao seu internamento, foi através do contacto com alguns amigos dentre os quais se destacam Álvaro Lapa, Ernesto Sampaio, António Palolo e Mário Cesariny, que frequentavam o mítico Café Gelo, e que eram ligados ao grupo dos surrealistas, que a sua produção chegou às mãos de um editor. Foi Álvaro Lapa, pintor e escritor, seu conterrâneo de Évora e frequentador do mítico Café, quem arranjou um editor quando o poeta disse que tinha um livro para publicar.
A poesia de António Gancho permaneceu inédita até 1985, data em que Herberto Helder reuniu, na sua antologia Edoi Lelia Doura, onze poemas do autor até então completamente desconhecido. Helder convidou-o para com uma seleção de 11 poemas em sua antologia Edoi Lelia Doura das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 1985).

Posteriormente viriam dois livros O Ar da Manhã, de 1995, com toda a sua poesia reunida desde a década de 1960 até 1985, e As Dioptrias de Elisa de 1997. Para os que queiram se iniciar na poesia de Gancho, O ar da Manhã é um livro interessante, dividido em três conjuntos autónomos de poemas («Gaio do Espírito», 1985/86, «Poesia Prometida», 1985, e «Poemas Digitais», 1989). Trata-se de uma série de poemas que ora, exploram um jogo de palavras e sentidos que permitem quase uma materialidade sonora que ocorre em «Route / Rota / Caminho puro e são / Chanção / Coração / Sahara / Uazara / Oasara / Oasimara», ora traçando uma interessante intertextualidade com outros autores, como quando faz um tributo a François Villon e Oscar Wilde, escrevendo poemas em seus idiomas originais. Tais poemas provam que dominava do idioma francês e do inglês. 

Por vezes imprimia uma lucidez obscura, noturna, talvez decorrente dos sofrimentos e privações em instituições psiquiátricas, “Noite, vem noite sobre mim sobre nós/ dá repouso absoluto de tudo/ traz peixes e abismos para nos abismarmos/ traz o sono traz a morte…” 
 

 


GRAMIRO DE MATOS

 


Título Gramiro de Matos 
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

É como se para um poeta fosse um grande azar ter nascido na terra de Gregório de Matos, Caetano e Dorival Caymmi. É muito complicado se falar de um poeta baiano desconhecido, maldito e esquecido, mas Ramiro Silva Matos Neto nasceu em uma pequena cidade do interior da Bahia, Iguaí, em março de 1944. Filho de Izaias Rocha de Matos, um construtor de casas e pintor naif e Anália Silva Matos, fez o curso primário em sua terra natal, transferindo-se para Vitória da Conquista – BA, onde estudou e concluiu o curso ginasial. Em Jequié-BA estudou o colegial e em Salvador – BA, pela Universidade Federal da Bahia, formou-se em Direito, em 1973.

Durante o curso de direito frequentou as aulas de teatro na Universidade Federal da Bahia, onde fez parte de movimentos artísticos que emergiam por toda a cidade de Salvador. Em 1972, Ramiro Silva Matos Neto adotou o nome de Gramiro de Matos, nome adotado após o encontro descrito pelo próprio como: “messiânico e telemental com o poeta medieval Gregório de Matos”, publica Urubu-Rei pela Editora Gernosa, um livro radicalmente experimental, com uma poética  tributária das culturas indígenas brasileiras, e das experimentações vanguardistas herdadas do concretismo e da cultura riponga da década de 60.

No início da década de 1970, Ramirão, como era chamado, juntou poucas coisas, pegou uma sacola hippie e partiu com a namorada hippie para o Rio de Janeiro. Na cidade, conviveu com grandes intelectuais como Jorge Amado, Glauber Rocha e era amigo de Waly Salomão e Torquato Neto, fazendo parte do movimento tropicalista, juntamente com esses seus dois parceiros. Entretanto, não teve a mesma sorte de Jose Agrippino, no grupo do desbunde tropicalista.  Enquanto Agrippino, antes de despirocar de vez da cabeça, apostou na estratégia áudio-visual fazendo filmes para permanecer lembrado, Gramiro de Matos, não - talvez por sua personalidade mais reflexiva, menos falante, introspectiva. De qualquer maneira Gramirão, ainda como estudante de de direito frequentou os lugares míticos da geração desbunde, como o “Solar da Fossa” ou as “Dunas da Gal”, na companhia de Waly Salomão e Torquato Neto. E de certa forma interagiu com toda a experimentação artística desse grande grupo.

Urubu-rei foi um livro bastante elogiados pela crítica na época. O autor, igualmente, cuja literatura foi considerada “impenetrável”, devido ao exagero nos experimentalismos concretistas e pop. O tropicalista que foi ficando esquecido, nos anos 1970 era um dos  protegidos de Jorge Amado e do parceiro de Waly Salomão. Chegou a ser considerado por Jorge Amado como “a mais nova experiência da linguagem depois de Guimarães Rosa”.

Jorge Amado, aliás, mesmo achando-o meio doidão, escreveu o texto de apresentação em Os morcegos estão comendo os mamãos maduros pela Editora Eldorado em 1973, um dos livros de contos de Gramiro de Matos. De certo, Gramiro era diferente. Inventava uma espécie de linguagem que mesclava português colonial com espanhol, que quase gerava um dialeto Crioulo, ou mesmo um Galego falado na Galiza. Impulsionava relações idiomáticas entre línguas indígenas e africanas, constituindo multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas.

Ou seja, livros como Panamérica (1968), de José Agripino de Paula, Me segura que eu vou dar um troço (1972), de Waly Salomão, Urubu-Rei (1972) e Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (1973), de Gramiro de Matos e Catatau, de Paulo Leminski (1975), foram inseridos nesse grupo pela crítica literária da época, apesar de suas diferenças de estilo e proposta.

A partir de 1974, o autor decide seguir a carreira acadêmica. Vai realizar uma série de viagens à África e Portugal durante seus anos de doutorado, financiado pela Fundação Caloustre Gulbenkian. Sua intenção era a de investigar o impacto da literatura brasileira nos autores das colônias lusas, até então. O afastamento da sua terra trouxe um afastamento do universo literário, também. Durante esses anos de estudo presenciou a Revolução dos Cravos e escreveu algumas impressões e vivências sobre o episódio. Nesse período também ficou mais próximo de Glauber Rocha, que nessa época residia em Sintra. Acompanhou sua agonia e sua luta para filmar Império de Napoleão.

Em 1978 publicou um romance histórico-surrealista A conspiração dos búzios. Mas,apesar da tentativa de se reconectar com o ambiente cultural brasileiro, o autor caiu no esquecimento na década seguinte. De seus estudos acadêmicos, resultou nas mais de 600 páginas de uma tese de doutorado: “Influências da literatura brasileira sobre as literaturas africanas de língua portuguesa”, defendida na Universidade de Lisboa, 1982 e publicada posteriormente no Brasil. 

Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, de 1973, tiveram ampla divulgação em estudos profundos empreendidos por Silviano Santiago(2000), bem como na imprensa da época. Santiago em Os Abutres, num ensaio de 1972, parte da peça Urubu-Rei de Gramiro de Matos discutir a geração do desbunde de 1960. Ele defende a “curtição” da cultura, em contraposição à sua leitura sociológica do bom e do mau gosto.  Ou seja, ao incluir o Urubu-Rei de Gramiro de Matos no grande quadro do Tropicalismo, colocando-o justamente como um “abutres do lixo americano”, tornou o lixo da sociedade de massa brasileira, algo que pudesse ser reinventado num outro diapasão que misturasse prosa, linguagem de computador, poesia, cérebros eletrônicos, dialetos indígenas, mitologia negra, o portunhol das peças de Anchieta, ou seja, uma literatura que não cabia apenas na literatura.Um diapasão que não se  limitasse ao Modernismo nacionalizante. 

Talvez o grande mérito da leitura de Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, resida no fato de despertar questões referentes a sua linguagem desestabilizadora e política, impulsionada por relações idiomáticas entre o português, o espanhol, línguas indígenas esquecidas e as diversas variações do crioulo português afircano, constituindo-se por multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas. O autor tenta trazer para as ranhuras do Tropicalismo a antropofagia de Oswald de Andrade: junta e separa palavras, cola recortes de jornais, inunda a sintaxe de estrangeirismos e barbarismo, desrespeita a língua como quem ironiza a autoridade gramatical, ousa reescreve o conto Cabeça Caxinauá numa versão pop, e chega a citar poemas inteiros de Gregório de Matos. Ou seja, independente do que os críticos digam, um tipo de leitura para fortes: ou você ama, ou simplesmente faz pose e analisa academicamente.

Alguns intérpretes, consideram a literatura de Gramiro de Matos uma forma de luta política contra a violência da língua padrão e, ao mesmo tempo, um conceito de " combate em línguas ", tanto para propósitos acadêmicos como estéticos. O que é uma suposição até cabível, numa literatura de contracultura que já tinha sido considerada inclassificável pelos críticos da época de seus primeiros livros.

A Conspiração dos Búzios é um livro de 1976. A primeira edição era absolutamente artesanal financiada pelo próprio autor e ilustrada pelo fotógrafo Mario Cravo Neto. O enredo era uma mistura incomum de roteiro de cinema com narrativa histórica, em que o autor  reencena a Conjuração Baiana do século XVIII. Ainda no diapasão da porralouquice, era numa espécie de paródia épica que flutuava entre lirismo, surrealismo e o tom de documentário que retrata as reminiscências de revoltosos condenados à forca, nos dias que antecedem à condenação, dando uma espécie de sobrevida a cada um dos conspiradores que saem do Pelourinho para serem enforcados na praça da Piedade. Na passeata fúnebre, o autor mostra detalhes da cidade, do casario e da vida dos personagens.

Ainda em Portugal, publicou em Lisboa uma Antologia da novíssima poesia brasileira (Livros Horizonte, 1982), que reunia as experimentações poéticas das vanguardas concretistas e tropicalistas, e das poéticas resultantes, dos anos 60, 70 e 80, trazendo  textos de Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, Carlos Nejar, Chacal, José Carlos Capinam, Roberto Schwarz, Afonso Romano de Santana, dentre outros.

Quando volta ao Brasil, nos 1980, continuou sendo considerado um autor impenetrável pelas novas gerações.

E agora, em meados dos anos de 1980, com um canudo de estudos africanos embaixo do braço, e uma tese de 600 páginas ilegíveis, decepcionado com a falta de interesse das universidades pelos estudos africanos, afastou-se aos poucos da escrita e da academia. Tocou a vida como comerciante, marchand, depois colecionador de quinquilharias.

Mesmo tendo publicado em 2016, pela Civilização e Barbárie A conspiração dos búzios, romance-experimental inédito escrito em 1976, ainda durante os estudos de doutorado, Gramiro de Matos é considerado “o tropicalista esquecido”. Hoje, raramente é citado entre as principais figuras literárias da sua geração, e sequer tem verbete no Wikipedia.


O tropicalista, marginal e reinventor de linguagens, Ramiro Silva Matos Neto vive hoje em Salvador, completamente afastado dos círculos literários toca sua vida longe da literatura. Divide seu tempo colecionando moedas antigas, administrando sua pousada, e fazendo comentários nas redes sociais - geralmente contra governos de esquerda – defendendo a Democracia.

 

 


HERBERTO HELDER


Título Herberto Helder 
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira. Este é, ao certo, o nome próprio que consta em sua certidão de nascimento. Nasceu no Funchal, em 23 de novembro de 1930, e era o filho caçula da família, composta por mais duas irmãs mais velhas. A mãe morre quando o menino tinha 7 anos. O fato abalou as estruturas da família, e com certeza, a sua relação com o mundo – quem duvidar disso, pode ler A Colher na Boca, que o poeta iria publicar com 31 anos. A partir dos 18 anos, a vida de Herberto Helder se torna literalmente a vida de um judeu errante e misterioso.

Conclui o curso no liceu de Lisboa, para onde foi aos 16 anos. Em 1948 entrou na Faculdade de Direito em Coimbra, mas logo no ano seguinte mudou de curso, transferindo-se para a Faculdade de Letras. Nesta, passou três anos, e sabe-se que frequentou as aulas de filologia românica, mas igualmente não concluiu o curso.

De regresso a Lisboa, teve o seu primeiro emprego, na Caixa Geral de Depósitos, um emprego que abandonaria logo, como inúmeros no decorrer da vida. A partir desse momento, passa a ter diversos trabalhos. Foi agenciador de publicidade, meteorologista na Ilha da Madeira - para onde tinha regressado em 1954 -, representante de laboratório farmacêutico, redator de publicidade, editor.

Como o pai tinha negado um empréstimo para ir ao Brasil - a exemplo das irmãs que já lá estavam -, Herberto Helder resolveu tentar a sorte percorrendo a Europa. Entre 1958 e 1960, perambulou por França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, trabalhando, aí sim, nas mais inusitadas funções. Já tinha uma relação com Maria Ludovina Dourado Pimentel, e precisava de dinheiro para o nascimento da primeira filha que estava a caminho. Neste período, trabalhou como descascador de batatas na Bélgica, agenciador de marinheiros em bairros de prostitutas na Antuérpia, estivador, empacotador de aparas de papelão, tudo o que se pode imaginar, não necessariamente nesta mesma ordem. E reza a lenda que chegou a passar fome, já que quando retornou, repatriado, teve de fazer um tratamento para avitaminose.  

