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A vida é Sonho


A vida é Sonho… e pode ser. Mas, aqui trata-se de um clássico da Era de Ouro do Teatro Espanhol de Calderón de la Barca. O chamado teatro espanhol da Idade de Ouro refere-se à produção teatral na Espanha num período que se compreende aproximadamente entre 1590 e 1681, quando a Espanha emerge como uma potência europeia com a consequência da União Ibérica, depois de ter sido unificada pelo casamento de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela em 1469. Obviamente, Idade de Ouro contou com uma forcinha a mais do nobre metal vindo das colônias americanas e das crises que se seguiram à sucessão portuguesa, iniciada em 1578 até aos primeiros monarcas da Dinastia de Bragança. Vamos combinar que D. Sebastião escolheu uma péssima hora para morrer na Batalha de Alcácer-Quibir sem deixar herdeiros, cabendo ao celibatário Cardeal Dom Henrique, já de idade avançada e mais pra lá que pra cá, elaborar os trâmites não sem inúmeros conflitos internos, para entregar a bagaceira para a corte espanhola, na figura de D. Filipe II – Filipe segundo na Espanha, e primeiro em Portugal, ou vice-versa, isso é que menos importa. Ou seja, Espanha tinha ouro vindo da América, um reino português herdado de lambuja e uma economia de meio circulante abundante que permitia o homem comum frequentar o teatro. 

A peça, encenada pela primeira vez em 1635, e portanto na meiuca desses acontecimentos históricos para lá de insólitos, influenciou inúmeras obras ficcionais nos séculos seguintes. A Bela e a Fera de Mme. Gabrielle Barbot, esculhambada pela Disney, talvez seria o grande exemplo disso.

Na obra, a vida seria uma peregrinação, um sonho, dentro de um mundo teatral de aparências, onde cada qual representa seu papel. E não há como negar uma fé em Deus, subjacente,própria do Barroco, em que o sentido de angústia de seus personagens, principalmente o pai e o filho, aproximam os personagens de do homem existencialista de meados do século XX. A plasticidade dos personagens de La Barca relaciona-se com o fato de transbordarem à ação estritamente necessária, para um acentuado individualismo da Era de Ouro do Teatro espanhol. Essa plasticidade torna os personagens palatáveis de forma quase assustadora.

Nesse universo, o enredo da obra é meio explicado pela astrologia e pelos presságios: todo o processo ainda é prefigurado por Deus ou pele medo irracional do futuro - como no caso do presságio que afeta Segismundo, o personagem principal, dramatizando questões transcendentes como o embate entre o conceito de liberdade e a consciência da necessidade, que define a própria liberdade, e o poder da Vontade frente ao Destino. Nesse sentido, a peça é uma espécie de precursora do teatro surrealista do Século XX. O autor criou inovações tão radicais que apenas seriam usadas em sua essência de metaficção no século passado com camaradas como Ionesco e seu Rinoceronte, Beckett com seu oculto, premonitórioe cômico Godot, a até os Rosencrantz and Guildenstern de Tom Stoppard, que apesar da inspiração Shakespeariana tem muito do Clotaldo de La Barca … Se contar o clássico de Stevenson, adaptado no Cinema com o Dr. Jeckyll and Mr. Hide.

A história se passa na corte da Polônia onde uma rainha sonha que seu filho, chamado Segismundo, será um monstro de personalidade e logo após morre no parto. O Rei Basílio, consorte, e pai da criança, temendo o presságio, decide aprisionar a criança numa torre, isolando-a de qualquer contato com o mundo exterior. Porém o Rei é fraco e vacilante. Teme pelo que possa passar a seu povo, sectos e suseranos. No fundo o rei tem o famoso cagaço do rompimento dos tais laços sinalagmáticos, aos quais o historiador Hilário Franco Junior definiu como o pacto de solidariedade dotado de lealdade política entre indivíduos e a nobreza na Idade Média. Rompido os pactos, e sem herdeiro, o reino corria o risco de ir para as cucúias. Basílio é um Soberano sábio, envelhecido, dotado de conhecimentos matemático e astronômicos, sem aptidão nenhum para o Poder, mas não era tolo.

Com a idade avançada, reconhecendo suas limitações, e talvez movido por um sentimento de arrependimento, ou apenas perversa curiosidade - naquele negócio de deixa rolar pra ver no que vai dar - , decide testar o filho e libertá-lo, sendo que o rapaz nada sabe sobre o presságio.

Então, o rei, com a ajuda de Clotaldo, seu fiel lacaio, que é o único que tem acesso a cela de Segismundo, droga-o fazendo com que durma profundamente. Quando o rapaz acorda, ele é tratado como o verdadeiro príncipe herdeiro na corte. Entretanto, ele é uma espécie de homem-fera, uma espécie de selvagem indomesticado, afetado pelo anos de reclusão e falta de sociabilidade. Tem uma alma oprimida e ao mesmo tempo violenta, esmagada pelo isolamento. Cercado das atenções que nunca as teve, que edulcoravam a auto-confiança e o excessivo orgulho, e com essa alma indomada e exageradamente cercada de condescendêcia...já viu né... a Hybris do camarada incha. O cara torna-se arrogante e destemido, senhor de suas próprias atitudes, chegando ao extremo de matar um servo, simplesmente pelo fato deste o contrariar, jogando-o pela janela do castelo. E isso só por que o servo lhe sugeria prudência nas suas atitudes – como costumeiramente se faz, hoje em dia, nas redes sociais, quando um discurso de oposição se articula: defenestra-se.

Resumindo, quando acorda na corte, é tratado como príncipe herdeiro para logo depois ser novamente drogado por Clotaldo e reacordar em sua prisão na torre. Quando retorna à torre pensa que tudo se tratou de um sonho e perde a capacidade de distinguir quando está sonhando de quando está vivendo.

