Estive em Lisboa e Lembrei de você



Recebi o livro numa terça-feira e comecei a folhear o“Estive em Lisboa e Lembrei de você” hoje pela noite, aliás ontem. Terminei às duas da manhã, de hoje sábado, pois simplesmente não consegui deixar a saga de Serginho, mineiro de Cataguases que um belo dia decide parar de fumar e acaba indo parar em Portugal como imigrante ilegal.

O livro faz parte da coleção Amores Expressos, que lembro ter rendido muita polêmica infrutífera na época. No livro, que divide-se em dois momentos (“Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar.”), Ruffato conta a estória de Serginho, uma figura pacata, que vive uma vida sem grandes ambições. Os dois momentos expressam bem a tensão que levara a este amanuense modesto, peladeiro de fim de semana e funcionário da pagadoria da Companhia Industrial de Cataguases a parar de fumar, como esse cara gregário e boa praça, sem grandes ambições, acaba por se envolver com Noemi que engravida, forçando-o a casar.

Na primeira parte da história, passada no Brasil, vemos Serginho imerso em problemas não necessariamente criados por ele, mas que por força das circusntâncias vão lhe azedando a vida. Primeiro, uma gravidez indesejada. Segundo, um malfadado casamento já condenado desde o princípio a naufragar. Noemi, moça de “idéia fraca,” podia ter bem dado uma outra solução para o destino de Serginho, mas não, prefere ter o filho. Só que tempos depois, o casamento forçado por Carvalho, pai da moça, começa a dar sinais de esgaçamento. Noemi é instável, “ora prostrada na cama o dia inteiro, sem força para trocar a fralda da criança, ora virando noite sem pregar o olho, numa falação sem fim[...].” Os altos e baixos tornam a relação insustentável. Com a mulher ruim da cabeça, com a responsabilidade de Pierre, o filho, em suas mãos, com um emprego que já andava bamba, e a doença da mãe... sua vida entra quase em rota de colisão. Os Carvalhos decidem então internar a moça numa clínica de repouso em Leopoldina e ainda demandam contra o pobre Serginho um processo por maus tratos, negligência e abandono de incapaz. Natural Serginho se sentir esgotado com tamanha adversidade. A resignação de Serginho frete às circunstâncias da vida parece a de um bunda mole mas não é não. Não é homem de desistir fácil, mesmo com todas as adversidades, bem como lhe dissera certa vez a Mãe Célia, que baixava na progenitora da Irineia, uma de suas namoradas. Um dia conversando com os pinguços no bar, indagado sobre “O que você vai fazer da vida agora, ô Serginho.” “Pro enstrangeiro,” ele responde! Destino: Portugal.

Um pequeno parêntese deve ser feito para dizer que o livro, em meio a toda a ziquizira que envolve a vida de Serginho, tem passagens divertidíssimas, como por exemplo quando Serginho fala do tio Zé-Carlim, com quem dividia o quarto nos tempos de Cataguases, e que era fanático por automobilismo a ponto de espalhar cartazes do Emerson Fittipaldi e de sua Lotus pelas paredes do quarto...e que “por ironia, morreu cedo, nem trinta anos, no trevo da saída de Ubá, única vítima da batida entre um ônibus da linha Belo Horizonte-Muriaé e o Chevette do seu Lino [...]”. Ou por exemplo, quando vai conversar com o lacônico português Oliveira, que lhe dá dicas de como é o avião da TAP, “apertado,” “Tem banheiro?” “Tem Comida no avião?” “Passaporte?”...E de quando na cidade se espalha a notícia de que Serginho vai “pra fora”, e o amigo Ivan Cachorro Doido, assim como eu, um encostado do INSS – vide meu perfil no blog –, começa a procurar imóveis para o futuro nababo Sergio na região da rua Humberto Mauro, onde só há residências de bacanas e que Serginho reluta. O amigo prontamente filosofa, “Depois de conviver” com a civilização em Portugal, “Alta cultura,”não ia conseguir mais aturar o povo de Taquara Preta, sem educação, sem modos nem compostura, desclassificado, “Mas lá só moram os picagrossas,” Serginho rebate.

Vemos que na primeira parte do livro há uma caracterização perfeita do ambiente de Cataguases. Não me furtei de pensar, bem Ruffato está escrevendo sobre um protagonista angustiado em continuar vivendo numa cidade pequena cercada de gente pequena, mas ainda assim escreve sobre um habitat de tipos folclóricos facilmente identificáveis na rua, na sua rua. Na segunda parte do livro, sim, causa surpresa pois Ruffato escreve sobre Serginho já em Portugal como imigrante ilegal brasileiro. Ou seja, está escrevendo sobre uma realidade que não é a sua, que requer inventividade e mão firme para prender o leitor. Ou seja, sem muito exagero pode-se dizer que há um século, um mestre escrevia na periferia do capitalismo, e que hoje dada as circunstâncias que levam milhões de brasileiros como Serginho a emigrar, Ruffato escreveu um livro no centro do capitalismo, sobre a visão do imigrante, em outras palavras sobre a visão do periférico no centro do capitalismo, àquele que não só está à margem da lei mas também de uma cultura que por mais que os acordos ortográficos se esforçem é distinta. Em Portugal, convive com suas limitações e frustrações que vão desde o preconceito das autoridades, a competição férrea dos novos imigrantes vindos de leste europeu, a falta de emprego, de dinheiro e de amor.