Antes de partir, às pressas, deixara os manuscritos de O Amor em Visita com Luiz Pacheco, que à época era apenas um brilhante iconoclasta poeta surrealista. Herberto ainda deixou alguns poemas publicados nas revistas Cadernos do Meio-Dia, KWY e Folhas de Poesia, antes de partir para sua primeira parada, França. Ficavam para trás a mulher grávida e as tertúlias do Café Gelo, onde se encontrava frequentemente como António José Forte, Hélder Macedo, João Vieira, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco.

Forçado a regressar a Portugal, arrumou talvez aquele que fosse o primeiro trabalho estável em décadas. Como bibliotecário da Fundação Gulbenkian, percorreu vilas e aldeias da Beira Alta, Ribatejo e Baixo Alentejo, num projeto de biblioteca itinerante. E nesses anos publica justamente o que os especialistas consideram a obra em homenagem a sua mãe, A Colher na Boca, além de Poemacto e Lugar.

Entrou para a Emissora Nacional em 1963, como redator do noticiário internacional, mas permaneceu ali apenas cerca de um ano. Tempo bastante para publicar Os Passos em Volta em 1963, um livro extremamente autobiográfico e premonitório de sua constante transitorialidade:

“Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.”

Em 1964, publicou com António Aragão, o n.º1 de Poesia Experimental, uma série que teve em suas páginas poetas como Mário Cesariny, a concretista Salette Tavares, e o poeta barroco alemão  Quirinus Kuhlman. Eclético, foi alimentando a aura de enigmático, enquanto lutava para pagar as contas do mês. Trabalhou como tradutor de bulas e literatura explicativa de medicamentos para laboratórios, além das obras literárias de Hans Christian Andersen e Italo Calvino. Também se submeteu como voluntário para testes de grupos psicanalíticos no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria.

Publicou, em 1968, Apresentação do Rosto pela Editora Ulisseia, que foi rapidamente apreendida pela polícia, sendo destruídos os quase 1.500 exemplares impressos, de uma vez. No ofício de proibição, de 22 de julho de 1968, os “críticos literários” da PIDE descrevem a obra como uma “autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade”.

Herberto, já estava na alça de mira da PIDE desde a publicação de A Filosofia na Alcova, edição portuguesa do Marquês de Sade de 1966, prefaciada por David Mourão Ferreira e por Luís Pacheco. A tradução era justamente de Herberto Hélder, usando o seu único pseudônimo conhecido Helder Henrique. Antes de Apresentação do Rosto, aquilo já havia lhe custado um processo judicial, afinal a obra de Sade ainda por cima vinha ilustrada. O fato é que a cassação deu a Herberto uma certa aura de maldito. Nessa época, abandona a grupoterapia, passa a trabalhar num atelier de arquitectura e pouco depois como diretor literário da Editorial Estampa. Ainda participa, como ator, no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, o que pode ter sido sua última aparição em público.

Em Julho de 1969, nasce seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira, de uma relação com Isabel Figueiredo. Herberto Helder sempre foi obsessivamente discreto em relação à sua vida privada. Entretanto, mesmo neuroticamente silencioso, coincidentemente, ou não, consta que Herberto Helder apesar dos dois filhos, nunca teve uma união estável com uma companheira. Afinal, coincidentemente ou não, sempre que nasce um filho, Herberto Helder decide viajar. E para longe.

Dessa vez, volta a perambular pela Europa. E pouco mais de um ano depois parte para ser correspondente em Angola. O amigo João Fernandes, frequentador do Café Gelo, em Lisboa, arranjou-lhe a vaga de jornalista na ainda colônia portuguesa.

Em 1971, fez reportagens para a revista Notícias sob vários pseudônimos, e publicou Vocação Animal, publicação onde se afirmava que o autor deixara de escrever em 1968. A aventura em Angola deixou marcas profundas. Trabalhou em Luanda, De 1971 a 1974, onde foi redator da Notícia, uma revista editada pela empresa Neográfica, cujo capital era dividido por Manuel Vinhas do grupo Vinhas, da CUCA, a primeira cervejeira de Angola, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA. Em Luanda encontra nova companheira que o iria acompanhar pelo resto de sua vida, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar, a Mastaba, uma espécie de sucursal do Gelo lisboeta, onde se reuniam artistas e intelectuais, os chamados reviralhos.

Mas a aventura em Angola dura pouco. No ano seguinte, após um grave acidente de carro, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda" – que se reduziam tecnicamente, a dois livros Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).

Em seus artigos e escritos deste período, manifesta a admiração por Jack Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan, Leonard Cohen, Jim Morrison. Cita Patti Smith em Photomaton & Vox de 1979 e aconselha a todos a leitura de Henry Miller, antes que seja tarde demais.

A Portugal, mesmo, só retornou depois do 25 de Abril, para trabalhar em rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, da qual se publicaram apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra em 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra em 1978.

Alguém já disse, com razão, que apesar da linguagem rítmica, sua poesia deveria ser lida com o incômodo físico de uma pedra no sapato. O poeta era um atormentado, mas sendo bem lido tem algo de sentido de humor dentro e fora de sua poesia. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo sempre irônico, e safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.

Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o aldrabão, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. Como em muitas das histórias obscuras de Herberto, realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns e outros que até rindo da situação.


Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007. Muitas perguntas ficam no ar sobre sua neurótica aversão a entrevistas, e sobre seu desejo de separar o público e o privado de maneira obsessiva, escondendo-se como pessoa. Alguns dizem que a desconfiança da imprensa devia-se ao fato de reconhecer-se homem de ambiguidades e contraditório - o que realmente não explica nada.
Alguns trabalham com a hipótese da tentativa de se preservar – o que explica menos ainda. Outros, como o velho Luiz Pacheco, associam a misantropia com uma estratégia de marketing editorial 

O fato é que recusa o Prêmio Pessoa em 1994, “por razões pessoais”  -  recusa que o tornou mais famoso. Em 1988 já tinha recusado os 10 mil Euros do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1988. Aos 64 anos o poeta que disse certa vez que “nada é mais apaziguador que ter falhado em todo os lados da biografia,” na certa pensou que 30 paus não vão fazer diferença nenhuma para um camarada que como eu, fui estivador, bibliotecário e até agenciador de putas… Do pouco que conhecemos Herberto, na certa o pensou, mas para manter a aura de enigmático, não o disse.

