Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura
Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira. Este é, ao certo, o nome próprio que consta em sua certidão de nascimento. Nasceu no Funchal, em 23 de novembro de 1930, e era o filho caçula da família, composta por mais duas irmãs mais velhas. A mãe morre quando o menino tinha 7 anos. O fato abalou as estruturas da família, e com certeza, a sua relação com o mundo – quem duvidar disso, pode ler A Colher na Boca, que o poeta iria publicar com 31 anos. A partir dos 18 anos, a vida de Herberto Helder se torna literalmente a vida de um judeu errante e misterioso.
Conclui o curso no liceu de Lisboa, para onde foi aos 16 anos. Em 1948 entrou na Faculdade de Direito em Coimbra, mas logo no ano seguinte mudou de curso, transferindo-se para a Faculdade de Letras. Nesta, passou três anos, e sabe-se que frequentou as aulas de filologia românica, mas igualmente não concluiu o curso.
De regresso a Lisboa, teve o seu primeiro emprego, na Caixa Geral de Depósitos, um emprego que abandonaria logo, como inúmeros no decorrer da vida. A partir desse momento, passa a ter diversos trabalhos. Foi agenciador de publicidade, meteorologista na Ilha da Madeira - para onde tinha regressado em 1954 -, representante de laboratório farmacêutico, redator de publicidade, editor.
Como o pai tinha negado um empréstimo para ir ao Brasil - a exemplo das irmãs que já lá estavam -, Herberto Helder resolveu tentar a sorte percorrendo a Europa. Entre 1958 e 1960, perambulou por França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, trabalhando, aí sim, nas mais inusitadas funções. Já tinha uma relação com Maria Ludovina Dourado Pimentel, e precisava de dinheiro para o nascimento da primeira filha que estava a caminho. Neste período, trabalhou como descascador de batatas na Bélgica, agenciador de marinheiros em bairros de prostitutas na Antuérpia, estivador, empacotador de aparas de papelão, tudo o que se pode imaginar, não necessariamente nesta mesma ordem. E reza a lenda que chegou a passar fome, já que quando retornou, repatriado, teve de fazer um tratamento para avitaminose.
Antes de partir, às pressas, deixara os manuscritos de O Amor em Visita com Luiz Pacheco, que à época era apenas um brilhante iconoclasta poeta surrealista. Herberto ainda deixou alguns poemas publicados nas revistas Cadernos do Meio-Dia, KWY e Folhas de Poesia, antes de partir para sua primeira parada, França. Ficavam para trás a mulher grávida e as tertúlias do Café Gelo, onde se encontrava frequentemente como António José Forte, Hélder Macedo, João Vieira, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco.
Forçado a regressar a Portugal, arrumou talvez aquele que fosse o primeiro trabalho estável em décadas. Como bibliotecário da Fundação Gulbenkian, percorreu vilas e aldeias da Beira Alta, Ribatejo e Baixo Alentejo, num projeto de biblioteca itinerante. E nesses anos publica justamente o que os especialistas consideram a obra em homenagem a sua mãe, A Colher na Boca, além de Poemacto e Lugar.
Entrou para a Emissora Nacional em 1963, como redator do noticiário internacional, mas permaneceu ali apenas cerca de um ano. Tempo bastante para publicar Os Passos em Volta em 1963, um livro extremamente autobiográfico e premonitório de sua constante transitorialidade:
“Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.”
Em 1964, publicou com António Aragão, o n.º1 de Poesia Experimental, uma série que teve em suas páginas poetas como Mário Cesariny, a concretista Salette Tavares, e o poeta barroco alemão Quirinus Kuhlman. Eclético, foi alimentando a aura de enigmático, enquanto lutava para pagar as contas do mês. Trabalhou como tradutor de bulas e literatura explicativa de medicamentos para laboratórios, além das obras literárias de Hans Christian Andersen e Italo Calvino. Também se submeteu como voluntário para testes de grupos psicanalíticos no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria.
Publicou, em 1968, Apresentação do Rosto pela Editora Ulisseia, que foi rapidamente apreendida pela polícia, sendo destruídos os quase 1.500 exemplares impressos, de uma vez. No ofício de proibição, de 22 de julho de 1968, os “críticos literários” da PIDE descrevem a obra como uma “autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade”.