A habilidade e a sutileza de Ruffato estão nos detalhes dessa relutãncia e aculturação, na assimilação dos idiomatismos lusos que Serginho vai apreendendo, na fala interiorana de Serginho - que não se perde - revelando a mão segura e inventiva de um dos mais bem-sucedidos autores brasileiros contemporâneos. A solidão, a falta de grana, atenção e carinho fragilizam Serginho a tal ponto que quando nosso heroi encontra Sheila, moça que laputa como buta em terras lusitanas, já nem sabe mais definir os contornos que tornam o amor um troço delicado pra caramba. Num dia, confundindo um flerte com a evocação de uma mítica terra natal, o resignado Serginho leva Sheila para almoçar num restaurante brasileiro, noutro dia vão passear pelos monumentos, e na cabeça de Serginho a solidariedade entre imigrantes que evolui para a amizade o ilude e forma uma frágil e ambígua idéia de amor.

O que admito no Ruffato é sua liberdade de expressão, seu realismo de falas naturais sem a idealização de uma linguagem artificial, tampouco na evocação de uma linguagem pobre. Os personagens incrivelmente reais não alimentam sentimentalismo barato, mas nem por isso evocam a indiferença do leitor. Sua autêntica razão talvez resida no fato de aurtorizar discursos, dando visibilidade, dando voz a personagens que não tem voz, nem na literatura, nem na sociedade. Tais discursos já haviam sido desvelados por Drummond, Graciliano, Dyonelio Machado e uma série de outros autores, mas este, apesar de um livro pequeno, na forma quase de um conto, prova por que Ruffato está entrando para o time da ficção contemporânea no Brasil com uma prosa fluida de personagens aparentemente prosaicos mas não necessariamente vulgares, enredos breves mas não necessariamente superficiais, e um conteúdo denso que foge das banalizações.





Aonde o Vento me Levar


Aonde o Vento me Levar é o título de um dos muitos livros do jovem escritor Manuel Jorge Marmelo. Foi-me indicado por um amigo em comum, meu e dele. Veio com a recomendação: se você gosta de Paul Auster, gostará dele. Apenas disse isso e deixou que eu descobrisse o resto....

Li. Sinceramente, na primeira vista não gostei. Comentei com esse amigo e disse que faltava-lhe algo que nem mesmo eu sabia explicar. Talvez ação, talvez um contorno maior da psicologia do protagonista. Meu amigo insistiu. Conheço esse amigo a suficientes anos para saber que ele não é um leitor amador, que não é um profissional qualquer da literatura, e que assim como eu constata com certo incômodo, que a lógica da narrativa formal causal-linear sofre de uma certa debilidade no relato contemporâneo, agora ligeiro, disperso, fragmentado e superficial; de uma acumulação de superficialidades e lugares comuns. Se insistiu é por que merece uma releitura.

Reli, ontem. Mudei de idéia completamente. Descobri num novo livro um livro muito bom, e uma personagem principal, ainda que imersa numa vida monótona, interessante: o escritor. Explico: a personagem principal é um contador, uma espécie de guarda livros, um pacato funcionário que habita a monotonia e o conforto de um escritório, massacrado pelo cotidiano, e movido pelo sonho de escrever um livro.

O problema é que sua vida, cercada pela solidão e pela racionalidade matemática, não admite erros, falhas, discordâncias. As colunas somatórias do Excel devem estar impecavelmente alinhadas e as contas, no fim do dia, devem bater. E tem um problema maior. Antes de iniciá-la, não tinha uma idéia ou sequer estória definida. Portanto, como todo o escritor, sobre a folha branca deveria inventá-la. Assim, começa pela elaboração de um personagem. Seu personagem principal se chama M.. M. é uma criatura que com o passar da estória torna-se um ser autônomo. Este lhe conta a estória de um grande amor perdido por uma tal Rosa, nome que nunca agradou ao escritor, preferindo chamá-la em seu relato como Atla. Ou seja, o escritor inventa um personagem e o personagem domina o escritor e o conduz por caminhos desconhecidos. Para narrar a estória o contador decide matar Atla no primeiro capítulo do livro que escreve e sugerir a seu personagem que viaje para a Africa a procura de um novo amor. A estória então se torna interessante, pois é evidente que o Eu do escritor se propõe a escrever um livro de viagens baseado nos telegramas enviados por M. da Africa. Há então um jogo interessante entre o criador, que não se sabe bem quem é e a criação deste autor.