Em 2007 Pen Clube de Portugal indicou o nome de Herberto Helder para  Prémio Nobel da Literatura, o que igualmente seria uma tremenda perda de tempo. A essa altura, nem o desdentado Luiz Pacheco duvidaria que Herberto Helder daria uma de Jean-Paul Sartre.

ITAMAR ASSUMPÇÃO

 



Título Itamar Assunção
Dimensões: 9x9cm
Data: Outubro de 2021
Técnica: Xilogravura


No início da década de 1980, à margem de toda e qualquer imposição mercadológica que poderia ser ditada pelas gravadoras, uma nova cena cultural surgia em São Paulo. Ao redor do Lira Paulistana, um teatro localizado no bairro de Pinheiros, um certo Francisco José Itamar de Assumpção, pulou para lado de fora dessa margem para engrossar o caldo, e lançou o seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, pelo selo independente do próprio teatro da Lira.

Bisneto de escravos de origem angolana, o baixista, poeta e performance Francisco José Itamar Assunção, nasceu em 13 de setembro de 1949, no Tietê. Era neto de um alfaiate e seu pai, Januário, era fiscal do Instituto Brasileiro do Café, órgão criado no segundo governo de Getúlio Vargas, onde os fiscais tinham cargos vitalícios. Junto com a mãe, Cida, tinham um terreiro de umbanda em Arapongas onde Januário era Pai de Santo e a mãe recebia igualmente entidades.  Aos 12 anos de idade, quando sua avó materna, que era católica, morre, Itamar se muda para Arapongas no Paraná. Diga-se de passagem, ele e os dois irmãos, Narciso e Denise - que mais tarde se tornariam atores - cresceram ouvindo batuques, seja no terreiro da família ou os festejos de tambú, com as danças de umbigada, de comunidades remanescente de escravos bantu.

Em Arapongas iniciou estudos de contabilidade, abandonando o curso para atuar no teatro e fazer shows em Londrina. Começou a andar com a turma do GRUTA – Grupo de Teatro Universitário de Arapongas. Em 1971, Itamar participa do IV Festival Universitário de Música Popular de Londrina com a canção Caboclo da Mata, interpretada pelos seus irmãos. Ganham o prêmio de “Melhor Apresentação Total” deste ano, e o do ano seguinte. Essas primeiras composições ainda estavam muito marcadas pela tendência à música de protesto, gênero que abandonou logo. Mas na cidade, conhece em 1973 outro músico, que também viria a se tornar marginalmente famoso, e com quem iria colaborar por longos anos, Arrigo Barnabé. Moravam na mesma “república” e isso, para quem já participou de alguma confraria, tem muita importância na vida de um cara.

No final dos anos 70, formou com o guitarrista Tony Penhasco, a primeira banda, a Mão de Pilão, e compôs Nego Dito. A canção ficou em terceiro lugar no Segundo Festival da Feira da Vila Madalena em 1980. Para Arrigo Barnabé, esse momento foi o ponto de inflexão de Itamar, largou a música de protesto e deu aquela afinada que faltava no estilo.

O cara que “aprendeu da importância de não dar muita importância” e “ficar com os seus pés no chão”, entrou e saiu do panorama poético e musical brasileiro, mantendo sua eterna integridade e coerência. No final da década de 1970 as gravadoras internacionais captavam artistas de grande projeção, pois enxergavam no país um grande e lucrativo mercado de disco. Esse não foi, definitivamente o caso de Itamar Assunção. E se foi, ele fez o possível para criar nuvens de fumaça suficientemente espessas para sair de fininho.

O Lira, como era chamado, era um teatro de 150 lugares, onde diversas manifestações culturais dessa nova vanguarda paulista tiveram lugar. Muitos grupos musicais alternativos passaram por seu palco como o Língua de Trapo, Rumo, Premeditando do Breque, e até mesmo o rock de grupos como o Gang 90, Titãs, Violeta de Outono e Ultraje a rigor, passaram por seus holofotes alternativos.

Quando Beleléu, Leléu, Eu é lançado, pelo selo independente do teatro Lira, Itamar Assunção já tinha uma turma ao redor suficiente visionária. Ao lado de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, entre outros jovens artistas, Itamar desbravou a senda de fazer música com dinheiro do próprio bolso. Não à toa, Ás próprias custas S.A. é o termo que dá título ao seu segundo LP, de 1981. Mas voltando ao primeiro, Beleléu, Leléu, Eu, o cantor lançara o disco em 1980, acompanhado da banda Isca de Polícia. Esse é um dos seus discos mais famosos e faz parte, inclusive, encontra-se na 86ª posição da lista dos 100 Melhores Discos de Música Brasileira de todos os tempos organizado pela revista Rolling Stones. Isto é, se você tem uma coleção de discos de música brasileira, você precisa ter este disco.

As performances de Itamar Assunção eram um capítulo à parte. Um homem que na vida privada, cuidava das filhas, amava a mulher, e tinha um carinho especial por plantas e orquídeas, no palco se transformava quando interpretava por exemplo Nego Dito. No palco, criava uma relação meios que simbiótica entre o marginal e o homem, encarava o público, as vezes o destratava.  A cada olhar, a cada movimento de seu corpo, parecia que Francisco José, um homem massacrado pela condição de pobre e periférico, ia tirar uma navalha do bolso, para se defender da vida como pudesse, para cobrar dela aquele boleto vencido. Às vezes, descia do palco e encarava uma pessoa a esmo na platéia, caminhava em meio ao público e começava a dialogar rispidamente com ela. Se pudéssemos fazer algum paralelo com um artista estrangeiro, talvez, apenas um Tom Waits, ou Nick Cave, guardadas as proporções, chegariam perto do nível de desempenho de um papel no meio de uma manifestação artística.

Em sua vida há várias situações mal explicadas de atitudes hostis sofridas por ele. Como num episódio em que Itamar corria pela rua para entregar o cartão da esposa, branca, e que um policial encarou como assédio. Ou, mais grave ainda, no episódio em que foi preso por suposto roubo. O parceiro da letra Prezadíssimos Ouvintes, Domingos Pellegrini, conta no Vol.2 do Song Book de Itamar Assunção um episódio passado em 1972, quando o artista tinha 23 anos. Pellegrini tinha lhe emprestado um gravador, que Itamar levou-o consigo para casa. No caminho, a polícia o prendeu e o encarcerou por 5 dias, numa cela incomunicável, simplesmente por acreditar que ele tinha roubado o gravador. Ainda que o poeta tivesse encarado o episódio com bom humor, chegando a criar o nome da nova banda, Isca de Polícia, a partir do episódio, para bom entendedor pode haver sim algo de estrutural no nexo que liga esses eventos às “sutilezas” das várias camadas do racismo que imperam no Brasil.

