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JOSE AGRIPPINO DE PAULA

 




Título José Agrippino de Paula 
Dimensões: 9x9cm
Data: Dezembro de 2021
Técnica: Xilogravura


Figura de difícil definição, José Agrippino de Paula e Silva é um desses personagens que passam pelo cenário cultural de um país, sem que se saiba bem se esteve mais perto da margem da genialidade ou da porralouquice completa. Nasceu em 13 de junho de 1937. Como filho típico da classe média paulistana, tinha tudo para dar certo nesses moldes. Filho do advogado Oscavo de Paula e Silva e da professora Claudemira Vasconcelos, viveu seus primeiros anos em Itu, no interior do estado. Retornando para São Paulo apenas em 1942.

José Agrippino fez seus primeiros estudos no Ginásio do estado, no bairro da Lapa, onde a família morava. Formou-se, então, no científico em 1955, e no ano seguinte ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). O pai morre quando Agripino tinha 20 anos. O fato abalou a família profundamente e Agrippino pede uma inexplicável transferência para a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro.
 
No Rio de Janeiro, envolve-se mais profundamente com o pessoal do teatro, mesmo que ainda que em São Paulo já começara uma amizade com o cenógrafo Flávio Império. Na nova faculdade assiste as aulas do recém chegado ao Brasil, diretor italiano Gianni Ratto.  Ratto dividia seu tempo com as aulas de teatro - nas quais Agrippino se engajou - e as montagens teatrais. Quando em 1959, Agrippino adapta romance Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoievski, seu mentor Ratto já trazia na bagagem montagens como Mambembe de Arthur Azevedo, A Pulga Atrás da Orelha de Georges Feydeau e Ilha dos Papagaios de Sérgio Tófano  -  ambos com Fernanda Montenegro no elenco; além de Moratória de Jorge de Andrade.
 
Na montagem de Crime e Castigo, Agrippino interpreta o protagonista Raskólnikov, mas também assina a Direção, Montagem e Cenário, no espetáculo que teve palco no teatro da faculdade, no bairro da Urca. No ano seguinte já formado arquiteto, passa a fazer alguns trabalhos para a televisão, além de iniciar os rascunhos de Lugar Público – livro que seria lançado seis anos depois com a orelha assinada por Carlos Heitor Cony. 
 
Mas a vida adulta de recém formado não foi generosa nos 5 anos seguintes que passou Rio de Janeiro. Retorna para São Paulo em 1965, com uma mão na frente outra atrás, no mesmo ano em que é lançado Lugar Público. Nesse tempo, conhece a coreógrafa Maria Esther Stockler. Mesmo com os apertos da falta de dinheiro, produz incessantemente nesses cinco anos seguintes. Mesmo que a qualidade dessa produção seja duvidosa, entre altos e baixos, Agrippino publica As Nações Unidas em 1966, e no ano seguinte publica um de seus clássicos o romance PanAmérica. Também é dessa época a fundação do Grupo Sonda, um misto de grupo de teatro, dança, meditação e porralouquice que junto a Maria Esther seria o responsável por criar uma órbita de criação constante, doideiras psicodélicas e inovação estética. Ainda nesse período montaram Tarzan Tereceiro Mundo, o Mustang Hibernado. Logo depois o casal se muda para o Rio de Janeiro e começam uma parceria com o grupo de rock Os Mutantes, para a montagem do espetáculo O Planeta dos Mutantes.
 
Os roteiros e enredos, dos livros e dos filmes eram tão loucos que era possível ver o herói dividir a cena com John Wayne e travar duelo de western, fugir do Dops, encontra-se com Che Guevara, dar uma trepada com Marilyn Monroe e até salvar o planeta, que bem podia estar sendo ameaçado por anões verdes que saem do útero da atriz americana. Se você acha que isso é impossível, até no Cinema, você está redondamente enganado/a. Este é o enredo de PanAmérica!
 