Para quem tem familiaridade com os filmes Being John Malkovich ou Eternal Sunshine of the Spotless Mind, pode constatar que há algo em Marmelo que pode-se encontrar nos filmes do brilhante roteirista Charles Kaufman. Ou seja, em meio a estórias aparentemente confusas e enredos inverossímeis, existe um jogo envolvente apresentando-nos um narrador céptico. Na estória de Marmelo, o protagonista, ou seja o contador-narrador, maldiz o excesso de realidade e de monotonia em sua vida. Nessa tensão entre um protagonista rígido e um antagonista livre para viajar, para amar Atla, Amina, Fathma... e para reinventar-se, protagornista e antagonista acabam por intercambiar seus papéis, pois mesmo que o narrador lamente constantemente a abundância de realidade que surge em sua escrita, consegue nessa tensão, entre o que deseja escrever e o que consegue expressar por palavras, realizar o que em suas palavras seja um exercício literário honesto.

Outro paralelo poderia se traçar entre o nosso contador e Daniel Quinn, personagem que persegue Paul Auster em Trilogia de Nova York. A única e irônica diferença é que nosso próprio narrador afirma precipitadamente - “eu sou o manipulador, e M. é o meu títere. E que não reste nenhuma dúvida sobre isso.” - ter controle absoluto sobre M.. Ironicamente, isso deixa de ser verdade no momento em que M. começa a dominar a narrativa com seus telegramas, envolvendo o próprio contador em suas estórias de aventuras e amores na Africa. A questão é que tanto quanto Craig Schwartz conhece John Malkovich, e Quinn muito bem conhece a Auster, desconfio que nosso contador-narrador conhece bem M.. Desconfio de uma ou duas outras coisas mais.

Desconfio, por exemplo, que na verdade M. seja um médico galego que deixou tudo para trás indo trabalhar em Lisboa. O que me leva a suspeitar da real identidade de M. é num de seus telegramas, dando conta que conheceu uma liberiana de nome Fathma por quem se apaixonou. M., através de seus aerogramas enviados ao contador-narrador de Marmelo, oxalá, escreve uma narrativa reinventando-se. Os telegramas, de tom sincero e confidente, não deixam de ser um ajuste de contas consigo, que o contador-narrador de Marmelo vai tratando de desvendar, ao mesmo tempo que vai mostrando sua face extremamente introspectiva. Fathma pode muito bem ser o alter-ego de Oriana ou até mesmo Ondina... mas isso são suposições...

Mas mesmo que o contador-narrador de Marmelo construa uma ficção sobre as imagens criadas por M., e que a partir delas tente fugir de sua própria realidade, ocultando a sua realidade como motor da obra literária, no final, em Londres, quando encontra G., uma colega do curso de contabilidade que prometera guiá-lo pela cidade, tudo passa a fazer sentido: Aonde o vento me levar.
Música do dia. A Desconhecida - Fernando Mendes. E se é pra falar do brega-blues põe ai o Ana no Roberto Carlos - Aliás, vai por mim, se um dia tiveres coragem de escutar o Rei, os dois melhores e raríssimos discos de Roberto Carlos são As Flores do Jardim de Nossa Casa e Ana.

On the Waterfront

Mesmo sabendo que o poço é bem fundo, desconfio há muito tempo a que a delação seja uma das piores coisas da alma humana, e é por isso, confesso, que sempre tive problemas com o enredo do filme On the Waterfront. Terry Malloy, interpretado por Marlon Brando, trabalha no porto de Hoboken em New Jersey, região predominantemente dominada por irlandeses e italianos até pocos anos atrás. O sindicato de estivadores é controlado por Johnny Friendly, um advogado corrupto, e por Charley Malloy, irmão de Terry.

Um dos estivadores que passara a denunciar as atividades ilegais do sindicato, Pop Doyle, é assassinado pelos capangas de Charley Malloy. Edie Doyle, irmã do morto, pede a Terry ajuda para encontrar os culpados. O problema é que Terry colaborara com a captura do irmão de Edie. Com a cara mais dura que alto grau de dureza Rockwell e a consciência pesando mais que liga de molibdênio, Terry promete ajudá-la e decide procurar o Padre Barry que o força a entregar os culpados as autoridades. Ou seja, por amor, Terry que é tão mafioso quanto os outros, decide dar combate a toda a corrupção que campeia a ação do sindicato. Ou seja, um novelão onde certamente Terry, voilá, na minha psicanálise de banca de jornal, podia bem ser o alter ego do Kazan.


Mas reconheço que o breve monólogo do Marlon Brando venceria qualquer Oscar ainda hoje.


“Remember that night in the Garden? You came down to my dressing room and you said 'kid, this ain't your night. We're going for the price on Wilson'... You was my brother, Charlie. You shoulda looked out for me a little bit so I wouldn't have to take them dives for the short-end money. I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum. Which is what I am. Let's face it.”

Le Colonel Chabert


O conto Le Colonel Chabert foi escrito em 1832, logo após a revolução de julho 1830. Apesar de uma curta estória, Balzac envolve como ninguém o contexto histórico com a urdidura de uma trama melancólica – e diria com muita descontextualização pré-kafkaniana. Coronel Chabert era um herói de guerra que ao lado de Napoleão Bonaparte participara de campanhas vitoriosas. Entretanto, Napoleão morrera em 1822, após a derrota de Waterloo e o ostracismo de Santa Helena. Agora, temos Louis-Philippe d'Orléans no poder – aliás, curiosidade, a filha de D. Pedro I, a infanta Chiquinha de Bragança acaba casando-se com o filho de Louis-Philippe - que com muita dificuldade tenta conter a onda liberal que varre a Europa e desencadeará na Primavera dos Povos.

