A vida é Sonho


A vida é Sonho… e pode ser. Mas, aqui trata-se de um clássico da Era de Ouro do Teatro Espanhol de Calderón de la Barca. O chamado teatro espanhol da Idade de Ouro refere-se à produção teatral na Espanha num período que se compreende aproximadamente entre 1590 e 1681, quando a Espanha emerge como uma potência europeia com a consequência da União Ibérica, depois de ter sido unificada pelo casamento de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela em 1469. Obviamente, Idade de Ouro contou com uma forcinha a mais do nobre metal vindo das colônias americanas e das crises que se seguiram à sucessão portuguesa, iniciada em 1578 até aos primeiros monarcas da Dinastia de Bragança. Vamos combinar que D. Sebastião escolheu uma péssima hora para morrer na Batalha de Alcácer-Quibir sem deixar herdeiros, cabendo ao celibatário Cardeal Dom Henrique, já de idade avançada e mais pra lá que pra cá, elaborar os trâmites não sem inúmeros conflitos internos, para entregar a bagaceira para a corte espanhola, na figura de D. Filipe II – Filipe segundo na Espanha, e primeiro em Portugal, ou vice-versa, isso é que menos importa. Ou seja, Espanha tinha ouro vindo da América, um reino português herdado de lambuja e uma economia de meio circulante abundante que permitia o homem comum frequentar o teatro. 

A peça, encenada pela primeira vez em 1635, e portanto na meiuca desses acontecimentos históricos para lá de insólitos, influenciou inúmeras obras ficcionais nos séculos seguintes. A Bela e a Fera de Mme. Gabrielle Barbot, esculhambada pela Disney, talvez seria o grande exemplo disso.

Na obra, a vida seria uma peregrinação, um sonho, dentro de um mundo teatral de aparências, onde cada qual representa seu papel. E não há como negar uma fé em Deus, subjacente,própria do Barroco, em que o sentido de angústia de seus personagens, principalmente o pai e o filho, aproximam os personagens de do homem existencialista de meados do século XX. A plasticidade dos personagens de La Barca relaciona-se com o fato de transbordarem à ação estritamente necessária, para um acentuado individualismo da Era de Ouro do Teatro espanhol. Essa plasticidade torna os personagens palatáveis de forma quase assustadora.

Nesse universo, o enredo da obra é meio explicado pela astrologia e pelos presságios: todo o processo ainda é prefigurado por Deus ou pele medo irracional do futuro - como no caso do presságio que afeta Segismundo, o personagem principal, dramatizando questões transcendentes como o embate entre o conceito de liberdade e a consciência da necessidade, que define a própria liberdade, e o poder da Vontade frente ao Destino. Nesse sentido, a peça é uma espécie de precursora do teatro surrealista do Século XX. O autor criou inovações tão radicais que apenas seriam usadas em sua essência de metaficção no século passado com camaradas como Ionesco e seu Rinoceronte, Beckett com seu oculto, premonitórioe cômico Godot, a até os Rosencrantz and Guildenstern de Tom Stoppard, que apesar da inspiração Shakespeariana tem muito do Clotaldo de La Barca … Se contar o clássico de Stevenson, adaptado no Cinema com o Dr. Jeckyll and Mr. Hide.

A história se passa na corte da Polônia onde uma rainha sonha que seu filho, chamado Segismundo, será um monstro de personalidade e logo após morre no parto. O Rei Basílio, consorte, e pai da criança, temendo o presságio, decide aprisionar a criança numa torre, isolando-a de qualquer contato com o mundo exterior. Porém o Rei é fraco e vacilante. Teme pelo que possa passar a seu povo, sectos e suseranos. No fundo o rei tem o famoso cagaço do rompimento dos tais laços sinalagmáticos, aos quais o historiador Hilário Franco Junior definiu como o pacto de solidariedade dotado de lealdade política entre indivíduos e a nobreza na Idade Média. Rompido os pactos, e sem herdeiro, o reino corria o risco de ir para as cucúias. Basílio é um Soberano sábio, envelhecido, dotado de conhecimentos matemático e astronômicos, sem aptidão nenhum para o Poder, mas não era tolo.

