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CAMILO PESSANHA

 



Título Camilo Pessanha
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Camilo de Almeida Pessanha, conhecido como Camilo Pessanha, nasceu em Coimbra, Portugal,
no dia 7 de setembro de 1867. Filho de Antônio de Almeida Pessanha, um estudante do terceiro ano de Direito, e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira, uma empregada de sua casa. Mesmo que a relação nunca tenha sido oficializada, o casal teve 5 filhos três homens e duas mulheres.

Camilo Pessanha viveu pouco tempo de sua infância em Coimbra, para onde retornaria apenas para terminar seus estudos secundários e ingressar na faculdade em 1884. O pai, recém formado, era transferido constantemente de postos. Inicialmente como juiz itinerante para os Açores, na Ilha de São Jorge, permanecendo ali por alguns anos, e depois para Lamego, região do Douro, onde Camilo Pessanha teve sua instrução primária, e em seguida estudou no Liceu Central de Mondego. Curiosamente, o pai só o veio a perfilhar para efeitos burocráticos de ingresso na Universidade de Coimbra.

Durante o período acadêmico, teve uma carreira satisfatória, mas teve que interromper os estudos por dois anos. Nos sete anos, entre o ingresso e a formatura, que passou na Universidade de Coimbra, experimentou a poesia e a vida boêmia, o que refletia em sua saúde. Neste período começou a colaborar com alguns jornais da época, publicando seus poemas em revista e jornais, entre eles, “A Gazeta”, “A Crítica”, de Coimbra e o “Novo Tempo”, de Mangualde. Nas férias, tentava se restabelecer, na casa da família, na Quinta de Marmelos, em Mirandela. Alguns de seus poemas foram publicados nas revistas “Ave Azul” e “Centauro”.  

Em 1891, concluiu o curso de Direito. No ano seguinte passa em quarto lugar, em concurso público de 50 vagas, e é nomeado Procurador Régio de Mirandela. Dois anos depois vai para Óbidos, onde advoga, ao lado de seu grande amigo Alberto Osório de Castro, até 1894. Data deste período a mítica que o segue: Devido a uma desilusão amorosa, justamente pela suposta paixão não correspondida por Ana de Castro Osório, irmã de seu melhor amigo, decide largar tudo e ir embora para Macau. Nas cartas trocadas entre Camilo e Ana, há uma sincera cumplicidade, mas não verdadeiramente algo que se possa chamar amor. Uma declaração comovente sobre sua vida, suas dificuldades e a doença da mãe, que sofria dos nervos. Decidido por partir, concorre, então, a uma vaga de professor de filosofia no recém criado Liceu de Macau. O concurso, aprovação e partida acontece em menos de seis meses.

Nunca voltou para Portugal, ao menos definitivamente. Mas retornava frequentemente para passar férias e outras vezes por motivos de sua frágil saúde. Nessas vindas e passagens por Portugal, por vezes a pretexto de tratar da saúde, sempre que podia as prolongava. Dividia suas estadas entre uma quinta da família perto de Braga, e em Lisboa, hospedava-se no Hotel Francfort, no Rocío, onde era frequentador assíduo da boemia do café Martinho e da cervejaria Trindade.

Na primeira vez que volta a Portugal, dois anos após a partida fica na quinta da família, mas consultas médicas o levam a Lisboa. Uma oportunidade excelente para conviver com a intelectualidade lisboeta. Numa destas estadas, acabou conhecendo Fernando Pessoa -  que aprendera e memorizara suas poesias. Retornado a Macau, depois de sua segunda estada em Portugal, é nomeado como Conservador do Registro Predial, cargo que exerceria paralelamente às aulas do Liceu.

Supostamente, nessa vinda de 1896, deixara um filho em Macau recém-nascido de data incerta, cuja a mãe era supostamente uma concubina – a quem ele tinha comprado de um comerciante chinês. Nesse intervalo de 3 anos, visita novamente Portugal. E somente iria perfilhar o filho João Manuel de Almeida Pessanha  em 24 de Agosto de 1900. Consta em cartório que teve como testemunhas  dois colegas do Liceu, João Pereira Vasco e Mateus António de Lima. Ou seja, Camilo, que somente foi reconhecido como filho tardiamente, fez o mesmo com o filho, sendo que supeita-se ainda que o pai de Camilo também era um filho bastardo.

Não se sabe ao certo quando se tornou maçom, nem em que período da vida em Macau viciou-se na neurose do ópio. No trabalho, diziam que era um tanto desleixado em seu dia a dia, mas mesmo assim foi nomeado Juiz de Direito Substituto em 1904. No ano seguinte, adoece gravemente, e volta a Portugal em estado bastante grave, apenas regressando a Macau em 1909. Neste meio tempo, instala-se na quinta de um primo, nos arredores de Mirandelo, para recuperar sua saúde frágil, já a essa altura bastante tomada pelos efeitos do ópio e suas abstinências. Sabe-se ao certo que foi por conta de João de Castro Osório e da própria Ana de Castro que seus poemas tomaram materialidade, já que declamava-os de memória sem ter manuscritos. Na empreitada, ambos conseguiram transcrever 30 poemas, que em 1920, graças a seu primo João de Castro Osório, que preparou os manuscritos, e Ana de Castro Osório  - a mesma que tinha recusado seu pedido de casamento -   que cuidou da edição final dos papéis, nasce “Clepsidra”, o livro de poesia que o imortalizou.

Na terra a que um dia chamou de “o chão antipático do exílio”, aprendeu a falar cantonense, traduziu poemas da dinastia Ming e foi um colecionador de arte oriental.Tinha muitos serviçais e concubinas, e não se furtava, muitas vezes de deixar-se fotografar como um mandarim magro, vesgo e viciado em ópio. Quando a mãe de seu filho João Manuel de Almeida Pessanha morreu, deixara dois filhos. João e uma menina, a quem chamaria anos mais tarde “Àguia de Prata”  -  e que tomaria em todos os sentidos o lugar da mãe na vida do poeta.

Figura proeminente na vida pública, Pessanha era chamado constantemente para proferir conferências em cerimônias oficiais do Estado Português, onde  os altos estamentos da burocracia colonial, de certo modo, faziam vista grossa para suas concubinas, e o vício do ópio. Mas isso era longe, do outro lado do mundo. Em suas estadas em Portugal, sem o ópio, bebia radicalmente, e com isso aumentava a imagem de poeta maldito de alma inquieta, viajando de forma intensiva para a colônia do Oriente.

Quando morreu, deixou a maior parte de seus bens para companheira e enteada, Kuoc Ngan Yeng, conhecida como “Águia de Prata”, em detrimento do filho -  nesse caso, seu irmão - João Manuel Pessanha.

No Cemitério de São Miguel Arcanjo, em Macau, encontra-se uma singela campa, onde repousam os restos mortais de Camilo de Almeida Pessanha, falecido em 1 de Março de 1926. Ao lado de Augusto Gil, Raul Brandão e Antônio Nobre, outros autores que também se destacaram no Simbolismo português, Camilo Pessanha virou nome de rua e seu rosto magérrimo de olhos cruzados, foi bastante amenizado na sua figura estampada nas notas de 100 patacas macauenses, por muitos anos.


HERBERTO HELDER


Título Herberto Helder 
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira. Este é, ao certo, o nome próprio que consta em sua certidão de nascimento. Nasceu no Funchal, em 23 de novembro de 1930, e era o filho caçula da família, composta por mais duas irmãs mais velhas. A mãe morre quando o menino tinha 7 anos. O fato abalou as estruturas da família, e com certeza, a sua relação com o mundo – quem duvidar disso, pode ler A Colher na Boca, que o poeta iria publicar com 31 anos. A partir dos 18 anos, a vida de Herberto Helder se torna literalmente a vida de um judeu errante e misterioso.