O problema é que assim como Napoleão de fato está morto, o Coronel Chabert está apenas teoricamente morto. Chabert tinha sido atacado por dois oficiais russos na Batalha de Eylau em 1807 e dado como morto. Neste meio tempo, entre a vida e a morte, um amigo dos campos de batalha, Boutin, fora a Paris levar a notícia da convelescência de Chabert à sua esposa, a jovem Rose Chapotel. Vivinho da Silva, escreve umas quatro cartas a sua esposa que capitunamente – advérbio de modo para Capitú – mantém segredo sobre as cartas e dá entrada na papelada do espólio. Após alguns anos, Chabert descobre que a senhora Chabert casara-se com o Conde de Ferruad passando a ser senhora Ferruad.

A estória vai ficando clara quando Chabert decide, numa manhã de fevereiro, procurar o jovem advogado Derville - que aparece em algumas outras obras como em O Pai Goriot [resumo em caminho] - , que dormia num dos quartos de seu étude, enquanto seus auxiliares rascunhavam petições e revisavam o trabalhos recém-chegados. Uma das petições era fina e i-ro-ni-ca-men-te sobre uma longa peça jurídica, em que o rei Luís XVIII restituía a seus servidores todos os bens não vendidos que estivessem sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários. Entre piadas de mau gosto e o humor dos médicos legistas os auxiliares riam de suas próprias invenções e esperavam que o juiz encarregado do processo ficasse impressionado com a argumentação que teciam.

O Coronel Chabert, a princípio não causa boa impresão a Derville. Sua aparência esfarrapada, degradada e carcomida pelo tempo, causou uma certa reulsa ao jovem procurador, que via em seu rosto pálido a aparêcia triste dos que tinham perdido tudo. Derville, que defendia os interesses de seus clientes no Tribunal de Pimeira Instância do departamento do Sena, era considerado um dos melhores jurisconsultos de Paris. Sua clientela era importante e é pintado por Balzac como um jovem bom, mas que tem um sentido de oportunidade e um faro para o dinheiro bastante apurados. Chabert quer seu dinhero e mais que isso, sua honra restituida. Para isso contata a Derville, que lhe adianta uma pequena monta de dinheiro para que o Coronel pudesse viver com mínima dignidade até um possível acordo entre as partes. No entanto Derville é também procurador do Conde de Ferruad e para evitar um escândalo, propõe às partes um acordo.

Cheque: se Rose Chapotel reconhecesse Chabert, terá de anular seu casamento com o Conde de Ferruad, com quem tem dois filhos. Chabert, não tendo nenhum familiar próximo que pudesse identificá-lo, baseado nos documentos de defunção vindos de Heilsberg, só conta com Rose. Ela, capitunamente, dá uma de João-sem-braço, (perdoe o trocadilho) finge-se de morta, apela para a hipócrita condição de mãe de dois filhos tentando convencer a Chabert de sua fragilidade e condição oprimida. Derville propõe um acordo pois a situação de Hyacinthe Chabert era delicada. Nem seus bens, nem sua honra estavam sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários, portanto a restituição não seria feita por decreto. Além disso, vários motivos tornavam tudo mais complicado. Primeiro, supondo que Rose o reconhecesse, ela incorreria no crime de extra matrimonium corneamentus por ricardisse bigâmica, já que está casada legitimamente com o Conde Ferruad com quem tem dois filhos – e obviamente ela não incorreria no risco. Segundo, os juízes poderiam muito bem anular o primeiro casamento que sem filhos expunha um vínculo frágil entre Chabert e Rose. Terceiro, sendo Chabert generoso e idealista, fizera um testamento endereçando uma quarta parte da herança para obras de caridade. A “viúva” não incluíra no espólio nem prataria, mobiliário, ou dinheiro, apenas propriedades. Portanto, mesmo que reavesse algo, Chabert ficaria com uma mínima parte. Por último... a justiça naquele tempo, na França, era morosa... Chabert era um ansião... assim, Derville propõe um acordo amigável, anulando o registro de óbito e seu casamento. Com isso, por influência do conde Ferraud, Chabert seria reinscrito nos registros do exército, obtendo o grau de general Juruna - na gíria da caserna - com direito a uma pensão.

No dia do acordo, Chabert e Rose frente a frente, não houve acordo. O tempo fechou. Armou-se o maior barraco. Ela o acusava de impostor, ele, por sua vez, afirmara que ela era protitutamente quenga da mais alta piranhuda espécie no Palais Royal. Verdade ou não, ela sente-se ofendida e sai do escritório do advogado chorando, correndo e fazendo beicinho. Porém, fica do lado de fora de sua carruagem esperando por Chabert. Na saída aproxima-se de Chabert toda edulcorada, cheia de lesco-lesco, fazendo questão ele fosse com ela à casa de campo em Crosley. Durante o trajeto, procurou chegar ao coração mole do milico, mostrando o quanto seria desgastante para todos aquela situação. Ficaram lá por três dias, fazendo o quê, eu não sei, nem Balzac revela. Mas o fato é que não chegaram a um acordo. E como madame Ferraud não era flor que se cheirasse, armou uma cena com os criados da propriedade.