Com a idade avançada, reconhecendo suas limitações, e talvez movido por um sentimento de arrependimento, ou apenas perversa curiosidade - naquele negócio de deixa rolar pra ver no que vai dar - , decide testar o filho e libertá-lo, sendo que o rapaz nada sabe sobre o presságio.

Então, o rei, com a ajuda de Clotaldo, seu fiel lacaio, que é o único que tem acesso a cela de Segismundo, droga-o fazendo com que durma profundamente. Quando o rapaz acorda, ele é tratado como o verdadeiro príncipe herdeiro na corte. Entretanto, ele é uma espécie de homem-fera, uma espécie de selvagem indomesticado, afetado pelo anos de reclusão e falta de sociabilidade. Tem uma alma oprimida e ao mesmo tempo violenta, esmagada pelo isolamento. Cercado das atenções que nunca as teve, que edulcoravam a auto-confiança e o excessivo orgulho, e com essa alma indomada e exageradamente cercada de condescendêcia...já viu né... a Hybris do camarada incha. O cara torna-se arrogante e destemido, senhor de suas próprias atitudes, chegando ao extremo de matar um servo, simplesmente pelo fato deste o contrariar, jogando-o pela janela do castelo. E isso só por que o servo lhe sugeria prudência nas suas atitudes – como costumeiramente se faz, hoje em dia, nas redes sociais, quando um discurso de oposição se articula: defenestra-se.

Resumindo, quando acorda na corte, é tratado como príncipe herdeiro para logo depois ser novamente drogado por Clotaldo e reacordar em sua prisão na torre. Quando retorna à torre pensa que tudo se tratou de um sonho e perde a capacidade de distinguir quando está sonhando de quando está vivendo.

No fundo, mesmo para o homem moderno, esse do nosso início de obscuro século XXI, afundado no atomismo da medias sociais, no individualismo da terciarização de si, submergido nos vários níveis de informalidade, letárgico e arruinado em sua saúde mental frente à corrosiva máquina neoliberal… mesmo que tenha perdido todos os ideais iluministas de uma sociedade mais igualitária, e cedido completamente ao inócuo discurso do Agency americano, ainda assim o expectador pode participar intensamente das angústias do personagem Segismundo quando confrontado com a possibilidade perturbadora de que sua vida até então poderia ter sido apenas um sonho fugaz na verdade que a obra de Calderón nos comunica. Nessa dualidade entre livre arbítrio e destino, que é o cerne do dilema de Segismundo, fazendo o personagem se questionar se suas ações são predestinadas ou se tem o poder de moldar seu próprio destino de personagem, Calderón cria um Èdipo incompleto. Explico: o sujeito de Caldero, com um fardo a ser carregado, o qual envolve não somente a si próprio, mas a seus familiares e todo um reino, não concretiza a tragédia, pois o destino não se cumpre. No fim, o presságio se dissolve.

Aí entram vários fatores… o panorama muitas vezes contraditório e edulcorado do Barroco, a necessidade teológica de dar um fim moralmente cristão à obra, e por aí vai…

Mas paremos de divagações e vamos aos fatos.

Segue o monólogo de Segismundo no auge da confusão mental sobre as incertezas que tratam da vida …

É verdade; então reprimamos

esta feroz condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que ao sonharmos,

o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim me mostra

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.



Sonha o rei que é rei, e vive

com esse engano mandando,

resolvendo e governando.



E os aplausos que recebe,

vazios, no vento escreve;

e em cinzas se lhe converte sua morte 

que é a talha de um corte.



E há quem tente reinar

vendo que há de despertar

no sonho da morte?



Sonha o rico sua riqueza

que mais cuidados lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende,

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.



Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.



Sei que a vida é um frenesi.

Sei que a vida é uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é a tristeza,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

PERSONAGENS

Basílio, rei da Polônia.
Segismundo, seu filho.
Astolfo, duque de Moscou.
Clotaldo, velho.
Clarim, bufão, criado de Rosaura
Estrela, infanta.
Rosaura, dama.

Guardas da torre.
Soldados de Astolfo.
Damas de Estrela.
Séqüito do rei Basílio.
Criados da corte.
Soldados revoltosos.







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