Conclui o curso no liceu de Lisboa, para onde foi aos 16 anos. Em 1948 entrou na Faculdade de Direito em Coimbra, mas logo no ano seguinte mudou de curso, transferindo-se para a Faculdade de Letras. Nesta, passou três anos, e sabe-se que frequentou as aulas de filologia românica, mas igualmente não concluiu o curso.

De regresso a Lisboa, teve o seu primeiro emprego, na Caixa Geral de Depósitos, um emprego que abandonaria logo, como inúmeros no decorrer da vida. A partir desse momento, passa a ter diversos trabalhos. Foi agenciador de publicidade, meteorologista na Ilha da Madeira - para onde tinha regressado em 1954 -, representante de laboratório farmacêutico, redator de publicidade, editor.

Como o pai tinha negado um empréstimo para ir ao Brasil - a exemplo das irmãs que já lá estavam -, Herberto Helder resolveu tentar a sorte percorrendo a Europa. Entre 1958 e 1960, perambulou por França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, trabalhando, aí sim, nas mais inusitadas funções. Já tinha uma relação com Maria Ludovina Dourado Pimentel, e precisava de dinheiro para o nascimento da primeira filha que estava a caminho. Neste período, trabalhou como descascador de batatas na Bélgica, agenciador de marinheiros em bairros de prostitutas na Antuérpia, estivador, empacotador de aparas de papelão, tudo o que se pode imaginar, não necessariamente nesta mesma ordem. E reza a lenda que chegou a passar fome, já que quando retornou, repatriado, teve de fazer um tratamento para avitaminose.  

Antes de partir, às pressas, deixara os manuscritos de O Amor em Visita com Luiz Pacheco, que à época era apenas um brilhante iconoclasta poeta surrealista. Herberto ainda deixou alguns poemas publicados nas revistas Cadernos do Meio-Dia, KWY e Folhas de Poesia, antes de partir para sua primeira parada, França. Ficavam para trás a mulher grávida e as tertúlias do Café Gelo, onde se encontrava frequentemente como António José Forte, Hélder Macedo, João Vieira, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco.

Forçado a regressar a Portugal, arrumou talvez aquele que fosse o primeiro trabalho estável em décadas. Como bibliotecário da Fundação Gulbenkian, percorreu vilas e aldeias da Beira Alta, Ribatejo e Baixo Alentejo, num projeto de biblioteca itinerante. E nesses anos publica justamente o que os especialistas consideram a obra em homenagem a sua mãe, A Colher na Boca, além de Poemacto e Lugar.

Entrou para a Emissora Nacional em 1963, como redator do noticiário internacional, mas permaneceu ali apenas cerca de um ano. Tempo bastante para publicar Os Passos em Volta em 1963, um livro extremamente autobiográfico e premonitório de sua constante transitorialidade:

“Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.”

Em 1964, publicou com António Aragão, o n.º1 de Poesia Experimental, uma série que teve em suas páginas poetas como Mário Cesariny, a concretista Salette Tavares, e o poeta barroco alemão  Quirinus Kuhlman. Eclético, foi alimentando a aura de enigmático, enquanto lutava para pagar as contas do mês. Trabalhou como tradutor de bulas e literatura explicativa de medicamentos para laboratórios, além das obras literárias de Hans Christian Andersen e Italo Calvino. Também se submeteu como voluntário para testes de grupos psicanalíticos no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria.

Publicou, em 1968, Apresentação do Rosto pela Editora Ulisseia, que foi rapidamente apreendida pela polícia, sendo destruídos os quase 1.500 exemplares impressos, de uma vez. No ofício de proibição, de 22 de julho de 1968, os “críticos literários” da PIDE descrevem a obra como uma “autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade”.

Herberto, já estava na alça de mira da PIDE desde a publicação de A Filosofia na Alcova, edição portuguesa do Marquês de Sade de 1966, prefaciada por David Mourão Ferreira e por Luís Pacheco. A tradução era justamente de Herberto Hélder, usando o seu único pseudônimo conhecido Helder Henrique. Antes de Apresentação do Rosto, aquilo já havia lhe custado um processo judicial, afinal a obra de Sade ainda por cima vinha ilustrada. O fato é que a cassação deu a Herberto uma certa aura de maldito. Nessa época, abandona a grupoterapia, passa a trabalhar num atelier de arquitectura e pouco depois como diretor literário da Editorial Estampa. Ainda participa, como ator, no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, o que pode ter sido sua última aparição em público.

Em Julho de 1969, nasce seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira, de uma relação com Isabel Figueiredo. Herberto Helder sempre foi obsessivamente discreto em relação à sua vida privada. Entretanto, mesmo neuroticamente silencioso, coincidentemente, ou não, consta que Herberto Helder apesar dos dois filhos, nunca teve uma união estável com uma companheira. Afinal, coincidentemente ou não, sempre que nasce um filho, Herberto Helder decide viajar. E para longe.

Dessa vez, volta a perambular pela Europa. E pouco mais de um ano depois parte para ser correspondente em Angola. O amigo João Fernandes, frequentador do Café Gelo, em Lisboa, arranjou-lhe a vaga de jornalista na ainda colônia portuguesa.

Em 1971, fez reportagens para a revista Notícias sob vários pseudônimos, e publicou Vocação Animal, publicação onde se afirmava que o autor deixara de escrever em 1968. A aventura em Angola deixou marcas profundas. Trabalhou em Luanda, De 1971 a 1974, onde foi redator da Notícia, uma revista editada pela empresa Neográfica, cujo capital era dividido por Manuel Vinhas do grupo Vinhas, da CUCA, a primeira cervejeira de Angola, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA. Em Luanda encontra nova companheira que o iria acompanhar pelo resto de sua vida, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar, a Mastaba, uma espécie de sucursal do Gelo lisboeta, onde se reuniam artistas e intelectuais, os chamados reviralhos.

Mas a aventura em Angola dura pouco. No ano seguinte, após um grave acidente de carro, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda" – que se reduziam tecnicamente, a dois livros Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).

Em seus artigos e escritos deste período, manifesta a admiração por Jack Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan, Leonard Cohen, Jim Morrison. Cita Patti Smith em Photomaton & Vox de 1979 e aconselha a todos a leitura de Henry Miller, antes que seja tarde demais.

A Portugal, mesmo, só retornou depois do 25 de Abril, para trabalhar em rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, da qual se publicaram apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra em 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra em 1978.

Alguém já disse, com razão, que apesar da linguagem rítmica, sua poesia deveria ser lida com o incômodo físico de uma pedra no sapato. O poeta era um atormentado, mas sendo bem lido tem algo de sentido de humor dentro e fora de sua poesia. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo sempre irônico, e safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.

Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o aldrabão, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. Como em muitas das histórias obscuras de Herberto, realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns e outros que até rindo da situação.


Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007. Muitas perguntas ficam no ar sobre sua neurótica aversão a entrevistas, e sobre seu desejo de separar o público e o privado de maneira obsessiva, escondendo-se como pessoa. Alguns dizem que a desconfiança da imprensa devia-se ao fato de reconhecer-se homem de ambiguidades e contraditório - o que realmente não explica nada.
Alguns trabalham com a hipótese da tentativa de se preservar – o que explica menos ainda. Outros, como o velho Luiz Pacheco, associam a misantropia com uma estratégia de marketing editorial 

O fato é que recusa o Prêmio Pessoa em 1994, “por razões pessoais”  -  recusa que o tornou mais famoso. Em 1988 já tinha recusado os 10 mil Euros do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1988. Aos 64 anos o poeta que disse certa vez que “nada é mais apaziguador que ter falhado em todo os lados da biografia,” na certa pensou que 30 paus não vão fazer diferença nenhuma para um camarada que como eu, fui estivador, bibliotecário e até agenciador de putas… Do pouco que conhecemos Herberto, na certa o pensou, mas para manter a aura de enigmático, não o disse.

Em 2007 Pen Clube de Portugal indicou o nome de Herberto Helder para  Prémio Nobel da Literatura, o que igualmente seria uma tremenda perda de tempo. A essa altura, nem o desdentado Luiz Pacheco duvidaria que Herberto Helder daria uma de Jean-Paul Sartre.