Herberto, já estava na alça de mira da PIDE desde a publicação de A Filosofia na Alcova, edição portuguesa do Marquês de Sade de 1966, prefaciada por David Mourão Ferreira e por Luís Pacheco. A tradução era justamente de Herberto Hélder, usando o seu único pseudônimo conhecido Helder Henrique. Antes de Apresentação do Rosto, aquilo já havia lhe custado um processo judicial, afinal a obra de Sade ainda por cima vinha ilustrada. O fato é que a cassação deu a Herberto uma certa aura de maldito. Nessa época, abandona a grupoterapia, passa a trabalhar num atelier de arquitectura e pouco depois como diretor literário da Editorial Estampa. Ainda participa, como ator, no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, o que pode ter sido sua última aparição em público.
Em Julho de 1969, nasce seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira, de uma relação com Isabel Figueiredo. Herberto Helder sempre foi obsessivamente discreto em relação à sua vida privada. Entretanto, mesmo neuroticamente silencioso, coincidentemente, ou não, consta que Herberto Helder apesar dos dois filhos, nunca teve uma união estável com uma companheira. Afinal, coincidentemente ou não, sempre que nasce um filho, Herberto Helder decide viajar. E para longe.
Dessa vez, volta a perambular pela Europa. E pouco mais de um ano depois parte para ser correspondente em Angola. O amigo João Fernandes, frequentador do Café Gelo, em Lisboa, arranjou-lhe a vaga de jornalista na ainda colônia portuguesa.
Em 1971, fez reportagens para a revista Notícias sob vários pseudônimos, e publicou Vocação Animal, publicação onde se afirmava que o autor deixara de escrever em 1968. A aventura em Angola deixou marcas profundas. Trabalhou em Luanda, De 1971 a 1974, onde foi redator da Notícia, uma revista editada pela empresa Neográfica, cujo capital era dividido por Manuel Vinhas do grupo Vinhas, da CUCA, a primeira cervejeira de Angola, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA. Em Luanda encontra nova companheira que o iria acompanhar pelo resto de sua vida, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar, a Mastaba, uma espécie de sucursal do Gelo lisboeta, onde se reuniam artistas e intelectuais, os chamados reviralhos.
Mas a aventura em Angola dura pouco. No ano seguinte, após um grave acidente de carro, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda" – que se reduziam tecnicamente, a dois livros Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).
Em seus artigos e escritos deste período, manifesta a admiração por Jack Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan, Leonard Cohen, Jim Morrison. Cita Patti Smith em Photomaton & Vox de 1979 e aconselha a todos a leitura de Henry Miller, antes que seja tarde demais.
A Portugal, mesmo, só retornou depois do 25
de Abril, para trabalhar em rádio e em revistas, como meio de sobrevivência,
tendo sido editor da revista literária Nova, da qual se publicaram
apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra
em 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra em 1978.
Alguém já disse, com razão, que apesar da linguagem rítmica, sua poesia deveria ser lida com o incômodo físico de uma pedra no sapato. O poeta era um atormentado, mas sendo bem lido tem algo de sentido de humor dentro e fora de sua poesia. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo sempre irônico, e safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.
Quando se
encontraram num café, o tempo fecha, e o aldrabão, depois de provavelmente ter
a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais
deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça.
Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. Como em muitas das histórias
obscuras de Herberto, realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho
Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright,
mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns e
outros que até rindo da situação.
Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António
José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007. Muitas perguntas ficam
no ar sobre sua neurótica aversão a entrevistas, e sobre seu desejo de separar
o público e o privado de maneira obsessiva, escondendo-se como pessoa. Alguns
dizem que a desconfiança da imprensa devia-se ao fato de reconhecer-se homem de
ambiguidades e contraditório - o que realmente não explica nada. Alguns trabalham
com a hipótese da tentativa de se preservar – o que explica menos ainda. Outros, como o velho Luiz Pacheco, associam a
misantropia com uma estratégia de marketing editorial
O fato é que recusa o Prêmio Pessoa em 1994, “por razões pessoais” - recusa que o tornou mais famoso. Em 1988 já tinha recusado os 10 mil Euros do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1988. Aos 64 anos o poeta que disse certa vez que “nada é mais apaziguador que ter falhado em todo os lados da biografia,” na certa pensou que 30 paus não vão fazer diferença nenhuma para um camarada que como eu, fui estivador, bibliotecário e até agenciador de putas… Do pouco que conhecemos Herberto, na certa o pensou, mas para manter a aura de enigmático, não o disse.
Em 2007 Pen
Clube de Portugal indicou o nome de Herberto Helder para Prémio Nobel da Literatura, o que igualmente seria
uma tremenda perda de tempo. A essa altura, nem o desdentado Luiz Pacheco duvidaria
que Herberto Helder daria uma de Jean-Paul Sartre.
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