Em 1968, Agrippino dirige o filme Hitler Terceiro Mundo, uma obra completamente experimental, quase tão sem nexo, quanto as anteriores. O jovem diretor Jorge Bodanzky, que conhecia Agrippino desde essa época, conta que Agrippino tinhas as idéias, mas não tinha a menor noção técnica para realizar um filme. Mesmo assim, como tinha simpatizado com Agrippino e como já frequentava as discussões filosóficas do Sonda, resolveu ajudá-lo na realização técnica. Bodanzky tinha acabado de voltar da Alemanha onde tinha ido estudar Cinema no Instituto de Cinema Ulm. No retorno, já havia trabalhando com o diretor Antunes Filho no filme Compasso de Espera – que aliás, fora censurado no ano de 1969, sendo liberado apenas 3 anos depois - e na filmagem da peça Balcão, baseada na obra de Jean Genet, com produção de Ruth Escobar.
 
Bodanzky, apesar de figurar nos créditos do filme como Diretor de Fotografia, junto a Maria Esther, foram os grandes responsáveis pela conclusão do filme, que contava com o esforço do pessoal do Grupo Sonda, além de Ruth Escobar, Eugênio Kusnet e Jô Soares, que já fazia sucesso na televisão com Família Trapo. Jorge coletava restos de filmes que não tinham sido utilizados em outras montagens, juntava tudo em sacos pretos e usava-os em sequências curtas na montagem do filme de Agrippino – prática aliás, muito comum no grupo do Cinema Marginal.
 
O resultado, foi um filme esteticamente estranho e aparentemente genial. Com cenas inusitadas, filmadas num necrotério, com mortos reais, ou com um obeso Jô Soares vomitando – um vômito real - num restaurante japonês, depois de tanto comer, o filme torna-se um ícone cult da geração. O filme ainda conta com uma cena onde Hitler dialoga, com um áudio editado ao contrário, como no som de um disco girado no anti-horário, em que críticos a consideram genial – mas que de fato, pode ter sido uma afronta do estúdio de montagem de áudio, por não receber os honorários. Enfim, coisas de Agrippino.
 
Entre 1969 e 1970, o casal ainda produz o espetáculo Rito de Amor Selvagem, mas a coisa muda de figura a partir dos anos de 1970. A essa altura, o casal vivia no bairro de classe media alta de Perdizes, em São Paulo, numa casa imensa. Uma espécie de BBB sem voyeurs, onde rolavam festas psicodélicas. Por conta da Ditadura, ou não, recebia constantes batidas policiais. Na casa vivam Agrippino, Maria Esther e a amiga Maria do Rosário, pivô das brigas constantes do casal. Os amigos dizem que depois dessas invasões policiais Agripino nunca mais foi o mesmo, e que seus primeiros sintomas de esquizofrenia aconteceram após esse episódio dramático. Carlos Heitor Cony, contesta. O escritor afirma que Agrippino já não era um camarada muito bem da bola na época do lançamento de Lugar Público. Fato é que numa dessas festas regadas a doideiras e ácidos, Agrippino ouve uma voz de prisão. Mas nao era dentro de uma viagem. E era real.  No dia seguinte vira capa do jornal Última Hora, numa foto algemado e com olhar de pavor.
 
Maria Esther, dizem, era uma mulher forte e decidida, e assim como Agrippino, teve forte influência sobre os tropicalistas. Caetano Veloso, inclusive, diz em seu livro Verdade Tropical que ela revolucionou seu gestual cênico no palco, chegando a participar de O Cinema Falado. O problema é que a barra pesava por conta da Ditadura, e da presença cada vez mais constante de Maria do Rosário, e eles tiveram que se autoexilar. De repente Maria Esther aparece com um traveler’s check. Agrippino, Esther e o irmão de Esther, o ator José Ramalho, vão embora.
 
Passam a década de 1970 viajando pelo mundo e produzindo pequenos documentários, com uma câmera super-8. Nessa época, o escritor dedica-se ao romance Terracéu, sobre o qual há pouquíssimas informações. Acredita-se inclusive que foi perdido com uma das malas do escritor, numa passagem por Londres. Enfim, coisa de Agrippino. Passaram por Mali, Senegal, Marrocos, filmando coreografias de danças rituais, e tudo que aparecia pela frente.
 