MARIO CESARINY

 

 


Título Mario Cesariny
Dimensões: 9x9cm
Data: Setembro de 2021

Técnica: Xilogravura

O pintor e poeta Mário Cesariny de Vasconcelos era um lisboeta nato, Nasceu em Vila Edith, em Benfica, a 9 de agosto de 1923. Filho caçula, tinha três irmãs mais velhas. O pai, um empresário e ourives, tinha uma joalheria na Rua da Palma, na baixa lisboeta.

O pai, aliás, era um homem de personalidade dominadora, de uma brutalidade tão exacerbada que chegava a bater na mãe.  Como todo o bom patriarca escroto, via no filho homem o herdeiro e continuador de seu legado. Não pensou duas vezes em mandar o jovem frequentar o Liceu Gil Vicente, para complementar os estudos secundários. Ao fim de um ano, com o intuito de dar continuidade ao negócio da família, o mudou-o para um curso de cinzelagem na Escola de Artes Decorativas Antônio Arroio. É nesta escola, a propósito, que conhece o também pintor Artur do Cruzeiro Seixas - com quem se relacionaria por longos anos.  Sabe-se também que estudou piano, e que apesar do grande talento, foi proibido pelo pai de continuar seus estudos de música. Aos 19 anos pintava e desenhava quando entrou no primeiro ano de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e posteriormente na Escola António Arroio, onde conhece alguns dos futuros companheiros de arte.

Nesse período, o jovem frequenta os cafés de Lisboa, trava contato com a arte e a boemia, e descobre o grupo dos neo-realistas, pelos quais verdadeiramente não se interessa.   

Em 1947 Cesariny ganha uma bolsa de estudos e viaja para Paris, onde frequenta a Académie de la Grande Chaumiére. Nesse momento ele tem um encontro inusitado com o dadaísta Benjamin Péret e André Breton. Breton já com 51 anos, e recém chegado dos anos do exílio de Vichy, dos Estados Unidos. Nestes anos pós-guerra, Breton se imbuíra do firme propósito de animar os surrealistas na França e ao redor do mundo, incentivando exposições e posteriormente participando da revista La Brèche. Esse é o tipo de um encontro que realmente revolucionaria a vida de qualquer um. De regresso a Lisboa, Cesariny, sem dúvida, já é um outro homem. Como poeta, encarou o surrealismo, mergulhando de cabeça na quebra da forma e do automatismo psíquico das formas e das letras.  

Neste mesmo ano, passa a integrar o Grupo Surrealista de Lisboa, do qual faziam parte Alexandre O´Neill, Marcelino Vespeira, António Pedro, Cândido Costa Pinto, João Moniz Pereira. Como todo o bom grupo surrealista, as divergências não tardaram a acontecer, e dois anos depois Cesariny já faz parte de uma dissidência chamada “Os Surrealistas”, com Pedro Oom, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros. E redigem um manifesto coletivo” A Afixação Proibida”. Antônio Pedro, tinha ficado do lado de lá, com o projeto de reeditar a revista Variante. A partir daí os da Afixação Proibida promovem a primeira exposição surrealista de Portugal, que faria parte mais tarde dos anais, que o próprio escreveria sobre a História do Surrealismo português.

No tocante a vida pessoal, no fim da década de 1940, seu pai, arruma outra mulher, abandona a família e se muda para o Brasil. Isto faz com que Mário se aproxime mais de sua mãe e da sua irmã Henriette.

A década de 1950 é quando propriamente Cesariny se dedica à pintura e à poesia, e passa a colaborar com a Revista Pirâmide. Nesse período também, assume seu homossexualismo mais abertamente, o que o leva a ter sérios problemas com a Polícia Judiciária, e a ser vigiado de perto pela constante “suspeita de vagabundagem”. São anos duros politicamente. O regime salazarista não dava trégua a dissidentes, fossem eles comunistas, ou homossexuais. Dez anos antes, o poeta Antônio Botto, já com 45 anos, tivera de deixar o país às pressas, sem dinheiro, rumo ao Brasil, pois tinha sido demitido de sua função pública. Sem dúvida, um duro golpe no dândi, que inclusive precisou da ajuda de amigos, como Amália Rodrigues, que organizara um show de arrecadação de fundos para sua “fuga”.

Como pintor, nestes mesmos anos 1950, Cesariny incorporou imagens do inconsciente com justaposição de objetos desenhados em viscosidades quase orgânica. Seus trabalhos fazem uma espécie de inventário do mundo alastrando tintas, vernizes e colas à esmo, fundindo pigmentos, expressões de fundo neutro com a incisão de grafismo primitivos, abstratos e figurativos. Sua poesia, à propósito, funde-se nessa ambiguidade e reveste essa pintura dando sentido de liberdade.

Em toda a palavra que escreve, em todo o traço que pinta há um forte sentido de experimentação. Vemos isso no seu percurso pictórico: nas pinturas, nas colagens, nas “soprografias”, nas técnicas de sopro de tinta e, nas “sismografias”. Mesmo nos Exquisite corpse, técnica que promoveu e que consiste na produção de uma obra em cadeia criativa, realizada por 3 ou 4 artistas, em tempo real, há esse sentido de interatividade e iconoclastia.

Da mesma forma que é difícil o esforço de determinar-lhe uma categoria - art brut, arte incomum, arte surreal - é difícil exclui-lo da Modernidade. Ele rompeu completamente com o figurativo, e começou a praticar o que ele chamou de despintura, o que se desdobrou em seus poemas como uma forma de desregramento, demembramento da linguagem.

Nos anos 1960, depois das primeiras exposições, Cesariny recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian  para escrever um livro sobre Maria Helena Vieira da Silva e ruma para a Inglaterra, onde esteve por volta de sete anos, com vindas esporádicas a Portugal. Além de pintura, ganhava algo com as traduções de Rimbaud, Artaud, Michaux e outros autores malditos, para o português de Portugal. Outra parte do dinheiro para as viagens já vinha de bolsas e da venda de seus quadros e da intermediação por venda de quadros de outros artistas, como ocorreu com um de Maria Helena Vieira da Silva, dado a ele por Manuel Cargaleiro.

Teve uma vida cheia de amizades, desafetos e prêmios. Ganhou o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, e o Grande Prémio EDP de Artes Plásticas. Ainda nos anos 1980,sua obra poética de é reeditada pelo editor Manuel Monteiro, dono da tradicional editora Assírio&Alvim, podendo ser redescoberta por uma nova geração de leitores.

E doou parte de suas obras de arte para a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, e em testamento, deixou um milhão de Euros para a Casa Pia. Certa vez, perguntado sobre se pensava na morte? Respondeu: “Não muito. Penso na doença”. Acredita na imortalidade? “Não sei. Quando eu chegar, lá telefono [risos].”

 

Mário Cesariny faleceu a 26 de novembro de 2006 aos 83 anos de idade, com um câncer na próstata que já o vinha consumindo há alguns anos. O artista que deixou 19 livros publicados e inúmeras pinturas, foi sepultado no Talhão dos Artistas do Cemitério dos Prazeres.

BOCAGE

 




Título Bocage
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765. Suas muitas versões biográficas estão cercadas de prisões, deserções e um certo mistério quanto a autoria de muitas obras a ele atribuídas. Mas são unanimes e dizer que que foi possivelmente o maior representante do arcaísmo lusitano.