Em outros momentos, esse racismo não era expresso de forma tão grosseira e brutal, mas de maneira eufemizada sob a máscara da denegação. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e algumas vezes foi encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba.

Arisco ao mercado fonográfico e a movimentos políticos organizados, não foi um poeta negro que fez de sua etnicidade um bastião de luta constante. Mas os ecos da condição social impostas e da opressão policial sempre estiveram em sua lírica.  Como na música Cabelo duro em que fala categoricamente “eu tenho o cabelo duro mas não o miolo mole, sou afrobrasileiro puro, é mulata a minha prole”, Ou mesmo na Negro dito, “tenho o sangue quente, não uso pente, meu cabelo é ruim”.  E o que dizer de “a textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura” ? Quando alfinetava, igualmente, a ética Bandeirante em Cultura Lira Paulistana.

E não que ele não tenha feito discos de samba, como fez de fato na obra dedicada a Ataulfo Alves em 1996. Ou seja, cantou samba – à sua maneira – mas não por exigência de vontades de gravadoras. Na única vez em que teve um disco seu lançado por uma grande gravadora, foi em 1988, Itamar não deixou de ser irônico com sua própria condição de marginal. O homem deu nome ao disco lançado pela Intercontinental: Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!! 

E foi além. Usando gancho as práticas de marketing da indústria fonográfica, criou as vinhetas como Pesquisa de mercado I, II e III; canções como Sutil e Mal menor ganharam uma roupagem radiofônica, comercial. Tudo com fins mercadológicos, trazendo refrões fáceis, melódicos e harmonias buscando os hits e batidas mais populares.

Em meados da década de 1990, já se via um Itamar cansado da pecha de maldito, entretanto foram os anos mais prolífico para o poeta em termos de shows e rearranjos de clássicos da música brasileira.  Em 1993, compôs “Só vejo azul” com Rita Lee, que, em troca, participou da faixa “Venha até São Paulo” de Itamar Assumpção, no disco Bicho de 7 cabeças I.  E outras ações artísticas inusitadas foram Bicho de 7 cabeças de 1993, que foi assinado por Itamar e pela banda Orquídeas do Brasil, composta apenas por musicistas mulheres, e o já citado disco dedicado à obra de Ataulfo Alves em 1996. Um dos pouquíssimos projetos que o quase obsessivo artista deixou pela metade foi Pretobrás – Por que que eu não pensei nisso antes? (1998 – 2010), cujos volumes 2 e 3 sairiam somente após a sua morte precoce, em 2003.

A música Código de Acesso, mostra bem sua relação com as gravadoras e com a Indústria Cultural.

Para muitos, Itamar não passava disso: um doidão. Um doidão desses geniais, que tanto podia acordar cedo para cuidar das orquídeas, das plantas e fazer o café da manhã dos filhos, cuidar das orquídeas e fazer o café da manhã para as crianças, depois de um show, sem dormir por três noites à fio.

Uma nova geração de músicos independentes, têm nele uma referência fundamental. Por exemplo, a cantora trans Liniker fez uma versão para Fim de festa, e a banda Teto Preto cantou recentemente, Já deu pra sentir, bem como Metá Metá remusicou Tristeza não. Outros que revisitaram o poeta foram o grupo Tono Nega música e o cantor Criolo com O tempo todo. Além do resgate musical, Itamar Assunção é tema de inúmeras teses na área de história e estudos literários.

Dono de uma incansável cabeça criativa, quando morreu Itamar deixou diversos escritos e rascunhos de letras e canções, que foram reunidos e lançados pelo Itaú Cultural no volume Cadernos Inéditos.

No ano de 2000 os médicos descobriram um câncer no seu intestino. Mesmo doente, em meio a cirurgias e pesados tratamentos, Itamar manteve a rotina de shows nos intervalos das internações. Nesse período também gravou um disco em parceria com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que acabou cancelado, e num segundo volume de Preto Brás iniciado em 1998, que ele pretendia que fosse uma trilogia de discos. Lutou por três anos contra as complicações decorrentes do câncer, mas a doença reincidira para a região pélvica.

O cantor, poeta e compositor paulista Itamar Assumpção morreu na noite de 12 de junho de 2003, aos 53, em sua casa.


MARIO CESARINY

 

 


Título Mario Cesariny
Dimensões: 9x9cm
Data: Setembro de 2021

Técnica: Xilogravura

O pintor e poeta Mário Cesariny de Vasconcelos era um lisboeta nato, Nasceu em Vila Edith, em Benfica, a 9 de agosto de 1923. Filho caçula, tinha três irmãs mais velhas. O pai, um empresário e ourives, tinha uma joalheria na Rua da Palma, na baixa lisboeta.

O pai, aliás, era um homem de personalidade dominadora, de uma brutalidade tão exacerbada que chegava a bater na mãe.  Como todo o bom patriarca escroto, via no filho homem o herdeiro e continuador de seu legado. Não pensou duas vezes em mandar o jovem frequentar o Liceu Gil Vicente, para complementar os estudos secundários. Ao fim de um ano, com o intuito de dar continuidade ao negócio da família, o mudou-o para um curso de cinzelagem na Escola de Artes Decorativas Antônio Arroio. É nesta escola, a propósito, que conhece o também pintor Artur do Cruzeiro Seixas - com quem se relacionaria por longos anos.  Sabe-se também que estudou piano, e que apesar do grande talento, foi proibido pelo pai de continuar seus estudos de música. Aos 19 anos pintava e desenhava quando entrou no primeiro ano de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e posteriormente na Escola António Arroio, onde conhece alguns dos futuros companheiros de arte.

Nesse período, o jovem frequenta os cafés de Lisboa, trava contato com a arte e a boemia, e descobre o grupo dos neo-realistas, pelos quais verdadeiramente não se interessa.   

Em 1947 Cesariny ganha uma bolsa de estudos e viaja para Paris, onde frequenta a Académie de la Grande Chaumiére. Nesse momento ele tem um encontro inusitado com o dadaísta Benjamin Péret e André Breton. Breton já com 51 anos, e recém chegado dos anos do exílio de Vichy, dos Estados Unidos. Nestes anos pós-guerra, Breton se imbuíra do firme propósito de animar os surrealistas na França e ao redor do mundo, incentivando exposições e posteriormente participando da revista La Brèche. Esse é o tipo de um encontro que realmente revolucionaria a vida de qualquer um. De regresso a Lisboa, Cesariny, sem dúvida, já é um outro homem. Como poeta, encarou o surrealismo, mergulhando de cabeça na quebra da forma e do automatismo psíquico das formas e das letras.  