Mas de onde vinha tanto dinheiro, quando, no Brasil, eles não tinham sequer dinheiro para produzir seus filmes experimentais? Simples: Maria Esther, nos anos 1970, além de talentosa coreógrafa, ainda era a herdeira de um poderoso grupo financeiro, o Banco Haspa, instituição que iria falir em 1983, mas que nesta época tinha o todo poderoso Delfim Neto como um dos sócios das contas de poupança. Não se sabe se por medo, ou por uma estratégia da família de mandar aquela turma estranha para longe, antes que aquilo pudesse respingar nos negócios, Maria Esther, o irmão e o companheiro, partem para o Continente Africano, com uma câmera na mão, muitas idéias na cabeça e um generoso cheque de 5 mil dólares.  
 
Retornaram ao Brasil indo morar numa praia hippie na Bahia, fora dos holofotes. Ali, ainda produzem o curta Céu Sobre Água, que foi o último filme do autor, onde Maria Esther aparece em cenas realmente poéticas, boiando grávida na água. Nessa década Agrippino teve duas filhas, uma com Maria Esther (Manhã, sim colocou o nome na filha de Manhã) e outra do relacionamento com justamente Maria do Rosário (Chara, sim Chara, uma analogia ao nome do cigarro de maconha, chamado “charo”). Pelo abuso de drogas ou não, seus sintomas esquizofrênicos foram se agravando, e o casamento acabou pouco tempo depois do nascimento da filha do casal. Cada um foi para seu lado e a menina, ainda pequena foi ser criada pelo irmão de Agrippino.
Em 1979, volta a morar com Claudemira, numa convivência muitíssimo difícil, inclusive com episódios de surtos onde quebrava os objetos da casa e agredia fisicamente a mãe que vem a falecer 1988, depois do relançamento de PanAmérica e de uma mostra de filmes realizados por Agrippino. Ambas, as quais, o escritor não compareceu. Neste mesmo ano foi lançado um documentário extremamente poético chamado Sinfonia PanAmérica. Agrippino já alheio a tudo, morando em Embu, se isolava cada vez mais.
 
Por essas e por outras, importantes escritores como Nelson Oliveira e até mesmo Sérgio Sant’anna reverenciaram e prestaram constantes homenagens à obra Lugar Público e a sua reinvenção da narrativa fragmentada do nouveau roman, pautado no objetivismo e no antipsicologismo dos personagens -  sem aquela narrativa chata que caracteriza o gênero. Sérgio Sant´anna em artigo no Caderno Mais!  do jornal Folha de São Paulo (em fevereiro de 1997) diz literalmente que a literatura de Agrippino é “exasperadamente reiterativa e antipsicológica” e se pergunta: “Subliteratura? Não: superliteratura (a fronteira é tênue, bicho)”
 
Por essas e por outras, em Muito dentro da Estrela Azulada, disco de 1978, Caetano diz indiretamente, claro, que graças a Agrippino, os novos baianos passeiam na garoa paulista e que as Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo de Zumbi, mexem fundo naquilo que acontece no seu coração quando cruza a Ipiranga e a avenida São João. Mais claro que isso, impossível. Ou não.
 
O chamado “guru do Tropicalismo” já estava completamente pancado da cabeça, desde a década de 1980. Diagnosticado com esquizofrenia, se isolou em na cidade de Embu das Artes, distante 22 quilômentros do Centro de São Paulo. A casa não tinha nem rádio nem televisão   - que o escritor quebrou provavelmente numa neura, na época em que a mãe estava viva. O escritor passava boa parte do dia enrolado em trapos e mantas velhas, na varanda de sua casa, olhando para a rua e escrevendo. Recebia pouquíssimas visitas, um ou outro documentarista ou estudante de graduação querendo resgatar algo do buraco negro que se tornou sua cabeça. Escreveu até morrer de infarto, aos 69 anos, em julho de 2007, deixando 173 cadernos numerados, e um romance inédito, chamado Os Favorecidos de Madame Estereofônica. Enfim, coisas do Agrippino.  