Antes de continuarmos, uma advertência:  Por ser uma biografia não-autorizada de l'Hedois du Bocage, teremos, ao longo dessa biografia, muitas palavras de baixo calão. Portanto, se o leitor quiser interromper aqui a leitura, agradecemos a intenção recebida até aqui…

Nos primeiros anos, sabe-se que perdeu a mãe muito cedo e que o pai, um juiz de fora, esteve preso por longos anos, por, digamos assim, desviar algo de herbário do erário público – ainda que, digam as más línguas, que andava com gente amiga dos inimigos do Marques de Pombal, e como diz aquele velho adágio luso “Diz-me com quem andas e eu te direi que és”, não se sabe exatamente se foi preso por isso ou por aquilo. O fato é que Manuel Maria era criança quando o pai foi para o xilindró. Na linha ancestral, nessa que vem antes da escumalha dos parentes diretos, sabe-se que era neto de almirante. Por parte de mãe, tinha uma fauna hereditária artística respeitável entranhada nas raízes. A família da mãe vinha dos lados da França. Sua mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Marie Anne Le Page du Bocage, tradutora do Paraíso de Milton, imitadora da Morte de Abel, de Gessner, e autora da tragédia As Amazonas e do poema épico em dez cantos A Columbiada, que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o primeiro premio da academia de Rouen. Bocage ainda tinha um nobre e uma freira como padrinhos. Com esse cabedal, o jovem ingressou no exército em 1781 permanecendo por dois anos. Logo seguindo para Lisboa, onde foi admitido na Escola da Marinha Real, da qual desertou antes do final do curso. Mas essa coisa de ter ligações com a França, em fins do século XVIII, se me permitem a licença poética, sempre pode dar merda.

Ainda assim, consta que foi nomeado Guarda-Marinha por decreto de D. Maria I, A Louca, embarcando em 1786 para India com uma significante passagens pelo Rio de Janeiro. Com 21 anos, sua fama de fazedor de versos e poeta, já corria pela boemia lisboeta.

No Brasil, consta no "Dicionário de Curiosidades do Rio de Janeiro" de A. Campos Da Costa e Silva, que viveu na atual Rua Teófilo Otoni, no centro da cidade, e que gostou muito.  "Gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objetivos. Sendo, porém o vice-rei avesso a elogios, e admoestado com algumas rimas de baixo calão, que originaram a famosa frase: ‘quem tem cu tem medo, e eu também posso errar’. " Sem titubear, o Vice-rei obrigou-o a prosseguir viagem para as Índias. E se me permitem a licença poética, este poeta que dizia ser “capaz de foder Lisboa inteira!”, acatou a ordem do vice-rei e seguiu viagem com seu rabo entre as pernas. Ou refaço a frase: seguiu viagem com seus “conos e cus feitos num trapo”

Após essa tentativa frustrada de viver nos trópicos, rumou para India com passagens por Moçambique, Damão e Macau. E logo depois, frente as inúmeras tentativas de deserção, foi preso pela inquisição, que apesar de não mais assassinar, a altura dos anos de 1780, ainda era temida como braço politico do terror.

Pela inquisição seria preso duas vezes e pela polícia de Lisboa outras tantas, mas dizem que foi justamente no período de cárcere que Bocage produziu a maioria de seus textos, inclusive os textos sérios como as traduções e comentários de manuscritos em latim e sua primeira edição de rimas.

Nos calabouços da Inquisição, provavelmente, em nome de Deus, comeu o pão que o diabo amassou, pois na década de 1790, sua produção foi imensa.

Elegia que o mais ingénuo e verdadeiro sentimento consagra à deplorável morte do ill.mo e ex.mo sr. D. José Tomás de Meneses, etc.,1790; Rimas de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, tomo I, 1791; Eufémia ou o triunfo da religião: drama de Mr. de Arnaud, traduzido em versos portugueses, Lisboa, 1793; Elogio poético à admirável intrepidez, com que em domingo 24 de agosto de 1794 subiu o capitão Lunardi no balão aerostático, Lisboa, 1794; As chinelas de Abu-Casem, conto árabe de 1797; dentre outros.

Ainda nesta década de 1790, foi convidado a fazer parte da Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudónimo Elmano Sadino, com o qual já vinha escrevendo desde 1791, por exemplo,  Qeixumes do pastor Elmano contra a falsidade da pastora Urselina. Entretanto, o fescenino e boemio foi acumulando desafetos como todo o bom desbocado, passando a escrever ferozes sátiras contra os próprios confrades. Ou seja, não chegou a esquentar os couros das cadeiras na Nova Arcádia, sendo logo expulso.

Acredita-se que um dos seus principais rivais intelectuais na “Academia de Belas Artes”, Belchior Curvo Semedo, articulado com os “moscas”, polícia política regia que prezava pelo mantenimento do regime em plena turbulência dos ecos da Revolução francesa, denunciou alguns de seus poemas licenciosos e traduções que circulavam, inclusive no Brasil. Como tradutor dos Iluministas, não seria difícil atribuir-lhe outras culpas num tempo de paranóia restauradora e anti-revolucionária, afinal a denúncia contra o despotismo, o fanatismo religioso, a hipocrisia do clero, a moral sexual, eram temas recorrentes e correlatos aos Iluministas. No fundo isso é inveja, só pode ser.

E diga-se de passagem, Lisboa era dominada por Pina Manique, intendente de polícia e homem de confiança do temido Marquês de Pombal, o mesmo que em 1797 decretara a prisão de Bocage por ser “desordenado nos costumes”, Manuel Du Bocage já era uma figura marcada e conhecida por suas simpatias com as idéias do Iluminismo e figuras como Voltaire, Rousseau, La Mettrie, Diderot, d’ Alembert.

De 1799 até 1801 Bocage trabalhou com o Frei José Mariano da Conceição Veloso, um religioso brasileiro bem conceituado entre a corte e a igreja, que lhe proporcionou ganhar algum dinheiro com muito trabalho e troca de redução de suas penas. Deste período são os panfletos:

Sabe-se também que ao longo da vida foi tradutor com várias versões portuguesas de textos clássicos latinos, entre os quais se contam autores como Virgílio e Ovídio, caracterizadas pelo rigor e pela originalidade, atribuídas a Bocage. O mesmo rigor crítico ser também aplicados às suas traduções da língua francesa de escritores de vertente “Liberal”, como Voltaire, La Fontaine, Florian, Lacroix, d’Arnaud, Delille e Castel. De Le Sage, por exemplo, traduziu do francês para o português da picaresca História de Gil Braz de Santilhana, 1798. Bocage a traduziu até à página 116 do tomo II, a partir daí passou a ser feita por Luís Caetano de Campos, pois Bocage brigou com o editor e não quis continuar.

Em 1805 descobriu uma doença cardíaca com a qual iria sucumbir em cinco anos. Ainda nesse ano publicou Os improvisos e os Novos improvisos, escritos já durante a enfermidade. Estes últimos cinco anos, que precederam a sua morte, foram dolorosos. Pobre e doente, só não se viu completamente desassistido, graças ao amigo, o dono do café das Parras, no Rossio, José Pedro da Silva. Este café por muitos anos teve um lugar reservado para Bocage e seus amigos do Agulheiro dos sábios. Na sua doença, Pedro das Luminárias, como era conhecido o amigo taberneiro, o auxiliou com doações, dinheiro e ajuda na venda de seus livros, chegando a pagar as despesas do funeral.

O poeta, que ao longo da História, frequentou mais anedotário que lhe é atribuído, que à sua obra, é hoje um mito.  O mito e o anedotário muito se deve aos indispensáveis editores pilantras que, na primeira metade do século XX, sem escrúpulos, foram perpetuando esta fraude, através de edições com poemas e piadas de baixo calão, em sucessivas e de inúmeras tiragens, indo ao encontro da procura assinalável de um público que sempre esteve atrás de uma piada do Bocage. Afinal, junto à dos papagaios, as piada do Bocage, sempre foram as melhores.

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage morreu em 21 de Dezembro de 1805, em Lisboa. Vítima de aneurisma da artéria cervical interior do lado esquerdo, aos 40 anos.

 

FLORBELA ESPANCA

 








Título: FLORBELA ESPANCA

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 

 

Florbela Espanca matou-se no dia em que fez 36 anos.  Foi tão improvável, que sua poesia não se encaixa nos moldes da poesia portuguesa da época. Flor Bela de Alma da Conceição nasceu em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894 e teve uma infância tumultuada pelo fato de o pai não reconhecer a paternidade da menina, que tinha como mãe, uma empregada doméstica de Vila Viçosa. Mas contraditoriamente, é o pai que se encarrega da educação da menina, quando a mãe de Flor Bela morre aos 29 anos.