No fundo, mesmo para o homem moderno, esse do nosso início de obscuro século XXI, afundado no atomismo da medias sociais, no individualismo da terciarização de si, submergido nos vários níveis de informalidade, letárgico e arruinado em sua saúde mental frente à corrosiva máquina neoliberal… mesmo que tenha perdido todos os ideais iluministas de uma sociedade mais igualitária, e cedido completamente ao inócuo discurso do Agency americano, ainda assim o expectador pode participar intensamente das angústias do personagem Segismundo quando confrontado com a possibilidade perturbadora de que sua vida até então poderia ter sido apenas um sonho fugaz na verdade que a obra de Calderón nos comunica. Nessa dualidade entre livre arbítrio e destino, que é o cerne do dilema de Segismundo, fazendo o personagem se questionar se suas ações são predestinadas ou se tem o poder de moldar seu próprio destino de personagem, Calderón cria um Èdipo incompleto. Explico: o sujeito de Caldero, com um fardo a ser carregado, o qual envolve não somente a si próprio, mas a seus familiares e todo um reino, não concretiza a tragédia, pois o destino não se cumpre. No fim, o presságio se dissolve.

Aí entram vários fatores… o panorama muitas vezes contraditório e edulcorado do Barroco, a necessidade teológica de dar um fim moralmente cristão à obra, e por aí vai…

Mas paremos de divagações e vamos aos fatos.

Segue o monólogo de Segismundo no auge da confusão mental sobre as incertezas que tratam da vida …

É verdade; então reprimamos

esta feroz condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que ao sonharmos,

o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim me mostra

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.



Sonha o rei que é rei, e vive

com esse engano mandando,

resolvendo e governando.



E os aplausos que recebe,

vazios, no vento escreve;

e em cinzas se lhe converte sua morte 

que é a talha de um corte.



E há quem tente reinar

vendo que há de despertar

no sonho da morte?



Sonha o rico sua riqueza

que mais cuidados lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende,

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.



Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.



Sei que a vida é um frenesi.

Sei que a vida é uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é a tristeza,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

PERSONAGENS

Basílio, rei da Polônia.
Segismundo, seu filho.
Astolfo, duque de Moscou.
Clotaldo, velho.
Clarim, bufão, criado de Rosaura
Estrela, infanta.
Rosaura, dama.

Guardas da torre.
Soldados de Astolfo.
Damas de Estrela.
Séqüito do rei Basílio.
Criados da corte.
Soldados revoltosos.







DYONELIO MACHADO

 



Título: Dyonélio Machado

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Junho de 2021

 

Dyonélio Tubino Machado nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Quirai, fronteira com o Uruguai, a 21 de Agosto de 1895. Filho de Sylvio Rodrigues Machado e da costureira Elvira Tubino Machado. Ainda criança, teve a vida marcada por uma tragédia. O pai, que era despachante aduaneiro na fronteira, foi assassinado quando ele era ainda um menino. Orfão de pai aos sete anos, o menino tinha uma família, agora, arruinada, constituída apenas pela mãe e pelo irmão mais novo Severino. 

Dyonélio nasce durante os anos da instauração da República, entre 1893 e 1895, travou-se cruenta luta entre as facções oligárquicas pelo comando do Estado, à qual se deu o nome de Revolução Federalista. Os republicanos – chimangos – estavam agrupados no Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e os liberais –maragatos -, no Partido Federalista.

Anos mais tarde, Dyonélio explicaria o contexto da morte do pai. Em cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995, Dyonélio disse: “Quaraí, é uma cidade de fronteira, com um movimento grande de importação e exportação. Toda a produção de lá tinha vazão pro Uruguai, pois para transportar charque pro Nordeste, passava-se dentro do Uruguai, o que dava margem a mil e uma safadezas.”

Aos oito anos, ele já vendia bilhetes de loteria para ajudar no sustento da casa. E menos de um ano depois do assassinato do pai, outro fato marcante ocorre. Um dia, na rua, encontrou o assassino do pai. O homem queria comprar um bilhete. Esse encontro é narrado pelo próprio escritor: “Não queiram passar pelo momento que passei: negociar com quem me fizera órfão era renegar uma adoração que nada abalaria. Mas trocar por dinheiro os poucos bilhetes de loteria que eu carregava, era obter meio quilo de carne. Cedi. Nossa transação se fez sem palavras. Sabia também o que me esperava em casa: era minha mãe chorando”.

A falta de recursos econômicos, não o impediu de estudar. Matriculou-se e ao irmão menor na recém-aberta Escola de Aurélio Porto. Para pagar a escola para os dois, Dyonélio dava aulas para os meninos das classes mais atrasadas. Com 12 anos, independente e solitário, começou a trabalhar como servente no semanário O Quaraí, o que lhe permitiu conhecer os intelectuais locais. Foi também balconista na livraria de um parente, João Antônio Dias. Não se sabe exatamente quando se tornou Comunista, mas por volta de 1911, aos 15 anos, funda em Quaraí o jornal O Martelo, nome sugestivo e que já demonstrava o seu interesse pelo marxismo.

Aos vinte anos já colaborava com os jornais Gazeta do Alegrete, Correio do Povo, Diário de Notícias e o Diário Carioca, vindo a se casar em 1921, aos 26 anos, com a professora de piano Adalgisa Martins. Três anos mais tarde entra para a Faculdade de Medicina, e ainda durante os estudos publicaria seu primeiro livro, Um Pobre Homem. No início dos anos 1930, o já formado, o Dr. Dyonélio continua com seus hábitos antigos dos chás e chimarrão.

Não gostava de médicos nem de remédios. Quando adoecia só tomava Melhoral, um analgésico e antipirético. E talvez por isso especializa-se em Psiquiatria, rumando para o Rio de Janeiro. Nesse momento iniciava-se um período político e econômico conturbado, na capital e no Brasil. Getúlio Vargas se torna o presidente e permaneceria no poder nos próximos 15 anos.

Durante o período de estudos acadêmicos, escreve em 1933, Uma definição biológica do crime, Um ensaio, parte da tese de doutoramento do autor que foi a precursora da bibliografia freudiana no Rio Grande do Sul. Nesse mesmo período, ainda encontrou tempo para traduzir a obra Elementos da psicanálise, do psicanalista italiano Edoardo Weiss.