HILDA HIRST

 



Título: Hilda Hirst
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Dezembro de 2021
  
 

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 1930. Foi poeta, cronista e dramaturga.  Era a filha única de um fazendeiro de café, jornalista e ensaísta de Jaú, interior paulista, Apolônio de Almeida Prado Hirst. Sua mãe, Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado, já tinha um filho de um casamento anterior, algo raro na época, e logo após o nascimento de Hilda, separa-se de Apolônio, que já apresentava os primeiros sinais de esquizofrenia.

Estudou em colégio interno, Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, onde cursou o primário e o ginasial e foi considerada uma aluna brilhante. Passou todo o período da infância sem saber dos problemas neurológicos do pai.  Em 1945 iniciou o curso secundário no Instituto Mackenzie, uma escola igualmente rígida, fundada por presbiterianos. Finalmente em 1948 entrou para a Faculdade de Direito da USP, onde conheceu Lygia Fagundes Telles, de quem seria amiga por toda a vida.

Data deste período a publicação de seu primeiro livro. Aos 20 anos estreia na literatura com o livro de poemas Presságio (1950), em publicação da Revista dos Tribunais. Esse livro junto com outros dois – Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1955) –, faria parte dos livros de formação inicial de Hilst, o seu primeiro conjunto de uma obra maior. A partir de 1951, também, ano em que publicou seu segundo livro de poesia, Balada de Alzira, foi nomeada curadora do pai. Concluiu o curso de Direito em 1952.

Teve duas paixões na vida. Uma real: Júlio de Mesquita Neto, antigo dono do jornal “O Estado de São Paulo” – com quem se correspondeu, conviveu e para quem dedicou, em segredo, o livro “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão”. A outra, um tanto platônica, diga-se de passagem.  Chegou a namorar o ator americano Dean Martin, ainda quando este estava casado com Jeanne Biegger. Dean tinha 3 filhos e Hilda não queria complicações em sua vida. Ela dizia que namorou Dean Martin só para conhecer Marlon Brando. E como o namorado demorava a apresentá-los, numa noite, tomou um porre, subornou o porteiro do hotel e bateu na porta do quarto onde o ator estava hospedado. Brando abriu a porta, segundo a poetisa, com um “belo robe de seda” e, com muita educação, perguntou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Curiosidades à parte, Hilda deu meia-volta e foi embora. No mesmo ano Brando tinha sido indicado para o Oscar como melhor ator, pelo filme Sayonara. E Hilda foi preparar seu Roteiro do Silêncio, que publicaria dois anos mais tarde.

 Hilda decide afastar-se da vida agitada de São Paulo e, em 1964, passa a viver na sede da fazenda de sua mãe, próximo a Campinas. No mesmo ano seu pai morre. Projetou sua própria casa numa parte daquela propriedade, perto de uma figueira bicentenária.  E em 1966, finalmente, Hilda muda-se para a mítica Casa do Sol, planejada detalhadamente para ser uma residência de escritores, hospedagem para amigos, biblioteca de autores clássicos, e refúgio. Pela casa do Sol passaram Lygia Fagundes Teles, Caio Fernando Abreu, mas não apenas escritores. Pintores como Jurandy Valença, os críticos literários Leo Gilson Ribeiro e Nelly Novaes Coelho; a artista visual Maria Bonomi;  Gilka Machado, os físicos Newton Bernardes e Cesar Lattes, atores como o Raul Cortez, Cacilda Becker, Tarcisio Meira, Eva Vilma, dentre outros.  

A despeito da exposição plena em suas obras, teve uma discreta vida privada. Na década de 1960 conhece o escultor Dante Casarini - então funcionário público e gestor de negócios do pai -  com quem, mesmo sem casar-se oficialmente, nem a princípio dividir o mesmo teto, se relacionaria por mais de 35 anos.

