JOÃO ANTÕNIO




Título: João Antônio

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 


Filho de pai português, dono de botequim, e mãe mulata batalhadora, semi-analfabeta, João Antônio em nasceu em Presidente Altino, distrito de Osasco, na grande São Paulo, em 1937. Seu pai era um português atípico. Falava francês e tinha sido caminhoneiro, auxiliar de contador, e dono de armazém de secos e molhados.  Era violonista e bandolinista auto-didata. Levava o filho para as noites de seresta nos interiores de São Paulo -  sem a aprovação da mãe. Segundo palavras do próprio autor, cresceu criado na rua, vendo prostitutas, batedores de carteira, malandros em geral que nos seus futuros livros ganhariam uma dimensão existência. Ainda jovem descobriu os benefícios do conhaque, da cerveja, das mulheres e das mesas de sinuca, que o acompanharia por todas as suas andanças em São Paulo, Rio de Janeiro, e o interior de todos os lugares por onde passou. Aliás, dizem as más línguas que era mulherengo e mão-de vaca.

Jornalista conhecido por sua participação na imprensa alternativa nos anos 1970, desde jovem mostrou talento para a escrita. Sempre escreveu à mão, e somente depois datilografava seus textos. Depois os lia, e ria sozinho na varanda da casa, igual maluco. O jovem João Antônio Ferreira Filho trabalhou em empregos mal remunerados antes de lançar seu primeiro livro de contos, Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963. Com este primeiro livro, ganhou os prêmios Jabuti e o Prêmio Fábio Prado e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo.

Este livro, a propósito, é fruto de um grande trauma em sua vida de escritor. Em 12 de agosto 1960 um incêndio, por conta de um ferro elétrico que deixaram ligado, destruiu a casa em que vivia com sua família.  João Antônio perdeu os originais deste seu primeiro livro Malagueta, Perus e Bacanaço neste incêncio. Anos mais tarde, diria que aquela era uma data absolutamente inesquecível em sua vida, porque ficou traumatizado durante muito tempo, chegando mesmo a se recusar a entrar em livrarias, por reviver a memória da perda de seus originais.  Este seu livro de estreia seria reescrito em menos de dois anos, valendo-se de cartas e rascunhos enviados a amigos e de suas memórias, publicado finalmente em 1963 pela Editora Civilização Brasileira.

O sucesso literário conduziu-o à atividade jornalística. Entre a estreia em 1963 e o segundo livro, Leão de chácara, passam-se 12 anos. Nesse meio-tempo, João Antônio, aos 27 anos foi convidado para ser repórter do Jornal do Brasil e se mudou para o Rio de Janeiro, cidade que escolheu como residência fixa. Foi da equipe fundadora da Revista Realidade, na qual publicou o primeiro conto-reportagem do jornalismo brasileiro, Um dia no cais em 1968. Trabalhou, ainda, na revista Manchete, no jornal O Pasquim, além de diversos órgãos da imprensa alternativa, de oposição ao regime militar. Foi de cunho de João Antônio a famosa expressão “imprensa nanica” para designar os jornais alternativos do período da Ditadura Militar que se instalou no Brasil em 1º de abril de 1964, que eram vendidos clandestinamente em bancas de jornais.

Com o filho pequeno, trabalhando feito louco em seis anos de trabalho ininterrupto por longas horas à frente da máquina de escrever, mais as noites de boemia e as andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, renderam ao autor uma crise nervosa - talvez catalisada pela birita.

No começo de 1970, essa crise o obrigou a se internar por dois meses em uma instituição psiquiátrica. A passagem pelo Sanatório da Muda, na Tijuca, em maio e junho, rendeu a João Antônio não apenas a oportunidade de se restabelecer, como também dois textos que se tornariam centrais para entender a relação de João Antônio consigo mesmo e com o seu escritor de predileção: Lima Barreto. 

Nesta fase de sua vida, João Antônio escreveu dois de seus grandes livros. Um deles é a crônica de João Antônio sobre o próprio sanatório, que dá título a seu quarto livro, Casa de loucos, de 1976. Numa espécie de livro-reportagem, entrevista psicografada ou crônicas surrealistas dos encontros que o autor teve com personagens históricos tais como Darcy Ribeiro, Nelson Cavaquinho e Noel Rosa.  

O outro livro trata-se de nada menos que “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”, um roteiro dos bares, restaurantes, cafés, ruas, redações e livrarias que Lima frequentava, onde bebia e encontrava amigos e conhecidos. A reconstituição foi feita a partir do relato que João Antônio ouviu de um colega de sanatório já senil, o professor Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, 72 anos, que conviveu com Lima na década de 1910. O escritor chega a afirmar em uma nota que nenhuma palavra na obra é sua e que seu trabalho foi o de um “montador de cinema”. No livro João Antônio mapeou os trajetos que o escritor fazia de casa, no subúrbio do Encantado, para o Centro do Rio, bem como as andanças e as tertúlias de que fazia parte. Apesar nenhuma palavra na obra ser sua - como ele próprio sempre afirmou – o toque de devoção de João Antônio a Lima Barreto, está nos cortes e colagens que ele faz no texto de história oral, narrado por Carlos Alberto Nóbrega, pontuando episódios, amigos e personalidades históricas citadas, com passagens dos diversos livros de Lima Barreto.  