No ano seguinte, de volta a sua terra, envolveu-se na greve dos gráficos da Livraria do Globo, por isso, foi preso pela primeira vez, ainda que por pouco tempo, num quartel militar, na Praia de Belas. Como homem de esquerda, tornou-se membro dedicado do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Após ser solto, ainda vai para o interior ajudar um familiar doente.

A segunda prisão ocorreu no dia 2 de outubro de 1935. Era uma quarta-feira. Nesse dia, Dyonélio Machado foi detido e levado para a carceragem do quartel do Terceiro Batalhão da Brigada Militar, devido sua participação na paralização dos gráficos do Rio Grande do Sul. Acusado de incitar os trabalhadores, Dyonélio foi enquadrado no artigo 19 da recém criada Lei de Segurança Nacional, instituída durante o governo de Getúlio Vargas. Aliás, ele foi um dos primeiros intelectuais a sofrer nas garras da “Monstruosa” como era chamada a lei que também encarceraria, um ano mais tarde, o alagoano Graciliano Ramos, por anos. Curiosamente, no mesmo dia da prisão, recebe a visita do jovem repórter, Rubem Braga, que registraria dias depois no jornal A Manhã, o recebimento do Prêmio Machado de Assis, em reconhecimento a Os Ratos. O escritor ficaria seis meses nessa prisão até ser transferido para o Rio de Janeiro, amargando um total de 2 anos de reclusão.

Segundo o próprio Dyonélio, a estória de Os Ratos o acompanhava há mais de 9 anos, estava toda em sua cabeça. Nessa época trabalhava em três hospitais. Chegava em casa do trabalho de médico, sentava-se à mesa e punha-se a escrever à mão em folhas de papel. Dormia muito pouco naquelas noites. Mas segundo ele, foram vinte noites mal dormidas. Escreveu Os Ratos em 20 noites. Pela manhã cedo, deixava o que escrevera à noite para que sua mulher fizesse a primeira revisão dos manuscritos. E no mesmo dia a esposa os entregava a uma funcionária empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo, para o trabalho de datilografia.

O livro, baseado num pesadelo que sua mãe havia lhe contado há anos,  tem um enredo bastante simples, linguagem seca e direta, que muito lembra a de seu companheiro de prisão Graciliano Ramos. Até os anos 1960, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava na base de um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados.

O personagem principal dessa obra é Naziazeno, um funcionário público, que dispões de apenas um dia para pagar uma conta com o leiteiro. Desesperado, chega no trabalho e pensa em pedir um empréstimo com o chefe da repartição. Sem sucesso, recorre ao amigo Duque. Ambos não foram trabalhar naquele dia. A doença do filho o desespera. Precisa conseguir dinheiro para o leite e o tratamento. Angustiado, Naziazeno consegue algum dinheiro emprestado para apostar num cassino. Entre as indecisões de apostar num número ou noutro, acaba ganha quinze mil-réis.  Guarda dez no bolso. Pega cinco, e compra mais fichas, na esperança de multiplicar seus ganhos. Porém, ele perde tudo.

No fim do dia, encontra os amigos Alcides e Duque, e os três procuram casas de agiotas, sem sucesso. Duque convence Alcides, que possui um anel penhorado com um agiota, a reavê-lo e renovar a penhora com outro agiota. Porém, para recuperar o anel, o trio é levado a fazer um outro empréstimo com outro agiota, Mondina.

Com o anel em mãos, Naziazeno e Alcides são instruídos por Duque a procurar Dupasquier, um comerciante de ouro. O dia está quase no fim, o tempo passa, e o leitor não consegue se livrar do efeito psicológico que a angustia do protagonista causa. O conselho de Duque não funciona.  Dupasquier trabalha apenas com venda, não com penhora. Quando finalmente os três conseguem negociar o penhor do objeto, e conseguem o dinheiro, Naziazeno chega em casa, exausto.  

Naziazeno, muito abalado, pensa e repensa o dia que passara, a angústia se torna uma espécie de paranóia e logo passa a ter umas alucinações entranhas com uma ratada. Ouve ruídos vindos da cozinha, entre pratos e panelas. A legião crescente de ratos invadem a casa e roem o dinheiro que obtivera, reduzindo-o a migalhas. E de repente tudo fica em silêncio.

Naziazeno se dá conta que está sentado na cama ao lado de sua mulher, Adelaide. Ele fica assim por horas a fio, até o amanhecer. Naziazeno só dorme após perceber o leite sendo deixado à porta de sua casa.

Em junho de 1937, obteve sua libertação, beneficiado que foi – como tantos outros – pela “Macedada”, nome do então ministro da Justiça Macedo Soares. De volta ao sul, foi a Quaraí (RS) se reunir com a família. Na cidade, passa a ter dificuldades de aceitação por parte da comunidade, em virtude de suas ligações PCB. Antes de se tornar comunista, Dyonélio tivera ligações poliíticas com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Ele fora muito amigo do governador Borges de Medeiros, de Protásio Alves e de toda a direção do PRR, além de ser parente do senador Francisco Flores da Cunha. Nessa fase, pós-prisão, a família sobrevivia às custas das aulas de piano ministradas por dona Adalgiza, esposa do escritor.

Após a celebrada recepção de Os Ratos, publica O Louco do Cati, em 1942, que foi mal aceito pelas editoras e critica.  Com o fim da Era Vargas, elege-se deputado estadual nas eleições de 1947, pelo PCB (ainda legalizado). Tornou-se líder desta bancada, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Mas com o decreto da ilegalidade do Partido, a bancada é cassada e Dyonélio volta a clinicar e militar no jornalismo político.  

Seu reconhecimento somente viria no final dos anos 1970, quando o escritor já tinha 88 anos. Nesse interregno publicou Eletroencefalograma (1944) e tardaria vinte anos para voltar a publicar Deuses Econômicos (1966), Endiabrados (1980), O Sol Subterrâneo (1981), e Ele vem do Fundão (1982).