Neste mesmo ano, passa a integrar o Grupo Surrealista de Lisboa, do qual faziam parte Alexandre O´Neill, Marcelino Vespeira, António Pedro, Cândido Costa Pinto, João Moniz Pereira. Como todo o bom grupo surrealista, as divergências não tardaram a acontecer, e dois anos depois Cesariny já faz parte de uma dissidência chamada “Os Surrealistas”, com Pedro Oom, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros. E redigem um manifesto coletivo” A Afixação Proibida”. Antônio Pedro, tinha ficado do lado de lá, com o projeto de reeditar a revista Variante. A partir daí os da Afixação Proibida promovem a primeira exposição surrealista de Portugal, que faria parte mais tarde dos anais, que o próprio escreveria sobre a História do Surrealismo português.

No tocante a vida pessoal, no fim da década de 1940, seu pai, arruma outra mulher, abandona a família e se muda para o Brasil. Isto faz com que Mário se aproxime mais de sua mãe e da sua irmã Henriette.

A década de 1950 é quando propriamente Cesariny se dedica à pintura e à poesia, e passa a colaborar com a Revista Pirâmide. Nesse período também, assume seu homossexualismo mais abertamente, o que o leva a ter sérios problemas com a Polícia Judiciária, e a ser vigiado de perto pela constante “suspeita de vagabundagem”. São anos duros politicamente. O regime salazarista não dava trégua a dissidentes, fossem eles comunistas, ou homossexuais. Dez anos antes, o poeta Antônio Botto, já com 45 anos, tivera de deixar o país às pressas, sem dinheiro, rumo ao Brasil, pois tinha sido demitido de sua função pública. Sem dúvida, um duro golpe no dândi, que inclusive precisou da ajuda de amigos, como Amália Rodrigues, que organizara um show de arrecadação de fundos para sua “fuga”.

Como pintor, nestes mesmos anos 1950, Cesariny incorporou imagens do inconsciente com justaposição de objetos desenhados em viscosidades quase orgânica. Seus trabalhos fazem uma espécie de inventário do mundo alastrando tintas, vernizes e colas à esmo, fundindo pigmentos, expressões de fundo neutro com a incisão de grafismo primitivos, abstratos e figurativos. Sua poesia, à propósito, funde-se nessa ambiguidade e reveste essa pintura dando sentido de liberdade.

Em toda a palavra que escreve, em todo o traço que pinta há um forte sentido de experimentação. Vemos isso no seu percurso pictórico: nas pinturas, nas colagens, nas “soprografias”, nas técnicas de sopro de tinta e, nas “sismografias”. Mesmo nos Exquisite corpse, técnica que promoveu e que consiste na produção de uma obra em cadeia criativa, realizada por 3 ou 4 artistas, em tempo real, há esse sentido de interatividade e iconoclastia.

Da mesma forma que é difícil o esforço de determinar-lhe uma categoria - art brut, arte incomum, arte surreal - é difícil exclui-lo da Modernidade. Ele rompeu completamente com o figurativo, e começou a praticar o que ele chamou de despintura, o que se desdobrou em seus poemas como uma forma de desregramento, demembramento da linguagem.

Nos anos 1960, depois das primeiras exposições, Cesariny recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian  para escrever um livro sobre Maria Helena Vieira da Silva e ruma para a Inglaterra, onde esteve por volta de sete anos, com vindas esporádicas a Portugal. Além de pintura, ganhava algo com as traduções de Rimbaud, Artaud, Michaux e outros autores malditos, para o português de Portugal. Outra parte do dinheiro para as viagens já vinha de bolsas e da venda de seus quadros e da intermediação por venda de quadros de outros artistas, como ocorreu com um de Maria Helena Vieira da Silva, dado a ele por Manuel Cargaleiro.

Teve uma vida cheia de amizades, desafetos e prêmios. Ganhou o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, e o Grande Prémio EDP de Artes Plásticas. Ainda nos anos 1980,sua obra poética de é reeditada pelo editor Manuel Monteiro, dono da tradicional editora Assírio&Alvim, podendo ser redescoberta por uma nova geração de leitores.

E doou parte de suas obras de arte para a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, e em testamento, deixou um milhão de Euros para a Casa Pia. Certa vez, perguntado sobre se pensava na morte? Respondeu: “Não muito. Penso na doença”. Acredita na imortalidade? “Não sei. Quando eu chegar, lá telefono [risos].”

 

Mário Cesariny faleceu a 26 de novembro de 2006 aos 83 anos de idade, com um câncer na próstata que já o vinha consumindo há alguns anos. O artista que deixou 19 livros publicados e inúmeras pinturas, foi sepultado no Talhão dos Artistas do Cemitério dos Prazeres.

TORQUATO NETO


 

Título: Torquato Neto
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Linoleogravura

 

Filho único de um defensor público e uma professora, passou sua infância em Teresina até os 16 anos, mudando-se para Salvador no intuito de complementar os estudos secundários. E todo o brasileiro sabe que quem tem Neto no sobrenome, tem algo de diferente da pirâmide social Brasileira. A mãe, Salomé, provavelmente mesmo que intuitivamente sabia disso e queria a carreira de diplomata para o filho. O piauiense Torquato Pereira Araújo Neto, apesar de ter Neto no nome, deu voos em outras direções. 

Tudo ia bem até o primeiro vôo em sua ida para a Bahia. No Colégio Nossa Senhora da Vitória, o Marista, passava a maior parte das aulas rabiscando poemas. E ali conheceu Gilberto Gil. Não demorou e já estava colaborando com o jornalzinho da escola e participando das atividades estudantis. Foi no Centro de Cultura Popular da UNE (União Nacional dos Estudantes), que conheceu, também, Caetano Veloso, Duda Machado, Gal Costa, Capinam, Maria Bethânia dentre outros. Nesse início dos anos 1960, passou também a assistir filmes e ler compulsivamente sobre a sétima arte, chegando a trabalhar como assistente no filme Barravento, de Glauber Rocha.

Dois anos depois, o segundo voo, rumo ao rio de Janeiro. Lá termina o científico e, por dois anos, cursa jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.

Ainda no Rio de Janeiro foi apresentado a Edu Lobo, pelo cineasta Rui Guerra, formando imediatamente uma das melhores uma parcerias musicais da música brasileira que, apesar de curta, foi marcante, para ambos. Em três meses, trabalhando intensamente, fizeram Veleiro, Lua Nova, Pra Dizer Adeus, que Edu Lobo diria anos mais tarde, se tratarem as suas melhores músicas.

Além de poeta, inicia também sua atividade jornalística, trabalhando para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora.  Trabalha também em agências de propaganda e na gravadora Philips.