Assim o relato não é uma biografia de Lima, mas uma espécie de perfil do escritor feito da colagem de muitas vozes. São numerosos os trechos do autor que João Antônio reproduz, pontuando passagens escolhidas de obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Feiras e mafuás, Os Bruzundangas, Diário íntimo, Correspondência, entre outros.

Se não fosse por João Antônio, jamais saberíamos que Lima fumava cigarros Elite 18, da Sousa Cruz, e que jamais saía de casa sem chapéu, mesmo que sempre suado e com os paletós poidos. Não saberíamos que guardava seu dinheiro, com as notas enroladas em tubinhos, no bolso do lencinho do paletó. Nem saberíamos de sua enorme sabedoria etílica em evitar a mistura de fermentados e destilados, quando se trata de bebida alcoólica. Jamais tomava nada que não fosse Parati - a nossa mais que conhecida aguardente de cana. E mesmo com muitas doses, jamais apresentava momentos de embriaguez, ficava apenas sorumbático, tendendo à “melancolia”. Sem esse livro de João Antonio, jamais saberíamos que Lima Barreto era um homem bem humorado, pelo menos entre os seus, amigos de subúrbio.

Nesse compasso, produziu quinze livros, mas sempre se recusava a participar de cerimônias e de se vincular a grupos e academias literárias. Aceitava apenas convites para palestras em escolas e universidades.

Como a maioria dos escritores retratados nessa coleção, João Antônio retratou essencialmente os oprimidos. Operários, bichas, picaretas, prostitutas, otários e malandros, que disputam o jogo onde seja para ganhar um trocado, faturar um almoço, uma dose grátis, uma ronda a dinheiro, uma mulher alheia, o troco do café, ou um pouco de droga, significa muito para própria sobrevivência da espécie.

Mas não somente os oprimidos eram retratados em sua narrativa. O amor espúrio está na narrativa de maridos desnorteados, mulheres de 50 desesperadas de amor e rapazes bonitos que pelas circunstâncias viram gigolôs.  Narrativas onde há bipolaridade, tiroteio em disputa por mulheres, tentativas de suicídio, e atrações inesperados que explodem em paixões. Enredos que facilmente, dependendo do grau de distração, poderiam ser piegas, mas que na mão de João Antônio viram uma realidade muito próxima do leitor.

Sempre retratando o calvário de pingentes, desde o início da leitura de cada um - digo, cada um – de seus contos, temos a sensação que o protagonista pode se transmutar em qualquer ser, seja, um burro-sem-rabo andarilho, um publicitário fracassado, um antropólogo com câncer, uma prostituta apaixonada, burguês falido, juiz de futebol ladrão, ou até mesmo um guardador de carros poeta. A curva da sua trajetória literária que principia lírica e melancólica, com Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), acaba raivosa, indignada e ressentida, em Dama do encantado (1996).

Essa fase magoada começa nos anos 1980. Talvez o ressentimento fosse com ele mesmo, vindo de um desconforto de não se achar em lugar nenhum. Nesses anos deambulou São Paulo, Rio de Janeiro, Amsterdã e Berlim, onde viveu por mais de um ano, ao ganhar uma residência literária (aliás, a mesma vencida por Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão). Tinha se afastado da malandragem, e já não se identificava nem com os pingentes, nem como um falso figurante na desdenhada classe média, que ele sempre atacou. Esse despertencimento gradual foi mexendo com sua cabeça. 

A desigualdade aumentara no Brasil na mesma proporção da inflação e das trocas de moeda. O Botecos, antes xexelentos, com seus mictórios encardidos, agora tinham televisão que passava o futebol, e o abismo formado entre as classes, roía sua lírica da miséria. Alguns críticos diziam com certa leviandade, que ele tinha perdido a mão, repetindo o enredos e  anedotário em seus últimos livros. Entretanto, paradoxalmente, era e permanece um escritor atual. Passados 60 anos, temos em seus contos um projeto de país, que com muito jeitinho e antropofagia, descambou em uma nação dividida, violenta e proto-fascista.

Seria leviano dizer que João Antônio morreu esquecido. Sua morte foi noticiada em jornais e revistas de circulação nacional como O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Isto é e Caros Amigos. O sepultamento se deu com honras municipais. Também seria leviano dizer que morreu respeitado. Naquela década o escritor publicou os livros Zicartola e que tudo vá pro inferno, Dama do Encantado, Patuléia: gente de rua. Além disso, o livro Guardador recebeu o prêmio Jabuti em 1993.

A indiferença da crítica literária e da mídia em relação ao escritor, essas sim, provavelmente catalisaram desilusão do próprio. Mesmo que os críticos estivesses corretos sobre sua frouxidão nas rédeas da escrita dos últimos anos, jamais abandonara sua ênfase como porta-voz dos marginalizados.

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