O “Lobo Solitário” da literatura gaúcha, como o chamou Érico Veríssimo, deixou uma obra composta de 12 romances, um livro de contos, um volume de memórias e vários ensaios. Com uma vida cheia de traumas, prisões, independência e solidão,  faleceu no dia 19 de junho de 1985, no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, em decorrência das complicações de uma cirurgia no fêmur.

LIMA BARRETO

 





Título: Lima Barreto

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

Filho da professora Amália Augusta Barreto e do tipógrafo da Imprensa Nacional João Henriques de Lima Barreto, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Nasceu numa sexta-feira 13. Mês de maio de 1881. A propósito, o mesmo ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, 7 anos antes da Lei Aurea. O bairro: Laranjeiras. A casa, na rua Ipiranga nº 18, não existe mais.

Aprendeu a ler em casa com a mãe, que mantinha um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa, no mesmo bairro das Laranjeiras. O menino Lima, assim como Machado de Assis, ficou orfão cedo. Com a morte da mãe, aos 7 anos, entrou numa escola pública, na rua do Rezende, passando pelo Liceu Popular Niteroiense - um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino da época, dirigido pelo educador inglês, Mr. William Cunditt. Os seus estudos eram, então, bancados pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho de batismo do escritor. Depois de prestar os exames de preparatórios no então Ginásio Nacional, nome que a República tentou colar no velho Colégio Pedro II, para se desfazer dos vultos do período Imperial, Lima Barreto ingressou na Escola Politécnica. O futuro parecia promissor. Dali, sairia engenheiro civil, de minas, industrial, mecânico ou agrônomo. Entretanto, estudou apenas até o terceiro ano. Não dava mais. Não havia maneira de fazê-lo aprovar numa disciplina de nome tão irônico quanto redundante, Mecânica Racional. Tinha sido reprovado diversas vezes - e isso, creiam-me, enche o saco de uma pessoa. 

Alguns outros fatores mais profundos faziam com que Lima Barreto não se concentrasse na Politécnica. O fato de ser o único aluno negro da turma, aliado ao baixo desempenho na Mecânica Racional, por dois anos seguidos, podem ter influenciado para o desânimo do rapaz. Mas, um episódio específico determinou um certo rumo que sua em sua vida iria tomar, a partir dali:  o pai enlouqueceu quando Lima Barreto tinha apenas 22 anos.

Assim, ele interrompeu os estudos, para encarregar-se da numerosa família, composta agora pelo pai e os irmãos mais novos. Para ganhar a vida, Lima Barreto trabalhou como professor particular e depois, com a abertura de vaga para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra, presta concurso e se classifica em segundo lugar, com uma diferença mínima de pontos para o primeiro colocado. Mesmo assim foi nomeado, começando a trabalhar no mesmo ano.

Nos primeiros anos como amanuense foi procedimentalmente humilde.  Não faltava, não chegada atrasado, e tratava a todos com deferência. As semelhanças biográficas do início de carreiras entre Machado e Lima, param por aqui. Sendo preterido mais de uma vez em promoções, foi ficando negligente e relapso. Nesse processo de transformação pessoal, virou um habitual nas rodas de café e de bares, frequentadas por Olavo Bilac e Emilio de Menezes. Foi provavelmente nestas rodas que descobriu os benefícios de uma boa Parati. 

O convívio dos cafés e botequins, que o romancista acabou frequentando dioturnamente, o tornaram conhecido, gerando contatos no meio jornalístico. Em 1905, Lima Barreto iniciou-se na vida literária com reportagens para o Correio da Manhã, preparando uma serie de textos sobre a derrubada do Morro do Castelo. Paralelamente, foi colaborando em jornais e revistas estudantis, como A Lanterna e A Quinzena Alegre, todos de curta duração. Mais tarde, em 1907, quando Mario Pederneiras fundou o Fon-Fon, chamou-o para a redação, mas ficou pouco tempo. Saiu para lançar com um grupo de amigos uma pequena revista, a Floreal, que apesar de quatro números apenas, mereceu do sempre meio mal-humorado José Verissimo, crítico exigente, uma surpreendentemente simpática acolhida. Inclusive, seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, começou a ser publicado na Floreal, em 1907, mas só veio aparecer em livro dois anos mais tarde, editado em Portugal. Seu biógrafo definitivo, Francisco de Assis Barbosa, chegou a entrevistar Antônio Noronha Santos, Manoel Ribeiro de Almeida, Mario Tibúrcio Gomes Carneiro, companheiros de Lima Barreto na Floreal, revelando-nos detalhes fundamentais de sua biografia.

Quando em 1909, finalmente, o romance foi editado em Portugal, Lima Barreto marcou sua presença no ambiente intelectual, para o bem e para o mal. O livro bancado com os seus limitados recursos próprios, seria venerado e odiado de maneira desproporcional. Por um lado, foi venerado pelos pares e por uma certa parcela da intelectualidade, mas o problema é que o ódio vinha de cima, principalmente da parte de Edmundo Bittencourt, o todo poderoso dono do jornal Correio da Manhã, que não gostou nada nada do tom de sátira que assemelhava o autoritário e fictício Ricardo Loberant, dono do jornal “O Globo”, com sua pessoa.   

O problema estaria resolvido se apenas as portas do Correio se fechassem. Caso acontecesse, poderia arrumar  emprego, por exemplo,  no jornal do desafeto do ex-chefe, certo?  Entretanto, Bittencourt pode ter intercedido para que outras portas se fechassem. E no fundo havia um outro problema. Lima foi além. Não se contentou apenas a atacar o ex-chefe. No rol de personagens caricatos, havia profissionais influentes e cheios de amigos, com amigos em outros jornais. Por exemplo, o escritor João do Rio era descrito como o  “efeminado” Raul Gusmão, uma “mistura de porco e símio, adiantado";  Pacheco Rabelo do jornal fictício, era Gil Vidal, redator-chefe do Correio da manhã; o advogado e futuro jurista Vicente Piragibe, filho de médico da academia imperial e neto de general do exército, era o Leoprace, de ascendência boa mas que não passava de um pobretão sem talento; o paranaense, da família de diplomatas e sacerdotes, Joâo Itiberê da Cunha era o personagem Floc, crítico literário que julgava originais nao pela qualidade, mas pelo sobrenome e ascendência do autor. Ou seja, mesmo que Ricardo Loberant, nem tivesse passado pelas páginas de Isaias Caminha, todos os outros ilustres desafetos influentes estavam ali retratados de forma caricata. Todos tratados como pessoas superficiais, toscas, antiéticas e interesseiras, desejosas de apenas obter benefícios próprios, aproveitando-se dos colegas.  E para piorar, eram facilmente identificáveis numa leitura rápida, à época.

