Jogo de Cena


Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2007)


Clifford Geertz, um dos pais da atropologia simbólica, dizia sobre os símbolos: símbolos guiam as ações. De uma certa forma o que Geertz diz é que as pessoas se comunicam e se perpetuam através de formas simbólicas. E a função da cultura é nada mais nada menos que impor um significado a toda a simbologia para que passe a ter sentido e dai se torne compreensível. Eu desconfio que Eduardo Coutinho saiba isso na prática.

O livro de Geertz, The Interpretation of Cultures, deve ter mais de 30 anos e obviamente tem todo aquele jogo de cena da linguagem enfadonha que usa para se defender dos dentes de seus pares, mas o que mais me marcou deste livro é que através de uma prosaica rinha de galos em Bali - e de como os apostadores homens se comportavam ao redor da arena -, Geertz chega a conclusões impressionates sobre as atitudes e as simbologias de toda uma sociedade frente à violência, a corrupção e à política.

Na rinha ocorria, na verdade, um teatro onde os papéis reais de homens reais que jamais poderiam ser encenados na vida real, o eram ali dentro. No fundo, os papéis que os apostadores adquiriam, frente a arena, eram no fundo também um jogo de cena, uma majestosa fabulação da realidade. Weber diria - em relação à ética protestante - que eles, tal como os proselitos protestantes, estavam amarrados às teias de um significado que eles mesmos teceram, a papéis sociais indissociáveis. Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, joga com isso: com peso das imagens.

O Eduardo Coutinho fez um documentário, no meu ponto de vista, profundamente irônico para aqueles que encaram a ficção como algo alheio, ou tão distante da realidade como uma rinha de galos. Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida no palco do Teatro Glauce Rocha. Vinte e três delas foram selecionadas e filmadas para contar sonhos, saudades, medos e amores. Alguns meses depois, atrizes - umas famosas e outras nem tanto - interpretaram as histórias dessas mulheres.

O resultado foi um documentário conceitual que embaralha o velho adágio da arte imitar a vida – ou vice-versa. Veja bem, não estou dizendo que não exista essa separação entre realidade e ficção. Há. Eu sei, e eu sei que evidentemente o Coutinho sabe que há, pois, veja bem a ironia do Eduardo Coutinho: as mulheres - pessoas e personagens - contam suas estórias de costas do alto do palco para uma platéia vazia. Ou seja, uma ironia séria. Foi uma escolha sacana e bem sacada, eu sei. Vou colocar as mulheres num palco de teatro, sem platéia, para contarem e recontarem suas histórias - pensou Coutinho. Pois eu sei que, eu como documentarista, lido com esse falso compromisso com a exploração do real, com essa ilusão da semelhança o tempo todo - indaga secretamente, Coutinho.

Digo, eu, que é irônico, pois, até a terceira ou quarta história, era evidente quem no palco era a atriz, e quem era a personagem real, a dona da história – primeiro, por que as atrizes eram famosas, voilá, Globais; segundo, pelos cortes dados pelo diretor; e terceiro, por que o próprio diálogo do diretor com as atrizes sobre as dificuldades interpretativas deixavam claro isso. Mas a certa altura, quando as atrizes passam a não ser conhecidas, e os cortes mudam, o expectador deixa de saber quem é a atriz e quem é a personagem real. Esse ponto de inflexão é claro quando a Fernanda Torres e a Andrea Beltrão, quase não conseguem teminar suas interpretações pois percebem que erram seus papéis. Erram pois nos passam a impressão de seus medos, da temeridade de mimetizarem o real, com suas pulsões, não-ditos, traumas, medos e preconceitos na ficção. Essa confusão do expectador é mais evidente quando as histórias passam a se repetir.

A propósito quando Fernanda Torres e a Andrea Beltrão chegam ao palco e expõem seus comentários e dificuldades ao interpretar suas falas fez sentido para mim por que o Coutinho selecionou, para a primeira história, a história de uma atriz de teatro popular, que faz uma pequena interpretação do texto Gota d’àgua. Medéia, sem loucura, num ato de fria e premeditada vingança em relação ao marido, oferece ao infiel Jasão um pedaço de bolo envenenado.

A evocação de Eurípedes, no Doc, me fez lembrar não sei bem por que, mas instantaneamente, do Persona do Bergman. Foi uma livre associação errada, eu sei, pois a Liv Ulman interpretava, na verdade, não Medéia, mas Electra. Entretanto, não pude deixar de fazer a analogia entre a tragédia grega e o jogo de cena criado pelo Eduardo Coutinho. O Documentarista leva ao palco todas aquelas atrizes e mulheres para se perpetuam através de seus arquétipos, dos símbolos que criaram para elas mesmas, sendo mulheres reais, atrizes desconhecidas ou atrizes GLoBais.

O paradoxo que Coutinho cria é tão interessante, que ao final não se sabe quem é a atriz e quem é a mulher real. A escolha das histórias e personagens é tão criteriosa que leva-o a fechar o documentáriocom o depoimento de uma médica, por sinal, uma espécie de versão carnavalesca de uma Clitemnestra irredutível porém auto-inflectiva, no meio da Sapucaí, à procura de Nemo.

http://www.cinemaemcena.com.br/jogodecena/blog.asp

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