Ela queria internar o Coronel como louco no hospício de Charenton. Para isso precisava da assinatura de Chabert num documento onde este admitia sua falsa identidade. Derville longe, não sabia de nada. Ela manda trazer os filhos tentando mostrar a Chabert que ela era uma mãe dedicada, sofredora e penitente, e que se ele continuasse com a demanada ele prejudicaria seus filhos. Ele até aventou a hipótese de virar arrimo de família, habitando a quinta, tendo uns tostões para o jornal e o tabaco. Mas ela tinha outros planos. Encarregou Delbec, um velho secretário, a providenciar, junto ao tabelião de Saint-Leu-Taverny, um documento vago para ser assinado por Chabert. Estes partem para Saint-Leu-Taverny, mas chegando ao cartório e vendo os termos do documento, Chabert decide voltar para a quinta sem assinar nada. Decide pensar no que fazer. Ficar a sós com Rose. Ele espressara seu desprezo por ela e partira.

A situação de Chabert é tão humilhante quanto compassiva. Derville é informado por Delbec que seu cliente reconhecera sua falisade ideológica. Derville decepcionara-se com seu cliente até que algum tempo depois, procurando por um advogado no prédio da Polícia Correcional, encontra a Hyacinthe, condenado por vagabundagem a dois meses de prisão em Saint-Denis. Aproximou-se dele que com um ar estóico e altivo explicou o que se passara naqueles dias na quinta.

Derville entra em parafuso com sua profissão dizendo que “nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar.” E num monólogo ilustrativo expõe sua visão bucólica sobre a condição humana, “Vi morrer um pai, num sótão , sem vintém, abandonado por duas filhas a quem dera quarenta mil libras de renda. Vi queimar testamentos; vi mães roubando seus filhos, maridos reduzindo esposas à miséria, mulheres matando seus maridos e servindo-se do amor que lhes inspiravam para fazê-los loucos ou imbecis, para poderem viver em paz com seus amantes. Vi mulheres dando ao filho do primeiro leito gostos que deviam conduzi-lo à morte, a fim de enriquecer o filho do amor. Não posso dizer-lhe tudo que vi, porque vi crimes contra os quais a justiça é impotente. Finalmente, todos os horrores que os romancistas julgam inventar estão sempre abaixo da verdade. Você conhecerá essas belas coisas. Quanto a mim, vou viver no campo, com minha mulher.”

Música do dia. A Trombone on Tereza Street. Ian Guest. in Vittor Santos, Renewed Impressions.

Alvaro

Conheço alguns Alvaros, mas ainda não conheço os livros do Charles Kiefer,



infelizmente...

A Casa de Alice


Alice é uma manicure quarentona. Ao lado de sua família, Alice segue a lógica de Pangloss e insiste no sonho de ter uma família feliz, a lado da mãe senil, do marido e dos três filhos. A casa de Alice é uma casa tipicamente de classe média baixa. O apartamento é apertado, e a grana nunca chega ao fim do mês. Ou seja, uma realidade não é muito distante, e quase real. Neste contexto, vamos descobrindo aos poucos que os habitantes da casa, de quotidiano bem pacato, frequentam mundos paralelos, com segredos e crendices, e que nos momentos de crise revelam-se pessoas mesquinhas e egoístas.

Talvez este tenha sido um dos ótimos filme brasileiro que eu merecia há tempos assistir. Alice, interpretada pela impresionante atriz Carla Ribas, não é uma mulher linda, mas é uma mulher bonita, atraente, e certamente meio desleixada com sua aparência. Alice, como já disse, se esforça para transformar sua casa num lar. O problema é que em sua relação com o marido já não há amor, portanto não há sexo, e tudo não passa de um convívio de indiferenças. O marido é um homem frio e distante dentro de casa. Na rua tem amigos, bebe, ri e tem até uma amante ninfeta, que por acaso é vizinha. Os filhos são ociosos e problemáticos. O mais novo é apático mas carinhoso, o do meio encrenqueiro e ladrão, e o mais velho michê. A mãe, senil, hipertensa e cega, fragilizada pela indiferença e pelo desprezo dos meninos e do genro. Mas se perguntada, Alice, no salão, garante com ar de banalidade que em casa está tudo em ordem, que os filhos são maravilhosos e que a família vai bem, obrigada. De uma certa forma, Alice mente pois sabe que tudo está prestes a desmoronar, pois sabe que é uma mulher massacrada pelo que o cotidiano tem de mais cruel, a falta de esperança. No entanto, Nilson, um antigo amor, surge meio que por acaso na vida de Alice. Ela volta a se apaixonar, a encontrar uma razão. Mas a antepenúltima viga dessa estrutura frágil cai, quando Alice descobre que o marido tem um caso com a vizinha, uma menina de...14, 13... anos. A penúltima cai, quando é abandonada por Nilson e a última quando se descobre só, irremediavelmente.