O livro não trouxe nem sucesso, nem o mínimo suficiente para o sustento. Mas dois anos mais tarde publicou o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, nas páginas do Jornal do Commércio, mais uma vez, pagando do próprio bolso pelo espaço da publicação. A obra sairia publicada em livro apenas em 1915. O atraso pode ter sido causado por vários fatores, desde a falta de recursos econômicos, até as próprias bebedeiras que se tornavam cada vez mais constantes. Durante a gestão e revisão da obra, tornaram-se mais agudas as crises de alcoolismo e depressão do escritor.  Esmagado pela tragédia doméstica da infância, pelo peso dos cuidados com o pai enlouquecido, vivendo ao lado de seu quarto, oprimido pela angústia da responsabilidade no suporte financeiro da família, juntava-se a isso o peso do preconceito racial. A birita, a princípio, certamente foi um suporte na convivência alegre da boêmia, e ao mesmo tempo uma fuga dos problemas que o esperavam em casa. Entretanto, as alucinações decorrentes do excesso de álcool, que o levaram ao hospício, certamente não estavam nos planos.  

Independente da bebida, a saúde de Lima Barreto sempre foi frágil. Aos vinte e poucos anos tinha fraqueza generalizada em decorrência de um reumatismo de infância que iria acompanha-lo toda a vida.  Aos 29 anos contraíra pela segunda vez maleita, ou impaludismo, doença contraída por mosquitos, e que ataca os glóbulos vermelhos do sangue gerando febres terçãs fortíssimas. O abuso do álcool, certamente agravara esse quadro clínico de fraqueza. Como também agravaria a sua depressão e a crise de neurastenia, que o levou a ingressar pela primeira vez no Hospital Nacional de Alienados em 1914, local que tinha sido definido por ele como "frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais"

E veja bem, estamos no ano de 1914. Escravos tinham liberdade há menos de 26 anos. Mesmo para um escritor com relativa fama, a história pessoal parecia replicar o que as teorias raciais da época prognosticavam. A grosso modo, os defensores da intervenção clinica com reclusão nem sequer se esforçavam em frisar que não se escapava da origem racial, nem dos seus estigmas. As diversas teorias da degeneração social, afirmavam que indivíduos miscigenados carregavam o "vício" das duas raças que os formavam. Daí para se estabelecer uma relação direta entre raça, doença mental e alcoolismo, e que negros e mestiços estavam mais predispostos a ela, era plenamente consensual na teoria médica da época. Nesse sentido, considerar que indivíduos com essas características eram entendidos como intelectualmente inferiores, era uma conclusão nefasta que os eugenistas nem se esforçavam para justificá-la.

Nesse calvário de porres e não-ditos, o pingente Lima Barreto, aos trinta e um anos, já acumulava uma respeitável lista de problemas clínicos.  Com os sintomas da dependência alcoólica, passa a ter problemas cardíacos. Aos trinta e três anos, depressão e neurastenia. Aos trinta e cinco, anemia pronunciada. Aos trinta e sete, quebra a clavícula.  E nessa época tem o primeiro ataque da epilepsia -  que diga-se de passagem era tratada com choque e porrada. Considerado “inválido” para o serviço público, é aposentado, em dezembro de 1918. Em 1919, é internado pela segunda vez no Hospital Nacional de Alienados. A essa altura tinha cinco livros publicados:  Recordações do Escrivão Isaias Caminha, O Triste fim de Policarpo Quaresma, As aventuras do Dr. Bogoloff (publicado como folhetim), Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Sem dinheiro, sem conseguir lutar contra o vício, e fisicamente aparentando ter vinte anos mais, sua saúde se deteriorava rapidamente. Tido como louco e irascível por alguns, afastou-se de muitos, e muitos se afastaram dele.

Chovia no bairro de Todos os Santos, no dia de todos os santos. Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu supostamente de ataque cardíaco, no dia 1 de novembro de 1922, abraçado a uma revista. O velório na sala era interrompido pelo barulho da chuva e, de quando em quando, pelos gritos do pai, que, no quarto ao lado, morreria horas depois. Em volta do caixão de terceira, os irmãos e a gente modesta do subúrbio, que Lima conhecia dos botequins e das ruas enlameadas e tristes.

Ao contrário de Machado de Assis, teve um enterro muito simples acompanhado por gente humilde como ele, os amigos do subúrbio, mulambentos, cheirando a cachaça e com os pés descalços. Quis ser enterrado em Botafogo - que ele detestava e criticara a vida toda. Pouco mais de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, o piauiense Félix Pacheco, a essa altura já imortal da ABL, o diplomata Olegário e José Mariano - sendo que este pagou as despesas do enterro.

Morreu sem nenhuma repercussão nos jornais. Não deixou viúva. E ao contrário do que falam as más línguas sobre Machado de Assis, Lima Barreto nunca teve filhos. 

 


Os Riots não roem a roupa do rei


George Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.

 

- vinte merréis, um Jackson. pqp.  

 

O fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência policial, o preconceito, a hipocrisia…

 

Não sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos. Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados, humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo de cara…

 

- sim estou puto sim, foda-se.

 

Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.

 

Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto, e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de fantasmas e ausências  históricas faça com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o homem negro, já  que para o policial o mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico, o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime. Óbvio!

 

Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou, quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?

 

 - Óbvio é o cacete. Correto porra nenhuma!

 

Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça” ele se declarava pertencer. O menino João Pedro Mattos Pinto, morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é diferente!