Foi uma escritora e poeta que tocou em assuntos tidos como socialmente controversos, como o amor entre pessoas do mesmo sexo. Confessou em entrevista para Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Sales, que seu trabalho sempre buscou, essencialmente, retratar a difícil relação entre Deus e o homem. Dizia ela que o que a inquietava era o problema da morte -  morte não no sentido metafísico de tudo quanto possa advir depois de acontecida. Ainda segundo ela, sua poesia é a não aceitação de que um dia a vida se diluirá e, com ela, o amor, as emoções do sonho e toda essa força em potencial que vive dentro de nós.

Em 1974, após sua experiência escrevendo para teatro e prosa, Hilda Hilst volta a publicar poemas.  Lança Júbilo, memória, noviciado da paixão. Odes mínimas (1980), seria ilustrado com aquarelas produzidas pela própria autora. Na década de 1980, Hilst busca por temas metafísicos, em especial os da morte e o da espiritualidade - desde o fim da década de 1970 dizia ouvir vozes dos mortos na Casa do Sol. Cantares de perda e predileção (1983) e Poemas malditos, gozosos e devotos (1984) são exemplos dessa fase.  Esta fase se alonga até o início dos anos 1990.  E lança sete outras obras:  Do desejo (1992). Nele estão reunidos: Sobre a tua grande face (1986), Amavisse (1989), Via espessa (1985), Via vazia (1989), Alcoólicas (1990), Do desejo (1992) e Da noite (1992), fechando o ciclo com Bufólicas (1992) e Cantares do sem nome e de partidas (1995).

Seus poemas produzidos por mais de 45 anos, eram artefatos de grande experimentação linguística e com intensa pesquisa, mantendo uma voz autoral independente. Estudada na academia ainda em vida, ganha fama no grande público como poeta de muitos adjetivos algumas vezes redutores, mas não equivocados: Hilda erótica e desbocada, Hilda provocadora e obscena. Hilda meio louca, eremita, arredia, indomesticável. Essa aura parece dizer mais sobre aqueles que a tentaram rotulá-la do que sobre a própria Hilda ou seu trabalho, ao qual, como o leitor sempre pode atestar, em suas leituras, tirando suas próprias conclusões, não falta rigor.

No final da vida, a Casa do Sol vivia cercada por centenas cachorros, dos quais ela tratava pelo nome individualmente. Esse foi um processo de autoconstrução de sua imagem. A Hilda reclusa da Casa do Sol, com dezenas de cães. A Hilda, que apareceu no Fantástico nos anos 1970 dizendo que gravava as vozes dos mortos.  A escritora, que já tinha deficiências crônicas cardíaca e pulmonar, morreu em fevereiro de 2004, após complicações decorrentes de uma cirurgia de fratura do fêmur. 

FLORBELA ESPANCA

 








Título: FLORBELA ESPANCA

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 

 

Florbela Espanca matou-se no dia em que fez 36 anos.  Foi tão improvável, que sua poesia não se encaixa nos moldes da poesia portuguesa da época. Flor Bela de Alma da Conceição nasceu em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894 e teve uma infância tumultuada pelo fato de o pai não reconhecer a paternidade da menina, que tinha como mãe, uma empregada doméstica de Vila Viçosa. Mas contraditoriamente, é o pai que se encarrega da educação da menina, quando a mãe de Flor Bela morre aos 29 anos.

Os seus primeiros versos datam dos sete anos, e escreveu o primeiro conto ainda na escola primária. Concluiu os estudos de licenciatura em 1912 e, nesse mesmo ano, casou-se cedo com Alberto Moutinho, e abriu um colégio e deu aulas de francês e inglês.

A poetisa reuniu uma seleção da sua produção poética desde 1915, inaugurando assim o projeto Trocando Olhares. Tratava-se de uma coletânea de oitenta e cinco poemas e três contos que foram o ponto de partida para futuras publicações.  Nesse mesmo ano começa a escrever para revistas de moda e de costumes como a Modas & Bordados e O Século.


Aos 22 anos inscreveu-se em Direito na Universidade de Lisboa, mudando-se para a capital, onde teve os primeiros contatos com os meios literários da época. Sendo que era uma das 14 mulheres entre mais de 300 alunos homens. Nesse período engravidou e perdeu o feto num abroto involuntário que afetou ovários e parte dos pulmões. Repousou durante aquele ano e começa a apresentar seus primeiros sintomas de neuroses.