O filme é realista. As falas naturais. Os personagens incrivelmente reais. A câmera treme e muitas vezes foca mais nas expressões corporais que na fala do personagem. Não há sentimentalismo barato. Não há recurso artificial algum (flashback, música, narrador…). Enfim, descubro nos extras do DVD uma entrevista ótima com o diretor Chico Teixeira. Descubro nesse meu xará um profissional, um ex-economista com pós-graduação, que chutou tudo para o alto para fazer o que queria, documentários. Pensei: tá explicado. Extremamente sincero e despido de intelectualismo barato, o diretor me convenceu que o filme é uma espécie de documentário sobre uma ficção. Quase como uma nova experiência de linguagem, tão ou mais importante quanto aquela experiência do grupo Dogma 95, sem a soda cáustica de seus roteiros sofríveis, com personagens intelecutalizados, afetados, inverossímeis, apesar das imagens inovadoras. E não é que só hoje pela manhã me veio a idéia que não há uma uma nota, uma trilha sonora no filme inteiro! Tremenda ironia. Nunca pensei que o realismo italiano pudesse se sustentar sem as notas do Nino Rota....


Primer Amor


Primer Amor, é uma novelinha curta e bastante celebrada de Turguenev. Publicado em 1860, o livro é francamente bem escrito, moderno, mas extremamente previsível. Além disso, sofre de um digamos assim pecado original. Se não me engano, por essa época dos inícios dos anos de 1860, Dostoiévski já retornara da Sibéria - já publicara Humilhados e Ofendidos, já traduzira uma penca de novelas de Balzac e andava a escrever o Recordações da Casa dos Mortos. É mais ou menos, mal comparando, como se alguém quisesse publicar um livro nos anos posteriores a 1984, ano de Viva o Povo Brasileiro.

Vladimir Petrovich. 16 anos, ou seja, para bom entendedor pingo é letra. Exalando testosterona pelos poros vai passar umas férias no campo com a família. Lá conhece Zenaida Alexandrovna Zasyekina, uma moça de 21 anos que pertencente a uma família em franca decadência, com uma mãe divorciada, e que ainda mantém algum prestígio por pertencer à nobreza. Mas para Vladimir, que desconhece a palavra pindaíba em russo, isso não importa. O que importa é que mesmo Zenaida tendo um monte de pretendentes, que podem tirá-la da situação de pindaíba financeira, sua paixão arrebatadora, digo, a paixão arrebatadora de Vladimir é maior que tudo.

Não é preciso avançar muitas páginas para perceber que em Zenaida, digo, no ser de Zenaida é cheio de vitalidade e de beleza, e havia neste uma mescla de astúcia e despreocupação, de afetação e sensibilidade, de calma e vivacidade. Ou seja, Zenaida, para além de sua situação calamitante de pindaíba financeira, estava na flor da idade e queria flertar e amar sem preocupação. Pretendentes não faltavam. Belovsorov, a quem chamava de ‘meu animal’ – que para bom entendedor, pingo é letra -, era o que lhe ateva fogo... Maidanov era o poeta que tratava de convencê-la em versos que a adorava... Lushin era um médico, o mais mordaz de todos os pretendentes, o que tinha alguma ascendência sobre ela... e o conde de Malevskiy era o mais escorregadio, cheio de palavras doces e toques sedutores. Zenaida se esbaldava e o pobre do Vladimir sofria às pampas na mão da danada da lúbrica Zenaida que, mesmo tentando, falha na recipocidade do amor ao rapaz.

Falha de maneira brutal, pois usa com Vladimir os mesmo jogos de sedução que usa com os outros homens mais maduros. Usa-os de maneira a não refreá-los ou sublimá-los em tempo algum. Sem reservas de controle sobre si, deixa-se levar por uma paixão altamente combustível e até mesmo trágica.

Vladimir descobre com uma tremenda dor, dentro de sua própria casa, após uma discussão dos pais, que o objeto do desejo de Zenaida é nada mais nada menos que seu pai Pyotr Vasilyevich. A família então decide partir abruptamente de Kaluzhkaya Zastava, deixando para trás o escândalo que começava a se formar. Após um último passeio a cavalo com o pai, este desata numa carreira sumindo na poeira. Vladimir tenta segui-lo, mas não o alcança. Chega então a uma cabana, onde o pai se encontrava perto da janela. Na espreita, observa quem estava na cabana era nada menos que Zenaida. Pyotr a surra com seu chicote. Ela beija os entalhes avermelhados da pele. Não, não se iluda, esta não é uma estória de pornografia. Mais bem uma estória que prova como um enredo pouco construído pode tropeçar no óbvio - do que podería estar implícito no próprio desenrolar da estória e nas obsessões de Vladimir, Pyotr e da própria Zenaida.