 

- vdd!

 

Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil. Então, para que riots ao sul do Equador?  Ora bolas!

 

 - O problema é que o buraco é muito muito muito mais embaixo…

 

O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas - sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares, geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados, tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e tem de conviver com a ausência do Estado.

 

- Tudo separado… sei…

 

A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art. 3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de 5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística, por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai você vai vendo.

 

A eficácia desses números não se mede pela sua capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?  

 

Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo prazo, e não podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos dizem ser apenas de classe.

 

O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil, como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário do ato hipócrita.

 

O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

 

- Eu também gosto do Milton Santos…

 

Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por acaso estão mais negros e pardos que brancos,  e isso não deixa de conter uma certa ironia azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.

 

Nota: não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.

 

O Declínio Do Império Americano

Um dos personagens de Oscar Wilde – não lembro qual, agora – dizia que só fala mal da sociedade quem não consegue frequentá-la, e acho que esse poderia bem ser o adágio do filme de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano. 

O filme começa com uma entrevista à Rádio CBC da professora de História da Universidade de Montreal, Dominique St. Arnaud, em que conta a Diane sobre seu novo livro, Variações sobre a idéia de felicidade, que discute sua tese: a fixação da sociedade moderna na autoindulgência. 

Na próxima cena, quatro professores universitários conversam animadamente sobre assuntos diversos enquanto preparam um early dinner. Ao mesmo tempo, na academia de ginástica da Universidade, quatro mulheres, incluindo Diane e Dominique, colegas dos professores,  também conversam animadamente sobre os problemas de relacionamento entre homens e mulheres.

 


A partir da metade do filme, as mulheres chegam, e o grupo de amigos inicia um jantar animadíssimo. Todo o filme, extremamente dialógico, gira em torno desses oito professores universitários, Historiadores diga-se de passagem, que num agradável fim de tarde almoçam e conversam sobre seus relacionamentos, o amor, o sexo, as angústias e variações do que seria a tal da Felicidade. 

À medida que o jantar avança, os homens e as mulheres conversam principalmente sobre suas vidas sexuais, com os homens sendo abertos sobre seus adultérios, incluindo Rémy, que é casado com Louise e que já se relacionou com quase todas á mesa. A maioria das mulheres do círculo de amigos já fez sexo com Rémy, embora ele não seja atraente, mas elas escondem isso de Louise para poupar seus sentimentos, afinal todos são mais que amigos, todos pertencem ao mesmo departamento.  

Ainda no ginásio, quando as amigas conversavam, Louise revela que esteve em uma orgia com Rémy, mas acredita que ele geralmente é fiel. Claude é o único amigo homossexual no jantar. Ele também fala abertamente sobre sair com outros homens de maneira imprudente, mas com medo de doenças sexualmente transmissíveis, enquanto secretamente teme estar infectado por AIDS – problema  que ainda assolava a todos na década de 80. Dominique, por sua vez, fala sobre sua teoria que dá conta do declínio da sociedade, com Louise antagonizando-a e  expressando ceticismo. Para contra argumentar contra Louise, Dominique revela que fez sexo com Rémy e seu amigo Pierre, causando um colapso emocional e um mal estar geral no jantar.

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar.

Pela manhã, era como se a noite anterior não tivesse passado de um samba de Paulinho,  um grande pagode na casa do Vavá: “Vi muita nega bonita, fazer partideiro ficar esquecido, mas apesar do ciúme, nenhuma mulher ficou sem o marido”. E Louise se senta ao piano, toca, e todos se abraçam, e os relacionamentos voltaram ao normal, afinal e contas são todos amigos, e acima de tudo, lavou tá novo

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles a liberação sexual, valor moral da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar. No fundo Demy mostra que na prática, a teoria é outra. 

Pessoalmente acho sensacional como Denys Arcand se auto define. Um périmé catholique. Mais interessante, como ele retrata os valores americanos, já que americanos tem um grande preconceito contra os canadenses. Os canadenses não são servis como outros grupos imigrantes, e talvez por isso os americanos os consideram bárbaros caçadores de alces e ursos. Os canadenses por sua vez, não estão nem aí para os americanos. E isso é interessantíssimo quando visto aqui de dentro. Mas no filme Dominique, prevendo um colapso no "Império Americano", baseado na autocomplacência, na condescendência, na tolerância e indulgência consigo,  afirma ironicamente que Quebec, apesar de falar francês e se colocar olimpicamente na periferia, embarca de roldão nessa decadência dos costumes. 

Denys Arcand coloca em xeque os relacionamentos modernos, marcados por problemas amorosos e sexuais. Ele faz um estudo crítico dos anseios e frustrações de uma classe média intelectualizada e escrava dos divãs de analistas. Quatro professores universitários, três deles casados e um gay, preparam um jantar em uma casa de campo. Conversam sobre sexo. Enquanto isso, suas mulheres estão juntas em um clube e, da mesma forma, dividem seus segredos. Quando se encontram no jantar, estão prontos para o embate.

Outro filmaço que preciso rever é o Invasões Bárbaras, 2003, com os mesmo protagonistas, 17 anos depois.


O Balzaquiano Flaubert: 140 anos de pura malemolência


Ernest Pinard foi um ministro do Interior francês, facilmente olvidável, a não ser por alguns detalhes de sua biografia. Nivelados por baixo, Pinard e Sérgio Moro guardam alguma semelhança. Ambos tinham ambição maior que seus estômagos, e ambos tiveram carreiras meteóricas.


Pinard decidiu ingressar no judiciário e, em maio de 1849, sendo nomeado procurador adjunto em Tonnerre. Em dezembro de 1851, ele se tornou procurador adjunto em Troyes e, em dezembro de 1852, em Reims. Em outubro de 1853, foi nomeado procurador adjunto no Tribunal do Sena em Paris onde aí sim começou uma espécie de Lava Jato dos bons costumes franceses.

 

Apenas para contextualizar, Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, Sobrinho de Napoleão,  que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac – uma espécie de Haddad das bandas de lá. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas. E é justamente aqui que Marx escreve "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.


