“Clarice,”

Clarice Lispector é e sempre será um mistério. Falo da literatura experimental de Clarice Lispector. Ao tratarmos da biografia de Clarice, muito bem escrita por Benjamin Moser, percebemos que traz à luz dados novos e interessantes - mais sobre a vida da escritora que da mulher. E ouso dizer que, falha um pouquinho no momento de reconectar as duas mulheres. Explico. Para mim, não revela dados biográficos novos, mas apenas absolutamente previsíveis e já presentes em outra biografia que eu havia lido sobre a mesma autora.

Ao contrário de “Eu sou uma pergunta”, uma biografia que li há anos atrás, sugerida por um amigo que vive hoje em Pretória, esta “Clarice,” mergulha mais nas fantasias de Clarice, em suas tentativa de meditação e mediação entre literatura e realidade, que em sua vida real. Ao menos, esta foi a imagem que tive ao comparar amadoramente as duas biografias. Faltou um pouco pontuar os fatos, desde a imigração dos pais para o Brasil em 1922, passando pelas relações familiares, e até mesmo, por que não dizer, esclarecer como uma pessoa tão confusa - não há pejoração aqui! - conseguia promover seus livros a partir de uma rede de apoio que começava com sua irmã, e passava por Lucio Cardoso e recebia o abraço corporativo de amigos influentes como Alberto Dines.

Na biografia de Teresa Cristina Montero, essas relações estão mais claras, sem dúvida.

Pois mostram que já consagrada no Brasil e no exterior, Clarice ainda se angustiava com a crítica e com a relutância de editores em publicar seus novos trabalhos. A biografia escrita por Moser complementa esse aspecto e mostra, por exemplo, a irritação de Clarice com a crítica de Alvaro Lins (reunida no livro Mortos de Sobrecasaca: Obras, Autores e problemas da Literatura Brasileira, ensaios e estudos, 1940-1960) sobredois de seus livros, Perto do Coração Selvagem e O Lustre. Folheando  Mortos de Sobrecasaca percebi que o crítico realmente começa com uma análise meio datada e até mesmo esdrúxula sobre escrita "feminina" e a aceitação do lirismo como forma de expressão literalmente feminina e inaugurada por Virginia Woolf. E vai além, afirmando que Clarice mimetizava o estilo de Woolf. Clarice se indignara com a crítica e confessara que nunca sequer havia lido Woolf. Lins classifica Perto do Coração... como um livro confuso, tomado pelo caráter do sonho e da super-realidade. Lins na certa ainda sofria o impacto entorpecente de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, encenada pela primeira vez no mesmo ano do lançamento de Clarice, obra que aparentemente forjou a forma daquela geração ver a relação entre ficção e realidade. Mas no decorrer da crítica, apesar de menos condescendente com O Lustre, Lins aponta e nos relembra para elementos realmente interessantes. Por exemplo, é claro que para quem já leu o livro, alguns personagens mesmo que secundários, importantes para a trama, aparecem e desaparecem com muita facilidade, numa espécie de mutilação dos antagonistas para dar voz apenas a seus protagonistas. Lins define isso como uma técnica processual. Mas essa mudança de centro de gravidade era comum nos grandes mestres. Balzac e Machado cansavam-se de fazer isso, por outros meios. É, ou não é, meu caro biógrafo do Barão? E por que a Clarice não podería?

Mas por essa biografia, ainda que a biografada saia imaculada pelo respeito do biógrafo, podemos acompanhar claramente a carreira literária de Clarice Lispector: suas estorinhas inventadas quando menina, seu trabalho como repórter de jornal chapa branca, seus traumas, na análise das missivas podemos perceber suas angústias criação literária, um pouco de suas amizades e trocas de favores com os intelectuais e escritores e a paixão platônica e sempre muito mal explicada pelo escritor Lúcio Cardoso, sempre muito mais enfatizada que o suposto romance com Paulo Mendes Campos – nunca claramente investigado para além da forte influência intelectual que Mendes Campos exercia sobre ela, ou para além da maledicência de amigos do meio literário.


Podemos até mesmo perceber que paralelamente à sua carreira literária, Clarice tinha uma vida privada.

Clarice foi casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente. Uma relação, que apesar dos filhos, sempre deixou um certo ar de aparências. Primeiro, pelo cotidiano que é sufocante para qualquer casal - ela chega até mesmo a citar para a irmã, se não me engano, "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente.". Segundo, pelos desgastantes problemas psicológicos apresentados pelo filho mais velho. Por tudo isso, Clarice nunca escondeu de seu círculo mais íntimo que se sentia sufocada pela vida conjugal, já desde os primeiros anos em Berna, Torquay e mesmo depois no 4421 Ridge St em Montgomery Country. Enfim, na biografia de Moser, ao contrário na de Teresa Cristina Montero, o casamento, instituição difícil para qualquer criatura dotada de mínima racionalidade, não raramente se torna um obstáculo às ambições, sonhos e promessas da escritora. Dessa biografia, no aspecto específico citado,  pode-se concluir que incapaz de elaborar a crise que inventava nas suas linhas escritas, Clarice passou a conviver com sua falta de elaboração, como quem divide a vida com uma pessoa amarga e que tenta temperá-la em vão no dia-a-dia. Aos poucos, de alguma maneira, enquanto Teresa Cristina Montero mostra a face pública de Clarice no papel de esposa de diplomata, recebendo em sua casa, se tornado amiga das esposas de diplomatas, trocando confidências banais e estúpidas, e obviamente se utilizando do prestígio para publicar, Moser mostra o oposto, mostra a sua face de prisioneira que não consegue entender por que Clarice e Maury estão presos, mesmo sabendo, ou desconfiando que a chave da cela está com eles, mas não conseguem localizar. Demorou 16 anos para encontrarem a chave.

Mas nada me tira da cabeça que uma mulher que escreve de tal maneira, ou melhor, depara-se de tal maneira com a força do próprio desejo já desde jovem, sabia ou ao menos suspeitava dos ônus em se casar com um diplomata, de viver fora do Brasil, ou seja, de ser expulsa de seu paraíso imaginário para ganhar a temível e angustiante notoriedade de escritora. Ela assumiu isso em troco de algo. E por isso imagino que a chave estava bem guardada, ao invés de perdida...

A paixão por Paulo Mendes Campos foi secreta. Tão secreta que passa quase incógnita pelas páginas dessa biografia. O caso era tão discreto que não conta com mais de duas páginas em todo o livro e termina com Mendes Campos intimado pela mulher inglesa a partir com a família para Londres. A paixão por Lúcio Cardoso era platônica, mas que não deixava de tera algo de paternal. Ele mostrou-lhe que suas anotações dispersas e que pareciam incoerentes, eram o seu próprio método, além de ter sido ele quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. Paixão e labor andavam juntos em ambos os casos.

Enfim, o livro de Benjamin Moser tem muitos pontos muito atrativos. Ao juntar elementos biográficos e espelhá-los na obra ficcional de Clarice. Se é inovador eu não sei. Desconfio que sim. Mas o mistério das duas mulheres não necessariamente se desvela, até por que não há razão nem ontológica tampouco comercial para isso.

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