Por sugestão do parceiro Edu Lobo, foi para São Paulo, em 1966. Nessa época, Gilberto Gil morava na cidade, no bairro de Cidade Vargas, e hospedava frequentemente os amigos de fora. Na “Pensão dos Baianos”, como foi batizada, passaram Ruy Guerra, que era mais ou menos baiano, Capinam, Torquato e um monte deles.

Um ano depois, em 1967, Torquato Neto decide casar-se com a baiana Ana Maria dos Santos e Silva. Três anos depois nascia seu único filho Thiago, atualmente piloto de aviação civil.

Durante toda essa década de 1960, o Brasil viveu um turbulento período político e iniciou-se um Ditadura Militar, com um golpe de Estado, dado por militares e apoiado pelas classes médias brasileiras. Torquato, através de seus artigos de jornal, atuava como agitador cultural, polemista e defensor de manifestações culturais de vanguarda, como Tropicália, o Cinema Marginal, a Poesia Concreta. Nesse período, passou a defender ardentemente o Tropicalismo, tendo escrito uma espécie de breviário, onde defendia a necessidade de criar uma cultura pop genuinamente brasileira, baseada numa estética dos trópicos, que em suas palavras seria mais ou menos algo como uma cultura sem preconceitos, sem mau gosto, sem cafonices.

Nesse momento iniciava meios sem querer uma carreira como poeta, jornalista, letrista de música popular e de um supostamente  experimentador ligado à contracultura.

Com amigos como Décio Pignatari, Waly Salomão, os Irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Ivan Cardoso, e Hélio Oiticica, Torquato Neto, puxava a brasa para sua sardinha, já que tinha sido um dos principais letristas de músicas icônicas do Tropicalismo.

Sua grande contribuição para o movimento não foram apenas as letras da canção-manifesto “Geléia Geral”, de “Marginália 2”, de Gilberto Gil, e de “Mamãe Coragem” e de “Deus vos salve esta casa santa”, de Caetano Veloso.  Em suas colunas jornalísticas, defendeu com veemência a contracultura, além disso compôs em parceria inúmeras músicas. Com Gilberto Gil compôs sucessos como, "Louvação", "Domingou", "Zabelê", "A Rua" ou "Encarnada" em que dividiu a autoria com Geraldo Vandré. Com Caetano Veloso ainda compôs "Deus vos salve a casa Santa", "Ai de mim"; "Copacabana", "Nenhuma Dor". Com Jards Macalé: "Lets Play That. Com Carlos Pinto: "Todo dia é dia D". E "Três da Madrugada".

Em 1971 e 1972, Torquato escreveu a polêmica coluna no jornal Última Hora, intitulada Geléia Geral. A essa altura, Torquato já era um alcoólatra inveterado. Nesse espaço, Torquato defendeu desesperadamente o cinema marginal, combateu o Cinema Novo e a música comercial e lutou pelos direitos autorais. Ele defendia que o cinema deveria ser contra-hegemônico. 7 de fevereiro de 1972, Torquato afirmava aos seus leitores da Geléia Geral – coluna que posterior ao Plug – que o cinema não se resumia à produção.  Tinha de ter invenção, uma ação guiada pelo “coração selvagem” – que ele usa entre aspas, por provavelmente usar a expressão de Clarice Lispector. Nesse caminhar pelo cinema, Torquato iria expressar uma maior afinidade com os cineastas ligados ao grupo que ficou conhecido como Cinema Marginal.

O biógrafo Toninho Vaz, narra que essa ruptura com o Cinema Novo tinha nome e endereço. Torquato se aproximara de Ivan Cardoso e de Luís Otávio Pimentel, que segundo o poeta realizavam cinema de forma independente. O afastamento e a divergência com Glauber Rocha, manifestado numa carta, estavam ligados ao fato do Cinema Novo ter capitaneado a nova política cinematográfica ligada à Embrafilme. No fundo, Torquato não engolia bem essa história de se fazer filme com o dinheiro do governo.

Além dos sintomas evidentes, decorrentes do álcool, o poeta sempre teve temperamento difícil, com vários episódios de crises emocionais, consideradas pelos psicólogos como "surtos psicóticos". Por conta disso, foi internado oito vezes em hospitais psiquiátricos do Piauí e do Rio de Janeiro, incluindo o hospital de Engenho de Dentro, de Nise da Silveira. Tentou o suicídio por quatro vezes, e não foi por falta de aviso quando "Pra Dizer Adeus" de Edu Lobo, foi lançada e encarada como uma lírica de separação de uma casal. Ao final, na última tentativa, nem família e nem os antigos amigos conseguiram conviver com seus humores.

Toninho Vaz – que fez mais de setenta entrevistas com parentes, amigos e inimigos do letrista -  também desconstrói a imagem de Torquato como poeta tímido, reservado, introspectivo, melancólico. A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva. Resgata entrevistas antigas, uma delas com Nana Caymmi que comenta não sem uma dose de malícia: "Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso". Caetano Veloso, outros entrevistado para a biografia, foi categórico. "Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!"

A polêmica fez com que a viúva de Torquato, Ana Maria Duarte processasse o biógrafo impedindo que o projeto fosse adiante pela editora Record. Mantendo a aura do "maldito", a biografia desse maldito foi publicada pela Casa Amarela, braço editorial da saudosa revista "Caros Amigos".

No início dos anos 1970, já tinha brigado com as esquerdas e com o pessoal do Cinema Novo, já afastado dos colegas tropicalistas, chegou a queimar quase todos os originais inéditos. Passou a frequentar novos grupos, como o pessoal do underground carioca (da Zona Sul, é proprio dizer), o pessoal do cinema Super8, e os malditos da MPB, como Jards Macalé, João Bosco e Luis Melodia, estes em quem focou últimos trabalhos. 

Em seu último ano de vida -  já com 34 músicas lançadas -, e escreveu artigos para jornais marginais como Flor do Mal e Presença, e organizou, com Waly Salomão, a edição única da revista Navilouca, publicada postumamente em 1974. Logo após sua morte, um material inédito de poemas foi reunido por Waly e pela esposa de Torquato, Ana Araújo, no livro Os Últimos Dias de Paupéria, além disso mais de 100 música de sua autoria seriam lançadas por diversos artistas -  algumas prontas, outras só na letra. Uma centena. 

No dia específico em que morreu, chegou de uma festa organizada por alguns amigos, após longa conversa com sua ex-esposa, deprimido, trancou-se no banheiro, fechou a porta, vedou todas as frestas com lençóis, abriu o gás do chuveiro e, asfixiado, atravessou o espelho do banheiro, aos 28 anos de idade, Exatamente: no dia do seu aniversário.

Na ocasião da morte deixou uma espécie de carta testamento/último poema, chamado "Fico".

"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

 Nota: Thiago era o filho de dois anos de idade, à época.