Os seus primeiros versos datam dos sete anos, e escreveu o primeiro conto ainda na escola primária. Concluiu os estudos de licenciatura em 1912 e, nesse mesmo ano, casou-se cedo com Alberto Moutinho, e abriu um colégio e deu aulas de francês e inglês.

A poetisa reuniu uma seleção da sua produção poética desde 1915, inaugurando assim o projeto Trocando Olhares. Tratava-se de uma coletânea de oitenta e cinco poemas e três contos que foram o ponto de partida para futuras publicações.  Nesse mesmo ano começa a escrever para revistas de moda e de costumes como a Modas & Bordados e O Século.


Aos 22 anos inscreveu-se em Direito na Universidade de Lisboa, mudando-se para a capital, onde teve os primeiros contatos com os meios literários da época. Sendo que era uma das 14 mulheres entre mais de 300 alunos homens. Nesse período engravidou e perdeu o feto num abroto involuntário que afetou ovários e parte dos pulmões. Repousou durante aquele ano e começa a apresentar seus primeiros sintomas de neuroses.

Frequentava o terceiro ano do curso quando, em 1919, publicou a sua obra de estreia, Livro de Mágoas. Aos 27 anos divorciou-se e se casou com António Guimarães, de quem também se divorciará, em 1924, após mais um aborto. Decide tratar-se em Guimarães, e ali já começa a viver  com o médico Mário Lage – essa união foi a única que foi realizada na Igreja.

No ano anterior publicara o seu segundo título, Soror Saudade -  que tinha título original de Claustro das Quimeras. Não apenas mudou o título, como a ordem dos poemas, já que era parecidíssimo com um livro homônimo de Alfredo Pimenta. A partir daí já não conseguirá encontrar editor para o terceiro, tendo Charneca em Flor, publicado postumamente, em 1931, pelo professor italiano Guido Batelli.

Com 3 casamentos e 2 divórcios, algo bastante incomum para a época, Florbela Espanca passa a ter crises e a saúde vai pouco a pouco fragilizando. Nestes altos e baixos emocionais, o pai se afastara por não concordar com seu segundo divórcio, e o facto de ter ostensivamente vivido com os seus dois últimos maridos antes de se casar com eles, não lhe facilitou decerto a vida na sociedade patriarcal da época, impossibilitando mesmo a edição de seus livros.

A morte precoce do irmão, “esmagou o coração dentro de seu peito”.  O fato provavelmente contribuiu para agravar ainda mais seu já frágil estado de saúde, marcado por problemas pulmonares, pelas sequelas de dois abortos involuntários e por uma provável doença mental hereditária, que lhe provocava insónias, enxaquecas e esgotamentos físicos e mentais frequentes. Abandonara a poesia e caía em depressão, ainda tentando traduzir alguns autores franceses. “Um ente de paixão e sacrifício, de sofrimentos cheio” eis Florbela, que ao final da vida começou a consumir um barbitúrico, Veronal, ao qual depois recorreu para se matar.

Os sonetos de Florbela não tardariam muito, após a morte da autora, a tornar-se um caso invulgar de sucesso público, seja pela luta feminista, seja ela representação forte e intensa do papel da mulher na sociedade patriarcal.  

Postumamente, sai um primeiro volume de correspondência e o livro de contos As Máscaras do Destino. Em 1934, são publicados os Sonetos Completos, acrescidos do conjunto inédito Reliquiae. Mas é só nos anos 80 que o trabalho de edição da obra de Florbela se conclui, com a edição de Diário do Último Ano, do livro de contos O Dominó Preto e, finalmente, da edição da sua obra completa, organizada por Rui Guedes a partir dos manuscritos da autora.

Alguns críticos viam sua poesia como fácil e anacrônica, talvez não necessariamente por isso seja melhor acolhida e mais lida no Brasil que em Portugal. Sua escrita é marcada por um certo exagero emotivo e confessional, mas por ser a voz do que era silenciado do desejo feminino em seu tempo passa a ser uma poetisa com profundas raízes no movimento feminista português. Ao lado de Judith Teixeira, com quem dividia páginas na Revista Europa, também publicou os seus livros nos anos vinte. Tal como Florbela, Judith era filha ilegítima, e também se divorciou, e com poesia frontalmente lésbica foi censurada pelo regime e marcou sua época. Entretanto, em vida, não se sabe de que tenha feito parte de nenhum grupo literário ou de poesias. Sempre publicou sua produção poética, por conta própria

 



Aonde o Vento me Levar


Aonde o Vento me Levar é o título de um dos muitos livros do jovem escritor Manuel Jorge Marmelo. Foi-me indicado por um amigo em comum, meu e dele. Veio com a recomendação: se você gosta de Paul Auster, gostará dele. Apenas disse isso e deixou que eu descobrisse o resto....

Li. Sinceramente, na primeira vista não gostei. Comentei com esse amigo e disse que faltava-lhe algo que nem mesmo eu sabia explicar. Talvez ação, talvez um contorno maior da psicologia do protagonista. Meu amigo insistiu. Conheço esse amigo a suficientes anos para saber que ele não é um leitor amador, que não é um profissional qualquer da literatura, e que assim como eu constata com certo incômodo, que a lógica da narrativa formal causal-linear sofre de uma certa debilidade no relato contemporâneo, agora ligeiro, disperso, fragmentado e superficial; de uma acumulação de superficialidades e lugares comuns. Se insistiu é por que merece uma releitura.

Reli, ontem. Mudei de idéia completamente. Descobri num novo livro um livro muito bom, e uma personagem principal, ainda que imersa numa vida monótona, interessante: o escritor. Explico: a personagem principal é um contador, uma espécie de guarda livros, um pacato funcionário que habita a monotonia e o conforto de um escritório, massacrado pelo cotidiano, e movido pelo sonho de escrever um livro.

O problema é que sua vida, cercada pela solidão e pela racionalidade matemática, não admite erros, falhas, discordâncias. As colunas somatórias do Excel devem estar impecavelmente alinhadas e as contas, no fim do dia, devem bater. E tem um problema maior. Antes de iniciá-la, não tinha uma idéia ou sequer estória definida. Portanto, como todo o escritor, sobre a folha branca deveria inventá-la. Assim, começa pela elaboração de um personagem. Seu personagem principal se chama M.. M. é uma criatura que com o passar da estória torna-se um ser autônomo. Este lhe conta a estória de um grande amor perdido por uma tal Rosa, nome que nunca agradou ao escritor, preferindo chamá-la em seu relato como Atla. Ou seja, o escritor inventa um personagem e o personagem domina o escritor e o conduz por caminhos desconhecidos. Para narrar a estória o contador decide matar Atla no primeiro capítulo do livro que escreve e sugerir a seu personagem que viaje para a Africa a procura de um novo amor. A estória então se torna interessante, pois é evidente que o Eu do escritor se propõe a escrever um livro de viagens baseado nos telegramas enviados por M. da Africa. Há então um jogo interessante entre o criador, que não se sabe bem quem é e a criação deste autor.

Para quem tem familiaridade com os filmes Being John Malkovich ou Eternal Sunshine of the Spotless Mind, pode constatar que há algo em Marmelo que pode-se encontrar nos filmes do brilhante roteirista Charles Kaufman. Ou seja, em meio a estórias aparentemente confusas e enredos inverossímeis, existe um jogo envolvente apresentando-nos um narrador céptico. Na estória de Marmelo, o protagonista, ou seja o contador-narrador, maldiz o excesso de realidade e de monotonia em sua vida. Nessa tensão entre um protagonista rígido e um antagonista livre para viajar, para amar Atla, Amina, Fathma... e para reinventar-se, protagornista e antagonista acabam por intercambiar seus papéis, pois mesmo que o narrador lamente constantemente a abundância de realidade que surge em sua escrita, consegue nessa tensão, entre o que deseja escrever e o que consegue expressar por palavras, realizar o que em suas palavras seja um exercício literário honesto.

