Balão Cativo


Não gosto de diários, mas me lembro com se fosse hoje.  Naquele tempo uma ida de Cascadura a Copacabana, de ônibus, tardava umas duas intermináveis horas. Naquele dia, minha mãe tinha que resolver algum problema burocrático no Consulado Espanhol, que ficava justamente em Copacabana. Podíamos ter ido de trem até a Central, e dali pegar um ônibus até o destino, mas aquela rodoviária da Central nunca foi um lugar muito seguro e minha mãe procurava evitar. Naquele dia pegamos o ônibus 254, saltamos na frente da UERJ -  e aqui um parêntese: eu jamais imaginaria que naquele dia de 1982 eu estudaria naquela universidade. Dali pegávamos o 464. Nessas idas a Copacabana, eu não gostava do 464 por um detalhe específico. Quando ele saía da rua Riachuelo, cruzávamos os arcos da Lapa -  e sempre ao passar pela igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa, minha mãe me lembrava que ali tinha se casado com meu pai -  assim que acabava a rua Teixeira de Freitas o ônibus virava à direita, bem ali no prédio do IHGB, na Avenida Beira Mar, e ia por "dentro". Não dava para ver nada do Aterro do Flamengo. Na pista de dentro do Aterro, até o vento parece diferente, daquele que venta na pista de fora, perto da praia. 

Lembro que o Consulado ficava na Rua Duvivier, no predio ao lado do Beco das Garrafas. Ali trabalhava o Padre Pepe. Padre Pepe era um amanuense espanhol muito amigo da nossa família,  que trabalhava no Consulado há anos, e que tinha casado meus pais, na supracitada ibidem Igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa. Nesse dia específico, lembro bem, eu tinha 10 anos. Com 10 anos você é inocente. Mas eu sempre saia do Consulado com a certeza que o padre Pepe não ia com a minha cara. E fique certo de que a recíproca também era verdadeira, tanto é que minha mãe me dizia antes de entrar: Se comporta, não toca em nada, só abra a boca se falarem com você.  Uma mãe só diz isso a um filho, quando tem a certeza de que ele não é flor que se cheire.

Nessa época, nesse dia específico, eu ainda não desconfiava que o pilantra também tinha uma dona há anos. Mas aquilo era um tabu na família. Todo mundo sabia da amante do Padre Pepe, menos eu e minhas primas menores. Padre Pepe devia ser Franquista. E a possibilidade dele ser franquista me deixaria num futuro pretérito mais que perfeito, muito puto. Isso me deixa mais puto até hoje. Pari passu  ao condicional fato de ele ter vivido com uma mulher a vida toda -  isso realmente é o de menos - , o malandro atendia ao público num órgão governamental, público, laico, com a clérgima!

Enfim, eu nem queria falar dessa viagem longa e cansativa, nem do subúrbio, nem dessas ignomínias à clef de um padre pilantra, mas queria lembrar que nesse dia específico, saímos da rua Duvivier, e dobramos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana para voltarmos para casa. Perto do ponto do ônibus havia uma livraria. Minha mãe e eu, entramos nessa livraria. Nesse dia específico eu comprei meu primeiro livro... com minha própria graninha... Justamente do Flavio Migliaccio, que se suicidou hoje. 





...me lembro que a viagem de volta foi linda. E eu acabei de ler o livro, antes de chegar a Cascadura...

...essa coisa de ter uma memória péssima é horrível, apesar de lembrar de tudo... mas quase me esqueci desse fato... quase esqueci que As aventuras do Tio Maneco, passavam na televisão à tardinha, e que tinha 3 guris, um tio gente muito boa, um carro velho, um robô de lata...






Flavio... Poucos tem coragem de deixar uma carta tão corajosa....não foi em vão não, irmão... A gente apenas perdeu tua referência física... isso dói, não vou dizer que não... Tio Maneco, eu era aquele moleque que te acompanhava todos os dias a tardinha na TVE e aprendia um  monte de coisas, contigo e com o Daniel Azulay...

A carta deixada é soco no estômago de uma nação em ruínas...






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