Frequentava o terceiro ano do curso quando, em 1919, publicou a sua obra de estreia, Livro de Mágoas. Aos 27 anos divorciou-se e se casou com António Guimarães, de quem também se divorciará, em 1924, após mais um aborto. Decide tratar-se em Guimarães, e ali já começa a viver  com o médico Mário Lage – essa união foi a única que foi realizada na Igreja.

No ano anterior publicara o seu segundo título, Soror Saudade -  que tinha título original de Claustro das Quimeras. Não apenas mudou o título, como a ordem dos poemas, já que era parecidíssimo com um livro homônimo de Alfredo Pimenta. A partir daí já não conseguirá encontrar editor para o terceiro, tendo Charneca em Flor, publicado postumamente, em 1931, pelo professor italiano Guido Batelli.

Com 3 casamentos e 2 divórcios, algo bastante incomum para a época, Florbela Espanca passa a ter crises e a saúde vai pouco a pouco fragilizando. Nestes altos e baixos emocionais, o pai se afastara por não concordar com seu segundo divórcio, e o facto de ter ostensivamente vivido com os seus dois últimos maridos antes de se casar com eles, não lhe facilitou decerto a vida na sociedade patriarcal da época, impossibilitando mesmo a edição de seus livros.

A morte precoce do irmão, “esmagou o coração dentro de seu peito”.  O fato provavelmente contribuiu para agravar ainda mais seu já frágil estado de saúde, marcado por problemas pulmonares, pelas sequelas de dois abortos involuntários e por uma provável doença mental hereditária, que lhe provocava insónias, enxaquecas e esgotamentos físicos e mentais frequentes. Abandonara a poesia e caía em depressão, ainda tentando traduzir alguns autores franceses. “Um ente de paixão e sacrifício, de sofrimentos cheio” eis Florbela, que ao final da vida começou a consumir um barbitúrico, Veronal, ao qual depois recorreu para se matar.

Os sonetos de Florbela não tardariam muito, após a morte da autora, a tornar-se um caso invulgar de sucesso público, seja pela luta feminista, seja ela representação forte e intensa do papel da mulher na sociedade patriarcal.  

Postumamente, sai um primeiro volume de correspondência e o livro de contos As Máscaras do Destino. Em 1934, são publicados os Sonetos Completos, acrescidos do conjunto inédito Reliquiae. Mas é só nos anos 80 que o trabalho de edição da obra de Florbela se conclui, com a edição de Diário do Último Ano, do livro de contos O Dominó Preto e, finalmente, da edição da sua obra completa, organizada por Rui Guedes a partir dos manuscritos da autora.

Alguns críticos viam sua poesia como fácil e anacrônica, talvez não necessariamente por isso seja melhor acolhida e mais lida no Brasil que em Portugal. Sua escrita é marcada por um certo exagero emotivo e confessional, mas por ser a voz do que era silenciado do desejo feminino em seu tempo passa a ser uma poetisa com profundas raízes no movimento feminista português. Ao lado de Judith Teixeira, com quem dividia páginas na Revista Europa, também publicou os seus livros nos anos vinte. Tal como Florbela, Judith era filha ilegítima, e também se divorciou, e com poesia frontalmente lésbica foi censurada pelo regime e marcou sua época. Entretanto, em vida, não se sabe de que tenha feito parte de nenhum grupo literário ou de poesias. Sempre publicou sua produção poética, por conta própria

 



PAULO LEMINSKI

 


Título: Paulo Leminski

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Ponta seca em acrílico

Data: Janeiro 2022

 

 

PAULO LEMINSKI

Leminski é transparente. É exatamente isso que é visto e lido. Um maldito queridinho. Óculos, bigode, e peito aberto. Pouco de sorrisos. E com as poucas palavras de seus haicais desconstruía mundos e erguia imagens. Era músico, compositor, escritor, tradutor, crítico literário, e lutador de judô. Além disso, atuou profissionalmente como professor de história e redação em cursos preparatórios, também participou como diretor de criação e redator em algumas agências de publicidade. Como tradutor trabalhou com obras de autores como James Joyce, John Fante e Samuel Beckett.