Outro paralelo poderia se traçar entre o nosso contador e Daniel Quinn, personagem que persegue Paul Auster em Trilogia de Nova York. A única e irônica diferença é que nosso próprio narrador afirma precipitadamente - “eu sou o manipulador, e M. é o meu títere. E que não reste nenhuma dúvida sobre isso.” - ter controle absoluto sobre M.. Ironicamente, isso deixa de ser verdade no momento em que M. começa a dominar a narrativa com seus telegramas, envolvendo o próprio contador em suas estórias de aventuras e amores na Africa. A questão é que tanto quanto Craig Schwartz conhece John Malkovich, e Quinn muito bem conhece a Auster, desconfio que nosso contador-narrador conhece bem M.. Desconfio de uma ou duas outras coisas mais.

Desconfio, por exemplo, que na verdade M. seja um médico galego que deixou tudo para trás indo trabalhar em Lisboa. O que me leva a suspeitar da real identidade de M. é num de seus telegramas, dando conta que conheceu uma liberiana de nome Fathma por quem se apaixonou. M., através de seus aerogramas enviados ao contador-narrador de Marmelo, oxalá, escreve uma narrativa reinventando-se. Os telegramas, de tom sincero e confidente, não deixam de ser um ajuste de contas consigo, que o contador-narrador de Marmelo vai tratando de desvendar, ao mesmo tempo que vai mostrando sua face extremamente introspectiva. Fathma pode muito bem ser o alter-ego de Oriana ou até mesmo Ondina... mas isso são suposições...

Mas mesmo que o contador-narrador de Marmelo construa uma ficção sobre as imagens criadas por M., e que a partir delas tente fugir de sua própria realidade, ocultando a sua realidade como motor da obra literária, no final, em Londres, quando encontra G., uma colega do curso de contabilidade que prometera guiá-lo pela cidade, tudo passa a fazer sentido: Aonde o vento me levar.
Música do dia. A Desconhecida - Fernando Mendes. E se é pra falar do brega-blues põe ai o Ana no Roberto Carlos - Aliás, vai por mim, se um dia tiveres coragem de escutar o Rei, os dois melhores e raríssimos discos de Roberto Carlos são As Flores do Jardim de Nossa Casa e Ana.

Ensaio sobre a Cegueira



Li Ensaio Sobre a Cegueira em 1998 - mais exatamente, como atesta a data de término da contra-capa autografada pelo próprio Saramago, julho de 1998. Mas sempre que me lembro do livro, a imagem de seus interiores claustrofóbicos é tão nítida em minha lembrança como a esperança que os personagens têm ao emergir do caos. Engraçado que a cegueira em si não abandona os personagens à deriva mas, ao contrário, radicaliza as existências daqueles homens e mulheres enclausurados em quarentena. Só me dei conta disso, de fato, finalmente assitindo o filme de Fernando Meirelles, há meses atrás.


Ensaio Sobre a Cegueira – o livro - narra os efeitos de uma inexplicável epidemia de cegueira que assola uma população. A primeira manifestação ocorrre logo nas duas primeiras páginas com um homem no trânsito e, lentamente, se espalha pelo seu oftamologistas, pelos pacientes da sala de espera, pelo meliante que tenta roubar seu carro e por todo o país. O governo, então, obriga o confinamento dos contaminados para os que ainda não perderam a visão, não sejam contaminados.

Este, de forma geral é o enredo do livro. Sempre tive a impressão que os livros de Saramago seriam dificílimos de uma adaptação para o cinema, justamente por tratarem os temas abordados com um viés demasiado alegóricos. Transmitem, os livros, muito mais sentido do que a simples compreensão literal das imagens contidas em suas linhas. Mas depois do filme certifiquei-me de meu engano. Ledo engano.


Meireles é um grande diretor. Grande mesmo. Ainda que tenha algo que me incomoda um pouco ao aproximar a estética de seus filmes a um enquadramento comercial demais. Vide em Cidade de Deus, dentre inúmeras outras, a cena do menino matando o vigia de um motel, dando-lhe as costas, e sair gargalhando. Aquela violência, ou sugestão da mesma – já que o elemento sangue não é visível (?), - parece-me Hollywood de baixa qualidade. A cena me pareceu a mais desnecessária de todo o filme, exatamente pela violência – mesmo não explícita – desnecessária. Me lembro que numa entrevista Meireles tentou ainda se defender dizendo que a forma como vemos a violência é diferende daquela nos filmes americanos. Não comprei o argumento. Como tampouco não aceitei as supressões feitas pelo roteiro, na cena em que o marido se descobre traído. No filme ele “apenas” mata a mulher. A cena não aparece, como sequer aparece a menção ao assassitado da mulher a golpes de pá, e o consequente emparedamento do cadáver - como se existissem níveis distintos de violência. Nesse sentido, Meireles traçou um caminho oposto ao de um Billy Wilder, que recusava-se a abrandar certos elementos dramáticos e realçar elementos mais técnicos como a velocidade das cenas num estilo mais palatável para as grandes audiências.


Mas por que Meireles é grande, mesmo? Bom, por que neste filme tudo foi preciso. Um outro diretor poderia trasnformar o filme numa bomba de filme com zumbis, assassinos em serie, e colocar no meio psicopatas com serras elétricas.... pois no fundo os elementos da falta de ordem, milícias mercenárias, ausência do Estado, e uma gama de medíocres reações humanas ante o caos poderiam descambar para um filme ruim. Ensaio sobre a Cegueira vai por outro caminho. Julianne Moore (a Mulher do Médico) e Mark Ruffalo (o Médico), dão um caráter humano à desumanização em seu Estado de Natureza mais brutal.


Tanto o romance como o filme nos mostram como a humanidade perdeu o jogo e não se deu conta, pois as atitudes de individualismo, de falta de solidariedade, não passam de atitudes individuais e portanto impreceptíveis num plano mais geral. Ou seja, enquanto um indivíduo perde a visão, tudo não passa da infelicidade de um infeliz desgraçado que perde a visão. Mas quando a sociedade por completo que, por causa da cegueira, perde tudo aquilo que considerara como pacto civilizatório, imergindo numa crise epidêmica, os indivíduos passam a ser obrigados a confiar uns nos outros. Sem outra escolha, passam a ser obrigados a buscar, em meio a um ambiente caótico de todos contra todos, a dignidade esquecida. Pensando bem, Saramago é esse escritor que resgata esse sentimento de solidariedade esquecida, existente num certo século XX.

Deixando para trás os nomes que vão mudando


Tive a oportunidade de reler recentemente (Sapa)teia Americana, livro de Onésimo Teotónio de Almeida. Antes de tratar do título, atento para o fato de algo que quase nunca me chama a atenção, e que nesse livro capturou meus olhos e minha alma: a dedicatória singela endereçada aos pais. «A meus pais, que de e/imigração entendem mais do que eu».

Mas tratando do título, o título. Pelo que verifiquei sofre ligeira influência do livro de um poeta português pouco conhecido no Brasil, que viveu por anos em Nova Iorque, chamado Vitorino Nemésio. O Sapateia Açoriana de Nemésio, sem dúvida, tem influência nos contos de Onésimo Teotónio de Almeida, mas não através dos poemas do livro em si. A influência verdadeiramente vem de uma outra obra de forte influência romanesca, que ainda não tive a oportunidade de concluir, chamada Mau tempo no Canal. Sente-se de Mau tempo a influência das idéias ali contidas. Os protagonistas da estória de Nemésio, João Garcia e Margarida Clark Dulmo estão apaixonados. Querem se casar. Entretanto, pertencem a classes distintas. João é um novo rico que pela sua descendência não oculta certo sentido de ostentação da riqueza em dispendiosas exibições. Já Margarida Clark Dulmo vem de uma família abastada, com raízes estrangeiras, mas em decadência.