 

GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO 



Título: Glaucomattoso

Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

O nome no CPF é outro:  Pedro José Ferreira da Silva. Nasceu em São Paulo a 29 de junho de 1951. De ascendência italiana, entre Vila Mariana e Mooca, morou em diversos bairros de São Paulo. Os pais viam o menino estudioso, leitor compulsivo, e sonhavam e vê-lo advogado. Entretanto, Pedro José tornou-se bibliotecário. Formado em biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, também estudou Letras na Universidade de São Paulo, mas não chegou a concluir o curso.

Logo após a faculdade, já funcionário do Banco do Brasil, vai morar em Santa Teresa no Rio de Janeiro. Dalí para o Centro Cultural do Banco do Brasil, onde trabalhava na seção de numismática, era um pulo. Nesse mesmo período em que começa a colaborar com revistas e jornais alternativos, agrava-se o problema de visão que o acompanha pela vida. Pedro José desenvolveu um caso raro de glaucoma que o tornaria completamente cego em 1995. Mas ainda em meados dos anos 1970, assume o nome artístico de Glaucomattoso, um engenhoso trocadilho que envolve sua perda de visão com sua admiração por Gregório de Matos, de quem se considera o herdeiro na sátira fescenina. O novo Pedro José, então, passa a meter o dedo na ferida, na vida, na língua, nos orifícios, na dor e no prazer alheios.

Entre 1976 e 1994, colabora com periódicos no Rio de Janeiro, como Pasquim, 34 Letras. Participa dos primeiros movimentos LGBT’s do Brasil, o Somos, e colabora o jornal gay, Lampião. Em São Paulo como Chiclete com Banana no Jornal da Tarde. Com Nilto Maciel, organiza uma coletânea do conto marginal, Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal. Como ele mesmo disse recentemente: “Eu me identifico com os marginais porque publicávamos nossos livros com recursos próprios e não estávamos nem aí para as editoras".

A coletânea de poemas publicados na imprensa nanica e alternativa da ditadura, se concretizou num livro. O Jornal Dobradil, foi lançado em 1981 – um trocadilho do Jornal do Brasil, num formato de papel dobrado com poemas satíricos. E chegava a mandar sua criação para figuras como Millôr Fernandes e Tom Jobim. Neste mesmo ano, ainda escreveu um pequeno livro paradidático para a editora Brasiliense, Que É Poesia Marginal?

Paulistano convicto, com o agravamento da doença, volta para São Paulo. E entre a década de 1980 e 1990 participa ativamente de palestras e debates envolvendo a poesia marginal. Talvez por se considerar abertamente um produto do rock, da contracultura e do gibi, muito críticos embarcam na solução fácil de considerá-lo apenas um poeta de linguagem obscena e muitas vezes chula. Entretanto, sua obra é altamente elaborada. Abrange uma produção inicial de poemas concretos, visuais, passando a sonetos elaboradíssimos.

Até o início dos anos 1990, a visão, já muito comprometida, ainda lhe permitia ler e escrever. Nessa década, entretanto, com o agravamento da doença, que o impediu de fazer esse essencial para um poeta, se isola.

Entre altos e baixos, é tomado por uma depressão, e graças a amigos próximos, dá a volta por cima. Fã declarado do humor britânico, por, segundo ele, encararem as piores desgraças pelo lado mais grotesco, viaja a Inglaterra e trava contato com a cena punk britânica, especialmente grupos punks gays. De volta ao Brasil, já com a visão muito comprometida, passa a produzir CDs de punk e rock alternativo pelo selo independente Rotten Records, que fundou em 1995, e pelo qual orbitaram importantes nomes do cenário punk brasileiro. Em 1996 lançar o Urbanoise, dos Garotos Podres, e nesse mesmo período torna-se amigo de figuras como Redson Pozzi, guitarrista e vocalista do Cholera, Clemente Tadeu, guitarrista e vocalista dos Innocentes – e posteriormente Plebe Rude - e de João Gordo, dos Ratos de Porão.

Completamente cego, homossexual, sadomasoquista e podólatra, não necessariamente nessa ordem, Glaucomattoso ainda manteve uma carreira paralela como tradutor, durante os anos 1990. Em 1993, trabalha na tradução para o português da Bíblia do Skinhead de George Marshall para a Trama Editorial.  E na fase mais brava, após o desengano de qualquer operação corretiva para a visão,  o amigo Jorge Schwartz fez uma proposta de trabalho que, em certa medida, resgatou o velho Glauco: traduzir Fervor de Buenos Aires, obra de estréia do grande escritor argentino Jorge Luis Borges – que também ficara cego.

Aos domingos, falavam por telefone. Schwartz lia, enquanto que Glauco vertia os versos para o português com sua fala grave, sem nunca embaralhar as palavras, e assim Schwartz digitava no computador. Ganharam o Prêmio Jabuti de tradução, um dos mais importantes do país.

Como se já não bastasse a cegueira, para uma pessoa  que encara o alfabeto ainda tem 23 letras, incluído o Cá, o Dábliu, e o ìpsilon, a vida é difícil. Para falar a prosaica palavra “foda”, por exemplo, usa o pê e o agá. É que Glaucomattoso é meio parnasiano e ainda escreve em ortografia anterior à Reforma de 1943. No início dos anos 2000, já desiludido com alguma cirurgia que lhe devolvesse a visão, teve um sopro de esperança. Apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox (desenvolvido pela UFRJ para a língua portuguesa), em que a pessoa falava o que vai sendo digitado na tela do computador, ou lê em voz alta o que já vem escrito. Mas o problema ortográfico permanecia no meio da grafia de um ou outro orifício tocados por sua língua e seus dedos. Em fevereiro de 2008 completou dois mil e trezentos sonetos de uma série iniciada em 1999, e que segundo ele tinha batido a meta histórica do italiano Giuseppe Belli que no século XIX teria composto 2.279 sonetos.

Paulistana convicto, como já dito, hoje em dia Glaucomattoso vive na cidade de São Paulo, com seu companheiro. Segue produzindo incansavelmente e publicando sem parar. Quase tudo o que escreve e publica em livros de papel, vai para seu blog e redes sociais. Ele sabe que um parnasiano em tempos de Tik Tok, tem que se adaptar. É phoda, mas é verdade. Mantem assim em seu espírito anárquico, que é interrompido apenas nas segundas-feiras, quando vem um profissional especializado que o conduz à farmácia e ao correio. Ajuda-o nessas tarefas rotineiras, porém indispensáveis, que ele, um bancário aposentado do Banco do Brasil, cumpre geralmente sem ser reconhecido -  como um tarado, o louco, ou sanguinário - por ninguém na fila da padaria.