Thanksgiving

Já frequentei Thanksgivings bizarros, com gente comendo sem parar e falando aos berros, rindo aos berros, agradecendo aos berros com a pança cheia em cenários que, se fardados, os personagens seriam autênticas figuras de George Grosz. Essas experências traumatizantes sempre me levaram a certa cautela em relação a essas celebrações de agradecimento coletivo. Mas não posso me queixar dos meus dois últimos.

A casa esteve cheia ontem. Comida medida, familia medida, amigos medidos, criancas desmedidas pela casa e boas conversas. Lembrei-me da casa de meus pais, sempre marcada pelas mesmas caraterísticas, mas com umas peculiaridades. Gente muito diferente vinha almocar no nosso pequeno apartamento, e deixavam-se ficar, e fazia-se café, e tirava-se a mesa do almoço, e lavava-se a louça, e começava-se um carteado que atravessava a tarde e a noite. Os adultos à Brisca, um jogo que em tese, quando jogado em dupla, ganha quem trapaceia mais. As criancas, um jogo menos malicioso: o cinquillo, que nem me lembro mais como se joga. Meus pais tinham amigos interessantes. Um primo de meu pai tinha, quando jovem, um bigodinho de cafetão; outro tivera um bar nas Laranjeiras, dentro do Fluminense; seu irmão casara-se com uma cantora zaragosana que todos chamavam, mesmo depois de velha e casada ha 30 anos, de "puta zaragosana"; um outro amigo, meio mentiroso, estivera na Legião Estrangeira servindo no Marrocos e depois viria a se tornar socialista; outro da Marinha Mercante; e outro estudara para padre e na juventude dividira um quarto com meu pai no lugar mais puro do Rio de Janeiro, na esquina da rua do Lavradio com Men de Sá - isso entre os anos 40 e 50 quando ali frequentavam figuras do calibre de Madame Satã e Aracy de Almeida. O dono do bar do Fluminense morreu. A viúva continuou frequentando a casa. O primo cafageste, solteirão, vive no apartamento, so come frango com batatas e tem uma vida de rei aos seus oitenta anos. Não sei como o velho, falando tão pouco, conseguia orbitar nessa fauna. O fato é que, sob o mesmo teto, todos ali, mesmo que diferentes, riam e voltavam.

Ontem esse gosto nostálgico reverberou aqui com cheiro de uma comida diferente, conversa de parentes, riso de amigos e criancas pela casa. Aliás, neste ano não veio muita gente. E é muito estranho que uma casa de pobre, onde não ha cadeiras suficientes, onde os pratos não formam jogo, os copos de vinho e de àgua acabam sendo os mesmos, onde só ha livros, filmes e discos, seja frequentada por uma fauna - ainda que não tão interessante como a da casa dos velhos - tão diversa, pois vez por outra aparecem um diplomata perdido, um economista pálido, um ex-ministro esquecido. À mesa de hoje não há primos cafagestes, marinheiros, mercenários da étrangère, putas zaragosanas, jogadores trapaceiros, mas quase me passou imperceptível, por serem tão familiares, que sob o mesmo teto, havia ontem um judeu e uma palestina rindo e brindando com a mesma Guaraciaba envelhecida que o Viva me presenteara. A mesa posta, a bebida escolhida, o molho de cerejas, as batatas, a carne, cuja textura e sabor comprovei antes de fatiá-la mas enfim, a não deixar passar em branco, com certa tristeza, que a casa de hoje é bem menos frequentada que a casa dos meus velhos.

Ontem não houve filme. Com a casa calma e em silêncio. Um disco da Olivia Byington cantando a Aracy, bem baixinho, pois a familia, o Gabriel, e os amigos que entornaram demasiado para dirigir, ja dormiam. Me instalei num canto da poltrona, abri dois contos do Cortazar, que já com a casa calma, fui lendo e relendo. O primeiro, eu lera há anos atrás. El Perseguidor. O segundo, acabei lendo pela primeira vez, Las Armas Secretas.

O Perseguidor é um conto interessante. É uma espécie de ode ao Charlie Parker, que na estória se chama Johnny Carter. Não me lembro bem se foi Onésimo, ou se li em algum lugar, que o Gregory Rabassa e o Cortazar, dois apaixonados por jazz, passavam horas falando sobre este conto. Bruno é um crítico musical francês e um fã de Carter, um músico fenomenal mas que vive em situação econômica lamentável. Colaboram para a decadência de Carter suas crises esquizofrênicas, seu caráter irascível, sua dependência de drogas. Mesmo sabendo que Carter se auto-destruía, Bruno, que é um admirador de Carter, apenas tenta narrar esse inacessivel mundo pessoal do músico, sem, a princípio, maiores envolvimentos. O problema que o ambiente nauseante que cerca a vida de Carter, passa por osmose a influenciar a vida de Bruno - que a certa altura se encontra perdido dentre tantas indagações pessoais. A princípio, o biógrafo, sabe que será o maior beneficiário dessa existência de sucesso e degradação na qual Carter imerge. Aos poucos se vê perdido, pois não encontra a chave que defina a genialidade de Johnny Carter, persistindo, como perseguidor, na busca. Um dos melhores de Cortazar.

As Armas Secretas é um conto chocante, pois o Cortazar não abre a guarda. Não torna o protagonista, Pierre, em nenhum momento um tipo atrativo ao leitor. Pierre é um sujeito que sofre de insônias, toma remédios para dormir, receitados pelo amigo Xavier. Pierre e Michele mantém um início de relação conflituosa, pois em sua ansiedade, Pierre não entende a aversão de Michele ao sexo. O jovem questiona-se o tempo todo pro que Michele não o visita em seu apartamento, e consumam de uma vez por todas a bendita cópula. Talvez em decorrência da combinação dos remédios com o conhaque, Pierre tem umas alucinações visuais e auditivas, uns déjà vus estranhos, onde se misturam cenários e palavras que não compreende mas que parecem se remeter, pelo detalhe do corrimão e de uma bola de cristal, recorrentes em seus sonhos, à casa de campo dos pais de Michele. Nesse ambiente de tensão, chegam a casa dos pais de Michele. Lá, Pierre tenta novamente ter sexo com a namorada. Esta o refuta pois sofreu um trauma ao ter sido violada por um soldado alemão, naquele cenário com o qual Pierre havia sonhado e onde realidade e alucinação se confundem. Pierre chega a morder o lábio de Michele, que se tranca no quarto. Pierre a abandona. Enquanto isso, Michele chama a Babete, e outros amigos para que a visitem. Pierre decide retrornar à casa e encontra uma Michele bem mais lívida. Alucinado com as imagens, os sons de canções alemãs, o cenário estranhamente familiar, volta a abusar de Michele.

Mas contado assim, sei que peco por reduzir a complexidade do conto e a comparação entre as casas de meus pais e a minha. Há muito mais detalhes sublimados.

2 comentários:

Isabela Borges disse...

chico,
são essas lembranças que ficam impressas pra sempre na memória e que vão servir de uma espécie de teia pra gente viver as coisas e situações novas, que vão ficar tb gravadas no gabriel e nos que vão vir ainda. Isso é interessante, são ciclos, e como os fatos ficam pra cada um que os vivencia, à sua maneira. bjos!

ilusão da semelhança disse...

Isa, nao deixam de ser lembrancas interessantes essas da casa cheia, e como voce mesmo bem definiu, dos ciclos que se renovam.

Obrigado pela visita. Beijao. Chico