Oito meses depois os Petrovich recebem uma carta ameaçadora pedindo alguma recompensa não bem explicada. A Providência faz com que Pyotr morra poucos dias depois de um ataque do coração. Três ou quatro anos depois, Vladimir encontra Maidanov na saída de um teatro. Este revelha que Zenaida casara-se com um tal de Monsieur Dolsky. Quando finalmente Vladimir decide procurá-la, descobre que ela morrera poucos dias antes ao dar a luz. Enfim, uma síntese didática dos males do amor jovem sem a complexidade, sem a força, sem aquela sensação de limite do intolerável, do inapropriado que Dostoievski nos deixa. Ou talvez não tenha ficado satisfeito pois no fundo, o livro - lido numa noite - encaminha uma estória que poderia ser densa em sua paixão destruidora, em sua deterioração, em seu esgaçamento de relações filiais, para um recuo visível e nos proporciona solução decerto conciliadora com a morte de Pyotr e Zenaida. Enfim, talvez eu não tenha entendido Turguenev.

Luz de Agosto



Luz em Agosto é um desses livros que nos deixa sem ar. Mesmo numa leitura avulsa, setenta e sete anos após o seu lançamento, a força e o impacto que suas palavras, expressões, inúmeros personagens e de sua inventividade corrosiva nos deixa com a glote por um fio de ar e faz a pulsação do leitor disparar. Dizer que Faulkner buscou em Luz em Agosto uma narrativa polifônica é uma redundância barata, pois esta era a marca do autor que imprimiu, basicamente a mesma técnica em Sound and Fury e em muitos outros de seus livros e contos. Não só a marca do autor, mas quase de uma época. Neste mesmo período, contemporâneos de Faulkner, tais como Virginia Woolf e Joyce escreviam com a mesma pungência dando voz ao fluxo de consciência de seus personagens.

Um dos muitos méritos de William Faulkner foi o de ter a ousadia de penetrar seu cutelo no coração do puritanismo norte-americano. Mais, é como se Faulkner tivesse dito a Deus, ô cidadão, fica de fora que em Yoknapatawpha mando eu. Ou num sentido mais prosaico, nesse universo puritano, é como se o nome de Deus fosse evocado a todo o instante, mas qualquer idéia que o associasse aos atributos de generosidade e solidariedade ficasse de fora, deixando o papo para os mortais.

A construção da estória em vários eixos narrativos é talvez a inovação de Faulkner. Um destes eixos está centrado no personagem principal Joe Christmas, a princípio tido como homem um branco que acredita ter sangue negro. Atormentado ou motivado por tal crença, Joe, age de maneira alheia aos valores dos brancos e instiga a intolerância racial que campeia no sul dos Estados Unidos. Num segundo eixo, uma outra personagem importante é Lena Grove, uma adolescente grávida que vem do Alabama e chega a Jefferson, a cidade ficcional criada por Faulkner em Yoknapatawpha County, a procura de Lucas Burch, o rapaz que a deixou grávida. No exato momento de sua chegada, a casa de Joana Burden, mulher de quem Joe Christmas foi amante, esta em chamas. Um terceiro eixo encontra sentido no reverendo Hightower, que é o personagem que ata as narrativas esparsas.

Joe Christmas é um personagem à parte. Um homem sem passado específico, uma espécie de órfão, que pouco a pouco vai se tornando uma espécie de pária, sem destino específico, à procura de sua identidade a ponto de quase perder de vez a razão nessa procura. Para o bom leitor, é um personagem que carrega um estigma que o força a ser indiferente por seu semelhante. Este mesmo estigma é usado para justificar seus atos violentos. É um personagem trágico e altivo que não se dobra às circunstâncias. Joe chega a Jefferson três anos antes do início da novela, ou seja, da chegada de Lena à cidade, ou seja, do incêndio e assassinato de Joanna Burden. Assim que chega, começa a trabalhar na lavoura, e este trabalho cria uma cortina de fumaça para a sua real atividade que é a de distribuição de àlcool durante a Lei Seca. E notório na cidade que Christmas é um homem que fabrica bebida clandestinamente durante a Prohibition - que vigorara nos EUA durante toda a década de 1920. Suas atividades ilícitas não chegam a chocar, pois acaba fornecendo birita a muita gente na cidade. As coisas mudam quando este passa a ser suspeito do assassinato da velha solteirona, de quem fora amante por algum tempo, quandoBrown, seu cúmplice na destilaria clandestina, de olho nos negócios do sócio, interrogado e pressionado, delata o companheiro. O sangue negro encoberto de Christmas, delatado pelo o assecla, desperta o ódio da comunidade. No mesmo dia em que a casa arde, chega à cidade Lena Grove.