Com a faca e o queijo na mão, Pinard não pensou duas vezes.  Lascou de processar todo mundo. De repente quis moralizar tudo. Em 1857, foi a vez de Baudelaire, por causa dos poemas de Flores do Mal; depois,  Eugénie Sue por seu Os Mistérios do Povo,  e por fim, Gustave Flaubert por Madame Bovary. 



Contra Baudelaire, ainda conseguiu banir 7 poemas do conjunto do Flores do Mal, por temática, ora veja você, lésbica (!) e sadomasoquista (!). Diga-se de passagem, a proibição permaneceu até 1948!  


Já contra Flaubert, o distinto se deu mal. Flaubert não só foi absolvido, como o processo  rendeu uma excelente publicidade à sua preciosa história de adultério, decadência e miséria provinciana que enredava seu Madame Bovary.


Pinard bem podia ser um personagem secundário de Flaubert, em A Educação Sentimental  -  escrito poucos anos depois do processo levantado por ele em sua opération lava jatô pessoal.  Eu particularmente desconfio, se me permitem, dada a licença poética, que  Jacques Arnoux tem algo dos cornos cuspidos e escarrados Ernest Pinard. Mas se  nem Lukács, nem Bourdieu falaram nada dos cornos que menino Moreau colocou na testa de Sr. Arnoux, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 


O fato é que em Pinard passou para a história com justiça poética: como apenas uma anedota verborrágica e censória. E nos anos 1980, ainda que alguns intelectuais tentassem imputar em Flaubert vários delitos de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, abuso de menores e algumas  outras vigarices, Flaubert permaneceu um gênio da descrição, do mal e da minúcia. Para mim, A Educação Sentimental, mais até que Madame Bovary, é um clássico de formação para um jovem. Ele tem um força incontida, indomesticável, que busca o absurdo e a beleza em cada descrição dos meandros psicológicos dos personagens.


Este mês se celebra 140 anos de morte de Flaubert. Flaubert continua Flaubert, e o malandro Ernest Pinard, não passou de um burocrata da Segunda República francesa. Mas ainda assim, conseguiu cavar uma vaguinha como procurador geral francês em Douai,e terminar a vida com uma aposentadoria legal … Moro, muito mais perigoso que Pinard, ainda está aguardando o desfecho do nosso 18 Brumário, pra ver se ele também consegue beliscar alguma daquelas prebendas prometidas lá atrás, durante o golpe do impeachment, na negociação com MPF da República das Araucárias, jogada no ventilador pelo The Intercept,  no episódio da prisão de Lula nas vésperas da eleição, impedindo sua candidatura… enfim, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 

Dicas de otimismo em tempos de Pandemia



Tem bem uns cinco anos que estou vivendo aqui, na California, e nesse tempo  aprendo e percebo coisas curiosas sobre o otimismo. Esse lugar aqui tem Santa Barbara, Surfistas, tecnologia, freeways rápidas, Santa Mônica, mulheres peitudas, Hollywood, praias lindas, carros intocáveis, artistas pra caramba, mão de obra barata, poucos casos de Corona, enfim... um lugar que tem tudo para dar certo.  Parece que aqui nunca ninguém se separou, nunca faliu, nunca foi racista, nunca perdeu um ente, nunca foi imigrante, nunca viu um amor acabar, nunca pegou num livro na vida, parece que não tem pobre, nem triste, nem cholo, nem doente, nem velho, nem pessimista.  Tenho a vaga impressão de que aqui não existem pessimistas. Ou se existem, dissimulam sua tristeza com um sorriso embrulhado naquele papel fininho do entusiástico e confiante  "good morning". Preciso deixar claro que sou um pessimista no meio de toda essa gente, e preciso deixar mais claro ainda que isso não me incomoda nem um pouco.

Antes de mais nada, no caso de opinião contraria à minha, é importante que você tenha em mente que a despeito do otimismo reinante, que por mais que você queira  se assumir com um ar de forçada felicidade e jovialidade - farsas, alías, facilmente detectáveis - todos , na minha opinião, são intimamente pessimistas. Inclusive voce, seu/sua idiota, com um sorriso no rosto. Sustento meu argumento com a prática dos retóricos em revogar meu próprio argumento: vivemos, sim, num mundo de pessimistas, por que só é otimista quem acredita no otimismo. E eu tenho um faro danado para identificar idiotas crentes, basta dar três olhadas rápidas no fundo de seus olhos.

Acaso, tenho certeza, que como eu, já provaste, mesmo que por instantes, naquele dia em que acordas com o pé esquerdo, suspender toda essa tola cordialidade que rege tuas relações cotidianas com os demais. Ao invés dela, optas por um modo grave e honesto de mau humor no viver. Nem bom dia dás! Eu mesmo, já o fiz várias vezes, e uma vez, por exemplo, quando  levei Lucíola, minha vira-lata, para desonerar seus intestinos nas redondezas da casa, pela manhã, uma vizinha desejou-me 'bom-dia' com aquela pretensa expressão jovial que imediatamente discerni ser a máscara por trás daquela vida suburbana, amarela, vanilla,  meio merda que ela leva, temporária de seus verdadeiros e angustiantes anelos. Ao invés de retribuir-lhe o mesmo 'bom dia' fiz questão de olhar fixamente nos olhos, como se comunicasse a ela que estava a par de seu segredo. Desde então, essa senhora nunca mais tratou-me com os mesmos ares cordiais, mas ao contrário, tem feito o possível para me evitar  e se me encontra num mesmo ambiente, sempre desvia o olhar.

Esse meu experimento sociológico é vocacional. Funciona. Me faz bem. É terapêutico. Fez-me perceber que todos tendem ao mesmo comportamento de medo e defesa, assim que percebo essa última e delirante forma de esperança, fecho a cara e corto logo o mal pela raiz, pois é comum ao gênero humano o não suportar a realidade. Mas nós, os pessimistas, enfrentamos sérios problemas, também.

