Todos os Nomes



“Todos os Nomes” é um romance com cheiro de papel velho. A estória de um escriturário de cartório, um Zé, um José de nome José. Solteirão, solitário, investigativo e mais que tudo imaginativo, Sr. José é de um tipo introspectivo que para se afugentar da modorrenta monotonia de seu dia-a-dia na Conservatória Geral começa a acumular fichas com verbetes de pessoas famosas. A Conservatória Geral, como diz o nome em termos próprios, uma espécie do que se conhece no Brasil como Cartório, tem uma arquitetura idealmente similar a do centro comercial da Caverna. Tem algo a meio caminho do Panóptico de Bentham e do puxadinho de meia àgua no Amarelinho de Irajá, já que os funcionários, tal como diplomatas, adidos e outros tipos estacionados no serviço público, vivem em apartamentos funcionais, vivendas simples, rústicas, construídas no exterior, ao longo das paredes laterais. As casas dispunham de duas portas. Uma porta normal que dava para a rua e uma porta adicional que se comunica com o prédio principal, por onde os funcionários entram e pegam no batente.

Certa noite, por puro acaso, Sr. José decide entrar na nave principal – ele adquire a chave da nave principal pervertendo as regras da Conservatória. Encontra a ficha de uma mulher desconhecida e decide investigar algo mais de sua vida. Descobre que a ficha que cai-lhe nas mãos é de uma mulher de trinta e seis anos. Nos averbamentos somente constam um casamento e um divórcio. Os motivos para investigar a vida daquela mulher específica não são óbvios, mas em se tratando de um tipo de personalidade tão peculiar, não nos atrevemos a perguntar, ainda que a pergunta permaneça incomodando o leitor atento o tempo todo. Munido de dados básicos, José passa a investigar por conta própria a vida da tal mulher, abandonando as fichas das celebridades. Tal como um detetive, a investigação de José transgride as regras básicas do respeito ao anonimato da mulher, rompendo as rígidas normas da Conservatória.

O senhor José é um homem de 52 anos. Suas semelhanças com o Raimundo Silva, do História do Cerco de Lisboa, não param por ai. Se por um lado o revisor dos textos, Raimundo, decide, a partir de um NÃO adicionado no documento, mudar toda a história de Portugal, o nosso José, a seu modo, passa também a mostrar o absurdo da burocracia que nos devora lentamente, imperceptívelmente, a partir do verbete sobre a vida de uma mulher desconhecida cujo nome consta nos registros da Conservatória. Um simples verbete.

A princípio percebe-se que no trabalho, assim como na vida, José é um tipo introspectivo e solitário, com algo de crédulo. Sua submissão não é apenas à grande estrutura burocrática imposta pela Conservatória, mas a sua própria ética de trabalho: interna e vocacional. Com tal propensão, Sr. José chega a ponto de nunca ficar doente, nunca faltar e principalmente, nunca desobedecer as ordens de superiores. Ou seja, um homem que tem tudo para chegar longe, ou nunca sair do lugar, pois essa assiduidade não se traduz em adulação. Não foi o outro Chico que disse, vence na vida quem diz sim?

Tal como dito, o Sr. José, amanuense e auxiliar de escrita, parte à procura de uma mulher desconhecida de maneira peculiar. Homem das antigas, prefere começar pelas beiras, por baixo, desde o local de nascimento, passando pela escola, passando por uma madrinha ansiã. Seu roteiro de busca começa pelo endereço que consta na certidão de nascimento da mulher. Sem sucesso, vai ao endereço contido em sua ficha de dados, indaga os vizinhos sobre o possível paradeiro da antiga moradora. Chega até a madrinha da mulher desconhecida, chamada apenas "a senhora do rés-do-chão", que lhe sugere o óbvio: procurar na lista telefônica. José rejeita tal opinião e decide procurar na escola onde ela estudara.
Esse impulso incontrolável pela descoberta de algo sobre a vida da moça tira-lhe o sono, e o faz perseguir um labirinto confuso dentro e fora da sua cabeça. Certas horas Saramago faz crer que o seu protagonista sofre de alguma demência obsessiva, desfazendo-a logo, tal como Dostoievski o faz, nas páginas seguintes, por algum episódio errático e inusitado imposto pelo acaso, ou pela providência burocrática da Conservatória Geral. Faz-nos perguntar sobre onde está a anormalidade, se em nós leitores que cremos no mundo que vemos, se em José em sua busca absurda e inexplicável, ou se no mundo em que vivemos. A pergunta não é tão retórica frente as situações insólitas que cercam a investigação. Uma delas é a série de desencontros impostas à procura de José. A propósito, sua procura se concentra em quatro lugares kafkanianos: A Conservatória, onde estão divididas as fichas dos vivos e dos mortos; a cidade onde sempre chove; a escola onde até então José acreditasse que a mulher tivesse apenas estudado na infância; e finalmente o mais obvio de todos, o cemitério.