O romance, aparentemente inconcluso, entre João e Margarida é uma grande metáfora que Nemésio cria para a condição de seu Açores, um arquipélago a meio caminho entre o velho e o novo continente. Isso fica claro nos sonhos de Margarida, quando procura os significados oníricos na décima ilha - Açores, só para constar, tem 9 ilhas -, justamente na chamada Ilha da Felicidade, um tipo de mito heliodrômico que povoa o imaginário dos açorianos há pelo menos... não sei quanto tempo. Certamente, a crença de que a civilização, assim como o sol, caminha para o ocidente está lá, latejando na cabeça dos insulares desde que Platão e Swift decidiram localizar suas Atlântidas a oeste do arquipélago. Pelo pouco que li, Nemésio aponta para esse caminho.

Certamente , tal paradoxo percorre todo o (Sapa)teia Americana - com os parenteses nas duas primeiras sílabas - em virtude, talvez não muito bem clara para muitos, de certa lógica de harmonização entre a idéia original de Nemésio, e o enredo e contextualização dos personagens com o próprio título. Há esse diálogo sem dúvida, que autor do (Sapa)teia Americana, entretanto, como todo o bom autor contemporâneo, transforma o mito e o sonho numa realidade nem sempre palatável, deslocando o eixo imaginário de Margarida, fragmentando-o em vários personagens, que vivenciam a dura realidade de imigrantes nos Estados Unidos, seja na California, NY ou Rhode Island.

Em linhas gerais (Sapa)teia Americana é um livro sobre imigração e a perda das raízes, que pode converter-se até certo ponto na perda da alma. Nesse ponto, dito assim, tudo poderia ser dramático. Poderia nos trazer a projeção sombria e lúcida do protagonista de Mephisto no filme de Szabó. Entretanto, em (Sapa)teia, um livro a meio caminho do conto e da crônica, há o componente – para o bem e para o mal - que Sergio Buarque definira ( não me lembro bem se em Cobra de Vidro ou Raízes do Brasil) como predominantemente aventureiro e semeador do colonizador tanto ibérico quanto luso.

No Brasil de quatrocentos anos atrás, dizia Sergio Buarque, o português chegara transpondo a cultura da metrópole para a colônia, recriando sua arquitetura e urbanismo, e adaptando-os, com improviso e com a mistura com as culturas nativas e africanas, à realidade da nova terra. Os lusitanos, isso sim, teriam sido mais semeadores do que ladrilhadores. Seu enraizamento era de certa forma orgânico e não planejado. Diferente do projeto ladrilhador norte-americano que, reza a lenda, já chegara com o espírito protestante, com o moralismo proveniente da natureza puritana, e o espírito da acumulação capitalista.

Transpondo essas características para os dias de hoje, (Sapa)teia Americana é um livro sério que rompe com a visão dramática de um Hendrik Höfgen versando com muito sarcasmo e bom humor em torno ao tema central da imigração. E os personagens dos contos, que são em grande medida imigrantes de língua portuguesa, na sua maioria portugueses ou açorianos, mas que também vez por outra atravessa ali por trás da tela principal, um brasileiro ou africano, são de uma riqueza interessante. Carregam ainda essa alma aventureira, sem dúvida. Mas a projetam num país anglo-saxão. O resultado em certos termos, trágico, realista, resulta na aceitação da vida, por parte dos personagens, como ela é, sem formar grandes ilusões nem imaginar grandes expectativas.

O que particularmente me chama atenção nesses contos são dois pontos. Primero, é a riqueza de detalhes cotidianos que o autor incorpora de forma lúcida a seus personagens. Segundo, o trabalho com a linguagem que o autor elabora, inclusive com um glossário do slang anglo-português, aproximando-nos da linguagem prosaica de seus personagens, e que ao fechar o livro, paramos e dizemos... É isso mesmo! Ainakin é Cerveja Heineken. Ame sóri é obséquio. Obvio. Obvio é o que vejo e não consigo expressar por palavras.

Interessante para mim, um reles mau leitor, falpórrias e consumidor de literatura, é nem tanto a profundidade psicológica dos personagens, que de certo o autor ocultou de maneira proposital, mas a naturalidade com que o autor dá voz a tipos prosaicos, deterrados, emprestados em terras estranhas, que sentem-se seduzidos mas ao mesmo vivenciam uma relação problemática com o cotidiano da cultura americana. Tais personagens, como começando com o primeiro conto, que se passa numa escola mas que aponta para as experiências fora da sala de aula onde Antônio, que dirige seu Buick, estuda inglês sem empenho, e inveja os parentes que concretizam o adágio de que mais vale a necessidade que a universidade, evidenciando que a maior experiência para ele, Antônio, está fora de sala de aula; ou Marianinho do conto A Amér(d)ica do Mariano, um tipo sem lapidação, um tipo que vai deixando a paixão pela música em vitrude das agruras da vida e da quantidade de filhos que vai acumulando; ou o padre Melo preocupadíssimo com os destinos dos carismáticos com suas falácias rituais que tomavam sua Igreja de assalto, mas que no fundo inquitava-se mesmo é com os institntos acasalatórios dos miúdos que andam pelos quintais de sua paróquia. Outros personagens, como o Jorge de O Dever de Homem, com seu laconismo desconfortável, num bar com os amigos a falar das agruras vida, das chatices da existência e evidentemente, como sempre, de cópulas com exaltações a natureza fodedora dos portugueses. Interessante, pois Jorge, tão português e tão macho quanto os companheiros de mesa, passa-nos a impresssão de que até poderia falar de mulheres nos termos colocados pelos companheiros, se estivesse num outro lugar, talvez com amigos mais chegados. Mas, como transparece um alto grau de pudor, apenas deixa entrever a extensão moral de sua solidão preferindo prescindir do nacional-fodismo dos amigos. Enfim, dessa estreita relação entre as personagens e o seu meio, surge uma simbiose interessante entre os protagonistas, geralmente inábeis expressar verbalmente coisas como solidão e saudade, e seu Outro. Esta relação, aliás, problemática desde o princípio em que pisam na terra, altera-lhes a aceitação da vida, torna-os céticos sem grandes ilusões se não àquela de um dia retornar.

De certa forma, interessante é como estes pisam e sapateiam essa terra de forma a reincorporar a alma prescrita de imigrante. Pois quem há de dizer que ainda são o que eram em suas aldeias , ou já são o que serão na nova terra. Esse vácuo, depois de atravessarem o mar de chão liquido do Atlântico, entre o que se deixaram de ser e o que nunca serão, é o paradoxo que acompanha os protagonistas imigrantes. E talvez aí esteja o verdadeiro sentido do título que me intrigou desde que pus os olhos sobre o livro.

Onésimo joga bem com esse paradoxo do Portugee na Amérida em forma de duas metáforas: primeiro, com o verbo sapatear - que vem a ser também uma dança típica dos Açores e que nos traz à lembrança a muñeira - ; segundo com o substantivo teia. Ao mesmo tempo que sapateiam e esconjuram a terra, em momentos de desespero, criam teias, pois vão deixando pelo caminho mulheres, amantes, filhos, saudades e raizes.




Poesia do dia: De Apolinário a Poço Fundo - João Cabral de Melo Neto

[...]
Deixando vou as terras
de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as, enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

Todos os Nomes



“Todos os Nomes” é um romance com cheiro de papel velho. A estória de um escriturário de cartório, um Zé, um José de nome José. Solteirão, solitário, investigativo e mais que tudo imaginativo, Sr. José é de um tipo introspectivo que para se afugentar da modorrenta monotonia de seu dia-a-dia na Conservatória Geral começa a acumular fichas com verbetes de pessoas famosas. A Conservatória Geral, como diz o nome em termos próprios, uma espécie do que se conhece no Brasil como Cartório, tem uma arquitetura idealmente similar a do centro comercial da Caverna. Tem algo a meio caminho do Panóptico de Bentham e do puxadinho de meia àgua no Amarelinho de Irajá, já que os funcionários, tal como diplomatas, adidos e outros tipos estacionados no serviço público, vivem em apartamentos funcionais, vivendas simples, rústicas, construídas no exterior, ao longo das paredes laterais. As casas dispunham de duas portas. Uma porta normal que dava para a rua e uma porta adicional que se comunica com o prédio principal, por onde os funcionários entram e pegam no batente.