Certo dia, encontrei-me utilizando meus métodos com um senhor que me parecia bastante distinto, o qual ao perguntar-me 'qual era o meu problema', deu-me o vislumbre de finalmente ter encontrado alguém cuja visão de mundo compartilhasse da mesma amplitude que a minha, e ao redarguir-lhe com a proposta de que 'dissesse o seu problemas antes', esse distinto senhor quis dar-me um soco bem o meio da cara, tamanho era seu desespero interior. Inapto, pelo provável glaucoma, pela limitação da idade, pelo insucesso do seu jab, e desconhecendo minha admiração por Beethoven e Muhamad Ali, frustrado, apenas desferiu-me palavras de baixo calão: Fuck you! O you, no caso, era direcionado a mim.

Em outras ocasiões, ocorreram situações similares. Uma garotinha, aparentemente feliz com seu pirulito de dez cores, enorme, maior que sua cara, brincando com suas boneca nova, num parque, correu aos prantos na direção de sua mãe, tecnicamente considerada uma milf, quando eu lhe disse que açúcar causa diabetes, e que consequentemente a glicose inchará suas pernas e  limitará  sua visão corroborando para outras comorbidades. Por essas e por outras , passei a ser persona non grata aqui na minha quebrada. Vizinhos atravessarem a rua, quando assoma minha figura dobrando a esquina.

O modo como os otimistas estão por toda a parte, sem encontrar uma única exceção entre eles , é algo deveras assombroso, e sendo eu talvez uma das poucas pessoas no mundo a saber com exatidão de tal fato, eu jamais consigo resistir à tentação em desvelar-lhes o segredo de que não há a mínima certeza em nenhum futuro.

E além do mais, ser pessimista é bem melhor, por que a gente sempre fica feliz: quando acerta e até quando erra.

Música do dia . Ludwig van Beethoven '  Grosse Fuge, Op. 133

Elogio da morte





A Morte do Rubem Fonseca, me fez lembrar de Lima Barreto. Não sei bem por que, não me perguntem, tampouco estou com paciência para análises das associações livres de minhas idéias e devaneios. Freud diz que, na prática da análise, na associação livre de idéias do paciente é impossível não dizer a verdade, inclusive quando nos equivocamos ou tentamos mentir deliberadamente. Isso é coisa que gente muita versada no austríaco, descolada e inteligente, chama de recalque do reprimido. 


Em outras palavras, algumas verdades podem ser ditas, assim meio sem querer, principalmente numa semana em que partem para o outro lado do espelho Garcia Roza, Rubem Fonseca, Moraes Moreira, e que Aldir Blanc anda balançando numa corda bamba. A propósito, para um cara raso como eu, o recalque psiquico, essa coisa de expulsar da consciência o que parece intoleravel,  pode bem estar é no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no risco da pemba, no giro da pomba, no som do atabaque… vai por mim, tá la.


Nota: Se eu pudesse ser um ASPONE[ Assessor de Porra nenhuma] de Deus, eu sugeriria ao Senhor que levasse logo esse tal de Olavo de Carvalho. Vai Oxalá… dá uma força ai… o cara é fumante, só fala merda, e é um cara do mal… vai por mim... o senhor sabe disso…


Mas voltando ao tema, não me parece crível, que nos Compêndios de Literatura Brasileira, coloquem na mesma cumbuca do chamado pré-modernismo Euclides da Cunha que cometeu aquele intragável capítulo A Terra no grandíssimo Os Sertões; Monteiro Lobato, uma espécie de matuto ilustrado com vocação para o lucro e sempre mais político, sempre mais empresário, que escritor;  Augusto dos Anjos, que só por Eu, já o tiraria desse grupo nefasto;  e por fim a tríade Graça Aranha, Raul de Leôni e Simões Lopes Neto  -  que sinceramente nunca li e nunca os lerei por algo que me parece preconceituoso em mim: eu achava que Canaã, seria um livro chato, antes de começar a folheá-lo. Depois tive a certeza de que meu preconceito passou a ser um conceito. Canaã é realmente um treco chato pra cacete! 


Portanto, me fazer tentar crer que Graça Aranha e Simões Lopes Neto possam estar ao lado de Lima Barreto… sinceramente… No cú pardal! Mas nem fodento!


A distância entre o intelectual e a realidade, na escrita do Lima Barreto, assim como na de Rubem Fonseca, está muito acima destes camaradas. Ela é dada por uma espécie de descrença metódica alimentada pelos indicadores da rua. A desconfiança da ação de um cara que transita pelas ruas, como um estranho, trespassado de dúvidas, constatando mazelas, sendo discriminado pelo mercado editorial, no caso de Lima e pela Academia, no caso de Rubem, mostram bem a que vieram os dois no panorama da literatura brasileira: são inclassificáveis pontos fora da curva. 


Dentre as muitas crônicas de Lima Barreto, uma das, talvez não a mais impactante mas muito gráfica, que li há uns 27 anos, seja a Elogio da Morte. Essa crônica é de setembro ou outubro de 1918 (não lembro), portanto 10 anos após a morte de Machado de Assis – e talvez por isso o fechamento dela tal como se dá. Neste mesmo ano, um Lima Barreto de 37 anos, alcoólatra, já com algumas internações, começa uma série de correspondências com o contemporâneo “novo rico”  Monteiro Lobato, que acabara de comprar a Revista do Brasil e que com tremendo faro empresarial se interessava pelo Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá. Lobato prometera que publicaria mais coisas de Lima. Mentiu safadamente. Lima, iludido, se entusiasmara com a ideia e passou a escrever-lhe com frequência. Fazendo inclusive resenhas de escritores iniciantes, promovendo a editora do H. G Wells de Taubaté. Com o tempo, após a primeira publicação, e uma premiação pela Academia Brasileira de Letras, na qual Lima foi barrado anos antes, Lobato passou a ignorar as cartas deste, que morreria 3 anos depois, alcoólatra, abandonado, esquecido, desvalorizado e claro, amargado pelas putarias da vida e do universo literário.



Elogio da morte



Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.

A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.

É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.

É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar..

São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.

Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.

A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.

Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.

Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.

Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.

Ao vencedor, as batatas!