Paulo Leminski Filho nasceu em agosto 1944. Se orgulhava de sua ascendência polonesa e africana, e assim como Snege era curitibano, poeta maldito profissional, e também amador.

Em 1958, aos quatorze anos, foi para o Mosteiro de São Bento em São Paulo estudar para ser padre, ou algo similar, e a experiência não foi das mais empolgantes, retornando um ano mais tarde para Curitiba e terminando seus estudos num colégio estadual. Anos mais tarde participou do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda em Belo Horizonte, onde conheceu Haroldo de Campos, amigo e parceiro em várias obras.

Com a também poetisa Alice Ruiz, casou-se em 1968. Recém casados, Leminski e Alice foram morar com a primeira mulher do poeta e seu namorado, em uma espécie de comunidade hippie, num apartamento em Curitiba.  Ficaram lá por mais de um ano, e só saíram com a chegada do primeiro filho. Miguel Ângelo, o primogênito, viria a falecer com dez anos de idade, vítima de um linfoma. E até recentemente, sabia-se que Leminski e Alice, casados por mais de 20 anos, também tiveram duas meninas, Áurea e Estrela Ruiz Leminski. Casado, com filho pequeno e contas a pagar, entre 1969 a 1970, Leminski decidiu morar no Rio de Janeiro retornando a Curitiba para se tornar diretor de criação e redator publicitário.

Detentor de uma poesia marcante, jogava com a linguagem usando trocadilhos, ditados populares e influência de haicais, além de abusar de gírias e palavrões. Estudioso da cultura japonesa, chegou a publicar uma biografia do poeta japonês Matsuo Bashô. Como ele mesmo se definia, considerava-se um “anarquista zen”, um “bandido que sabia latim”, um “canalha erudito”.

Leminski, como letrista, teve parceiras variadas com músicos de diversos matizes. Escreveu letras com Caetano Veloso, o grupo A Cor do Som, conviveu com Gilberto Gil, Moraes Moreira, Itamar Assunção, Jose Miguel Wisnik, dentre muitos outros. Apenas no fim da vida, 1987 e 1989 foi colunista do Jornal de Vanguarda na rede Bandeirantes de Televisão.

Pode-se dizer que a carreira começou nos anos de 1970, quando teve poemas e textos publicados em diversas revistas - como Corpo EstranhoMuda CódigoRaposa.  Leminski publicou o seu primeiro livro - o romance Catatau - em 1976. Também lançou algumas poesias na revista Invenção, do movimento concretista. A partir de então a sua produção literária seguiu de vento em popa. Mas nesse mesmo ano acontece um dos episódios mais obscuros de sua biografia.

Em 2001 foi lançada uma das mais completas biografia de Leminski, O Bandido Que Sabia Latim, do biógrafo Toninho Vaz. Sua esposa Alice Ruiz boicotara sua reedição, ainda que feita com auxílio das informações da própria Alice, e a ela dedicada. A viúva e as duas filhas se opunham à publicação da biografia de um Leminski real. Alcoólatra como o pai, mal asseado, dentes estragados, nu e constantemente atormentado pelo suicídio do irmão e pelas ameaças de separação de Alice. Além disso, a biografia revela os detalhes de um filho bastardo que Leminski chegou a registrar com a mãe, mas que misteriosamente, no ano de 1976 passou a se chamar Luciano da Costa.  

Como a vida imita a arte, talvez, não à toa, Leminski tenha escrito, em poema musicado para Itamar Assunção, “um homem com uma dor é muito mais elegante, como andando assim de lado, chegasse mais adiante.” Alma feita de dor e de poesia. 

Leminski disse
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

[…]

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra (Por favor, por favor)
Ela é tudo que me sobra (Sofrer vai ser a minha última obra)
Sofrer vai ser a minha última obra (Ela é tudo que me sobra)

 

A dor do agravamento de uma cirrose hepática que o acompanhou por anos cessou no 7 de junho de 1989.