Certa noite, por puro acaso, Sr. José decide entrar na nave principal – ele adquire a chave da nave principal pervertendo as regras da Conservatória. Encontra a ficha de uma mulher desconhecida e decide investigar algo mais de sua vida. Descobre que a ficha que cai-lhe nas mãos é de uma mulher de trinta e seis anos. Nos averbamentos somente constam um casamento e um divórcio. Os motivos para investigar a vida daquela mulher específica não são óbvios, mas em se tratando de um tipo de personalidade tão peculiar, não nos atrevemos a perguntar, ainda que a pergunta permaneça incomodando o leitor atento o tempo todo. Munido de dados básicos, José passa a investigar por conta própria a vida da tal mulher, abandonando as fichas das celebridades. Tal como um detetive, a investigação de José transgride as regras básicas do respeito ao anonimato da mulher, rompendo as rígidas normas da Conservatória.

O senhor José é um homem de 52 anos. Suas semelhanças com o Raimundo Silva, do História do Cerco de Lisboa, não param por ai. Se por um lado o revisor dos textos, Raimundo, decide, a partir de um NÃO adicionado no documento, mudar toda a história de Portugal, o nosso José, a seu modo, passa também a mostrar o absurdo da burocracia que nos devora lentamente, imperceptívelmente, a partir do verbete sobre a vida de uma mulher desconhecida cujo nome consta nos registros da Conservatória. Um simples verbete.

A princípio percebe-se que no trabalho, assim como na vida, José é um tipo introspectivo e solitário, com algo de crédulo. Sua submissão não é apenas à grande estrutura burocrática imposta pela Conservatória, mas a sua própria ética de trabalho: interna e vocacional. Com tal propensão, Sr. José chega a ponto de nunca ficar doente, nunca faltar e principalmente, nunca desobedecer as ordens de superiores. Ou seja, um homem que tem tudo para chegar longe, ou nunca sair do lugar, pois essa assiduidade não se traduz em adulação. Não foi o outro Chico que disse, vence na vida quem diz sim?

Tal como dito, o Sr. José, amanuense e auxiliar de escrita, parte à procura de uma mulher desconhecida de maneira peculiar. Homem das antigas, prefere começar pelas beiras, por baixo, desde o local de nascimento, passando pela escola, passando por uma madrinha ansiã. Seu roteiro de busca começa pelo endereço que consta na certidão de nascimento da mulher. Sem sucesso, vai ao endereço contido em sua ficha de dados, indaga os vizinhos sobre o possível paradeiro da antiga moradora. Chega até a madrinha da mulher desconhecida, chamada apenas "a senhora do rés-do-chão", que lhe sugere o óbvio: procurar na lista telefônica. José rejeita tal opinião e decide procurar na escola onde ela estudara.
Esse impulso incontrolável pela descoberta de algo sobre a vida da moça tira-lhe o sono, e o faz perseguir um labirinto confuso dentro e fora da sua cabeça. Certas horas Saramago faz crer que o seu protagonista sofre de alguma demência obsessiva, desfazendo-a logo, tal como Dostoievski o faz, nas páginas seguintes, por algum episódio errático e inusitado imposto pelo acaso, ou pela providência burocrática da Conservatória Geral. Faz-nos perguntar sobre onde está a anormalidade, se em nós leitores que cremos no mundo que vemos, se em José em sua busca absurda e inexplicável, ou se no mundo em que vivemos. A pergunta não é tão retórica frente as situações insólitas que cercam a investigação. Uma delas é a série de desencontros impostas à procura de José. A propósito, sua procura se concentra em quatro lugares kafkanianos: A Conservatória, onde estão divididas as fichas dos vivos e dos mortos; a cidade onde sempre chove; a escola onde até então José acreditasse que a mulher tivesse apenas estudado na infância; e finalmente o mais obvio de todos, o cemitério.

Como dito, a narrativa percorre quatro grandes espaços: a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério. Ou labirintos. No último, José constata que o objeto que o levou à tamanha transformação não existe. A mulher desconhecida está morta. Suicidara-se poucos dias antes. A procura por ela, então, tornaria-se inútil, caso José fosse um conformista e Saramago um escritor qualquer. Ao contrário, a insistência na procura torna-se insana, pois decide continuar procurando elementos de sua vida e de sua morte, esquecendo-se ou ignorando volutariamente a rigorosa obediência às normas da Conservatória. Deixa a barba por fazer, descuida-se da limpeza do seu quarto e cogita até uma possível paixão imaginária e irreal pela mulher que sabe-se agora ser professora de matemática, funcionária da escola onde José fora procurá-la como aluna e suicida.

O tom alegórico de boa parte destes espaços percorridos por José está em sua estrutura labiríntica, no tom pesado de uma cidade onde sempre chove, no jogo de desvelamento e ocultamento, no absurdo do cotidiano, no uso de imagens do inconsciente que perpassam pesadelos e monstros mitológicos jogando com a temerária idéia não da morte em si, mas com a idéia cruel que a morte traz a iminência do desaparecimento, do esquecimento. Alegorias como as de que uma vez dentro do recinto da Conservatoria Geral, apenas é possível retornar à sua saída ou ao presente com o fio de Ariadne amarrado ao pé. A idéia do labirinto transcorre em todo o romance. A Conservatória é um labirinto de arquivos e gavetas onde, para penetrar nos seus corredores, é necessário desenrolar um fio de Ariadne. Outro labirinto maior é o cemitério onde o Sr. José vai procurar, quase no final da estória, o túmulo da mulher desconhecida. É absurdo cogitar isso, mas Saramago nos induz a pensar que enquanto o cemitério é o labirinto dos mortos, a Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos. Nos induz de maneira um tanto estranha, mas eficiente, do ponto de vista narrativo. No cemitério, o maior dos labirintos, o Sr. José caminha por longas horas em sua solitária busca. Cansa-se e adormece. Tem um sonho. "sonho estranho, enigmático." Desperta "angustiado, alagado de suor." Sonha com um pastor de ovelhas que zela pelos mortos, uma espécie de Omulu, que eventualmente muda os números das tumbas.
Penso: em várias religiões, profanar os campos sagrados dos mortos dá uma encrenca danada no além. Saramago vai ao limite para provar-nos o caos onde estamos imersos. Nas palavras do pastor: "Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, [ assim ], ficaram definitivamente livres de importunações."

Chega-se ao fim do livro sem saber específicamete os motivos que levaram José a investigar a vida daquela mulher. Mas, a essa altura pouco importa, pois já estamos perdidos no meio do labirinto contruído por Saramago. Após a experiência surreal, de volta à Conservatória Geral tenta retomar suas atividades. Ali, constata a cumplicidade do Conservador Geral às suas aventuras. Este lhe devolve a chave que permite o livre acesso ao grande prédio. O chefe reconhecia o absurdo onde estavam ambos imersos e talvez por isso, recentemente, sem explicações maiores, tal como no Livro de Areia de Borges, o Conservador ordenou aos funcionários a junção dos arquivos dos mortos e dos vivos, sem qualquer distinção. O chefe sabia de tudo, das visitas à casa da “senhora do rés-do-chão", à casa dos pais da moça, das investigações.... Nesse ponto o chefe da Conservatória e o pastor agem de maneira semelhante... José então pega a sua lanterna, ata o fio de Ariadne ao tornozelo e dirige-se para a escuridão dos arquivos.
Um livro que nos fará pensar duas vezes antes de entrar num cartório. Voilá caro K.
Música do dia. Everytime we say goodbye. John Coltrane. My Favorite Things