Como dito, a narrativa percorre quatro grandes espaços: a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério. Ou labirintos. No último, José constata que o objeto que o levou à tamanha transformação não existe. A mulher desconhecida está morta. Suicidara-se poucos dias antes. A procura por ela, então, tornaria-se inútil, caso José fosse um conformista e Saramago um escritor qualquer. Ao contrário, a insistência na procura torna-se insana, pois decide continuar procurando elementos de sua vida e de sua morte, esquecendo-se ou ignorando volutariamente a rigorosa obediência às normas da Conservatória. Deixa a barba por fazer, descuida-se da limpeza do seu quarto e cogita até uma possível paixão imaginária e irreal pela mulher que sabe-se agora ser professora de matemática, funcionária da escola onde José fora procurá-la como aluna e suicida.

O tom alegórico de boa parte destes espaços percorridos por José está em sua estrutura labiríntica, no tom pesado de uma cidade onde sempre chove, no jogo de desvelamento e ocultamento, no absurdo do cotidiano, no uso de imagens do inconsciente que perpassam pesadelos e monstros mitológicos jogando com a temerária idéia não da morte em si, mas com a idéia cruel que a morte traz a iminência do desaparecimento, do esquecimento. Alegorias como as de que uma vez dentro do recinto da Conservatoria Geral, apenas é possível retornar à sua saída ou ao presente com o fio de Ariadne amarrado ao pé. A idéia do labirinto transcorre em todo o romance. A Conservatória é um labirinto de arquivos e gavetas onde, para penetrar nos seus corredores, é necessário desenrolar um fio de Ariadne. Outro labirinto maior é o cemitério onde o Sr. José vai procurar, quase no final da estória, o túmulo da mulher desconhecida. É absurdo cogitar isso, mas Saramago nos induz a pensar que enquanto o cemitério é o labirinto dos mortos, a Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos. Nos induz de maneira um tanto estranha, mas eficiente, do ponto de vista narrativo. No cemitério, o maior dos labirintos, o Sr. José caminha por longas horas em sua solitária busca. Cansa-se e adormece. Tem um sonho. "sonho estranho, enigmático." Desperta "angustiado, alagado de suor." Sonha com um pastor de ovelhas que zela pelos mortos, uma espécie de Omulu, que eventualmente muda os números das tumbas.
Penso: em várias religiões, profanar os campos sagrados dos mortos dá uma encrenca danada no além. Saramago vai ao limite para provar-nos o caos onde estamos imersos. Nas palavras do pastor: "Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, [ assim ], ficaram definitivamente livres de importunações."

Chega-se ao fim do livro sem saber específicamete os motivos que levaram José a investigar a vida daquela mulher. Mas, a essa altura pouco importa, pois já estamos perdidos no meio do labirinto contruído por Saramago. Após a experiência surreal, de volta à Conservatória Geral tenta retomar suas atividades. Ali, constata a cumplicidade do Conservador Geral às suas aventuras. Este lhe devolve a chave que permite o livre acesso ao grande prédio. O chefe reconhecia o absurdo onde estavam ambos imersos e talvez por isso, recentemente, sem explicações maiores, tal como no Livro de Areia de Borges, o Conservador ordenou aos funcionários a junção dos arquivos dos mortos e dos vivos, sem qualquer distinção. O chefe sabia de tudo, das visitas à casa da “senhora do rés-do-chão", à casa dos pais da moça, das investigações.... Nesse ponto o chefe da Conservatória e o pastor agem de maneira semelhante... José então pega a sua lanterna, ata o fio de Ariadne ao tornozelo e dirige-se para a escuridão dos arquivos.
Um livro que nos fará pensar duas vezes antes de entrar num cartório. Voilá caro K.
Música do dia. Everytime we say goodbye. John Coltrane. My Favorite Things

2 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Caro amigo Chico, não tive acesso à Internet na última semana por opção de férias e acabei perdendo alguns artigos de extrema importância, como é o caso dessa sua resenha que está simplesmente perfeita, tanto no nível de profundidade quanto de originalidade.

Se me permite o elogio quero deixar claro que sou fã das suas escolhas. Um blog que não tem aqueles penduricalhos piscantes nas laterais e nem anúncios google, só bons textos! Ótimo, parabéns e continue assim.

Nota: Estou ansioso para ler a sua resenha sobre "Meu Nome é Vermelho"!

ilusão da semelhança disse...

Grande Kovacs, fique certo que a admiracao eh mutua. Nestes ultimos dias andei bastante ocupado, mas voce sabe que sempre que posso vou ao teu mundo para ver as novidades literarias - e os debates, sempre de alto nivel entre gente que gosta de literatura sem academicismos tampouco aqueles jargoes do jornalismo cultural rastape.

Viajo por horas nos teus arquivos antigos. As vezes os imprimo para ler e reler. Rapaz, voce escreve bem as pampas, cita passagens memoraveis, e fique certo que se eu estivesse no Rio, nos encontrariamos para tomar um chopp e conversar por horas sobre cinema e literatura.

Grande abraco e fique certo que esse sentimento eh reciproco, meu chapa. Chico.

nota. tenho que sentar com calma para resenhar o Pamuk.