Lena, após a morte do pai, vai morar com um irmão casado e cheio de filhos. O irmão é um homem rude, ‘doçura, delicadeza e idade florescente e quase tudo mais – exceto uma espécie de inteireza tenaz e deseperada e uma triste herança de orgulho familiar – tinham desparecido com a dureza do trabalho’. Após sofrer humilhações e ser constantemente chamada de meretriz, Lena foge de casa a procura do pai de seu filho, Lucas Burch. Sem destino certo acaba vindo parar em Jefferson, mais precisamente na serralheria de Mr. Breads, onde Byron Bunch trabalha. As proximidades dos nomes de Bunch e Burch acabam gerando um certo mal entendido fonérico – impressionantemente possível com o sotaque sdo sul dos Estados Unidos - , prontamente preenchido e aumentado pelos locais. Para muitos Buch é o pai da criatura que Lena carrega. O problema é que algo está fora do lugar nessa estória, mesmo para os mais interessados em tocar com a aldraba a porta do chisme. Bunch é um homem que segue à risca a ética puritana. É um homem trabalhador que dedica-se, inclusive aos sábados, a carregar carroças de tábuas e aos domingos, e após a jornada de trabalho anda mais de trinta milhas para ensaiar o coro de uma igreja. Seu amigo Hightower é o único que sabe de sua dedicação e entrega ao trabalho e à fé, e portanto seria algo diacrônico ser o pai da criança. Byron Bunch é um homem de poucas palavras, não por expressão de sabedoria, mas por inabilidade em usá-las. E um homem inculto. Faulkner é sutil ao contornar os detalhes seu intelecto, finalizando seus diálogos sempre com alguma reticência e evocando várias vezes sua admiração pela eloquência de Hightower.

Gail Hightower, é um homem que tendo sido reverendo, era obrigado a viver uma vida de aparências ao lado da esposa. Um homem fanático pelo passado de seu avô Confederado, julgado sumariamente por ser pego roubando um frango numa granja, e que proclama sermões inflamados causando desconforto na cidade evocavando constantemente a saga e o infortúnio do avô. Entretanto, não por ser difuso tampouco por ser repetitivo que Hightower é preterido, mas por que foi abandonado pela mulher, encontada morta pouco tempo depois. Os rumores que se seguiram o fizeram perder não apenas a mulher, mas sua reputação e sua congregação. Este passado distante ainda reverbera em sua vida eremita pois as desconfianças da preconceituosa sociedade local de Jefferson, que lhe vira as costas, são um componente fundamental para entender o destino de Joe Christmas, personagem principal dessa obra monumental.
Byron Bunch é o único que rompe esse círculo de isolamento e o visita eventualmente. Numa destas visitas Bunch pede que Hightower sirva de álibi a Joe Christmas, que ao escapar da prisão pelo suposto assassinato de Joanna Burden, se refugia na casa do reverendo. Interessante pois em nenhum momento do livro - ao menos que me lembre - fica claro que foi realmente Joe Christmas o assassino de Joanna Burden e tampouco é muito bem explicado - talvez eu necessite de uma segunda leitura - esse pedido de Bunch a Hightower, salvo por vagas razões. Sabe-se que quando Christmas foge do posto policial e se refugia na casa de Hightower, este o aceita, ainda que já seja tarde demais pois Percy Grimm ja anda em sua cola. Sabe-se também que Bunch é visto nas redondezas da casa de Joanna Burden enquanto a mesma ardia, mas nada é afirmado categoriacamente.

Mais interessante ainda é a falta de certezas em que Faulkner imerge o leitor evitando ser categórico sobre a relação entre Joe Christmas e Joanna Burden. A princípio, aquela era uma relação conflituosa, pois ao passo que Burden se dizia defensora dos ideais abolicionistas e fazia vista grossa para os pequenos roubos que Christmas efetuava, entrava em conflito com os demais habitantes da cidade por protegê-lo. Joe Christmas, por sua vez passa a sentir desprezo por Burden, uma mulher já em idade de menopausa, sem possibilidade de ter filhos e por isso mesmo entregue ao fanatismo religioso. Joe, que era órfão, tinha sido criado e abusado, física e psicologicamente, por uma família religiosamente conservadora.

Faulkner se utiliza de um recurso absolutamente original. Em cima dos fluxos de consciência, sejam eles falsos ou verdadeiros, de um personagem, Faulkner cria outras direções. Assim, vai instaura enredos intermináveis sobre o que o preconceito cristalizado na fala de um personagem cria a respeito de outros. Tendo em vista que a novela não é organizada de maneira linear, e é interrompida contantemente por flashbacks, o foco narrativo muda de um personagem para outro. Mesmo que um personagem desconheça a verdade dos fatos, tem sua própria versão moral sobre os mesmos. Neste sentido, apenas resta ao leitor a dedução das pistas deixadas pelo autor.

Impressiona também como é possível encontrar ainda hoje, numa novela de 1932, elementos de uma América ainda presente naquele tempo. Afinal, muitos dos elementos de identidade do americano não mudaram desde então: os constantes dogmas puritanos resgatados para afirmar a crença no protestantismo; a prática constante da desconfiança contra a alteridade como subterfúgio para a busca da própria identidade; a divisão de uma sociedade de classes em raças... Enfim todos fios de uma espécie de destino do qual um povo todo não pode escapar. Sina? Não sei. Mas é nesse ambiente em que os derrotados de todo o tipo deixam aflorar o fanatismo religioso numa pasma tentativa de fugir ao que o destino, de trágico, reservou, que se passa Luz de Agosto - e é sobre ele que se tenta reconstruir uma América pós-Era Bush.

A falta de ar é apenas uma metáfora para mostrar o quanto se precisa de fôlego e sentido para ler a Faulkner.
(continua...)


Nota. Na minha tradução portuguesa de Armando Ferreira de anos atrás está grafado Luz de Agosto