Spellbound

Spellbound não é um dos melhores thrillers psicológicos de Hitchcock, mas ainda assim vale a pena ser assitido com atenção. A bem da verdade, Freud, Adler, Jung, Fromm e Lacan devem estar se revirando no túmulo, e suponho que um monte de psicanalistas devem igualmente ter engulhos ao ver o filme, mas como não sou psicanalista e não tenho compromisso mínimo com certezas, falseamento de hipóteses ou conclusões sobre o que quer que seja, gostei das linhas gerais e do argumento do filme. Parece até que Hitchcock persuadiu pessoalmente David Selznick a comprar os direitos do livro de John Palmer, The House of Dr. Edwards, por 40 mil dólares. Não me lembro bem se esse é um daqueles filmes que Hitchcock estava obrigado, por um contrato assinado com Selznick no início dos anos 40, a cumprir. Em todo o caso o filme parece que foi feito meio aos trancos e barrancos entre a negligência de Hitchcock e a obsessão de Selznick

Porém, nada explica tamanha animosidade dos psicanalistas. Principalmente por que estes certamente não tomaram ciência do nome que o português deu ao filme: “Quando o Coração fala mais Alto” ou algo assim. Isso sim, digno de indignação!! Até por que o nome original poderia ser um jogo de palavras com o sentido de iludido, encantado ou fascinado; ou num trocadilho slang, spell binder, poderia ser uma espécie de orador envolvente. Seja como for, algo muito mais pertinente que “Quando o Coração fala mais Alto”! Né não?

Para resumir, Ingrid Bergman, em seu papel de mulher independente e desejável, é uma jovem psicanalista que trabalha na clínica Green Manors. Por sua crença na ciência, a jovem doutora Constance Peterson nunca havia deixado a paixão interferir em seu trabalho. Entretanto, quando futuro diretor do lugar, Dr. Edwards (Gregory Peck), chega, suas certezas se abalam.

O tom de mistério começa quando Dr Edwards começa a agir de maneira estranha, expondo os efeitos avassaladores de sua amnésia e expondo suas fragilidades aos seus pares e pacientes. Seus pares, passam a perceber os lapsos de memória e chegam a assumir que o Dr. Edwards possa não ser aquela figura que ali se apresenta, principalmente baseados na negação de que o doutor Murchison tenha encontrado Dr. Edwards antes. Um dos primeiros a desconfiar do jeito esquisitão de Edwards é exatamente o mentor intelectual da doutora Constance Peterson, Dr. Brulov, interpretado por Michael Chekhov. Dr. Brulov acredita que algumas pessoas vivem socialmente em constante estado onírico (ãh, hã..), e inclusive o camarada até lembra um pouco o semblante do Freud.

Então, a doutora Constance Peterson, percebendo o comportamento vacilante do doutor Edwards tenta ajudá-lo a provar que ele é ele mesmo, tentando resgatar seu passado atormentado.

O fato é que o verdadeiro Dr. Edwards não está na clínica e está provavelmente morto. Então as perguntas que se seguem são. Onde está o Dr. Edwards? E quem é aquele camarada que se faz passar pelo Dr. Edwards?

Nesse momento o filme degringola um pouco numa espécie de psicanálise primitiva e nem Hitchock consegue contê-lo. Em parte por que Hitchock delega as imagens do inconsciente do Dr. Edwards a Salvador Dalí em sequências pra lá de surreais. As portas que se abrem no beijo de Constance e Edwards, os sulcos que Edwards vê no tailler de Bergman, enfim, uma série de imagens que supostamente seriam o retrato da mente conturbada de Edwards que não me convenceram. O produtor , o todo poderoso Selznick, chegou a contratar um terapeuta para orientar as gravações, o que levou a Hitchock ironizar “my dear, it’s only a movie!”
Uma curiosisdade. Muita gente criticou a sequência idealizada por Dalí para Spellbound. Muita gente também disse que Dalí não entendia nada de cinema. O que não é de todo verdade já que ele e Bruñuel haviam escrito Un Chien andalou e L’Âge d’or no final dos anos 1920.

A dúvida sobre se Dalí entendia mesmo de cinema ou não é irrelevante, mas o fato de Dalí saber que Bruñuel era cineasta do bons e e se calar ao saber que este passava os maiores perrengues em NY no início dos anos 40 trabalhando para Museu de Arte Moderna como dublador para a Warner Bros mostrava a animosidade sintomática entre ambos. Aliás a divergência entre ambos começou em L’Âge d’or, após uma série de desentendimentos entre Bruñuel e Gala – mulher intransigente de Dalí e que consta que Bruñuel tenta estrangular durante as filamgens de L’Âge d’or - , e que duraria para toda a vida. A divergência se concretiza quando Bruñuel edita o filme na França e não dá os créditos a Dalí. Dalí, então, magoado, escreve no início dos anos 40, A vida secreta de Salvador Dalí, e expõe os detalhes dos bastidores do filme, bem como as simpatias comunistas de Buñuel. Em virtude da cachorrada, Bruñuel perde o ganha pão do MoMA em 1943 e o filme Spellbound tem suas sequências oníricas realizadas não pelo melhor cineasta, mas pelo camarada bom de marketing que deu uma imagem ao inconsciente, e transformou essa imagem em mercadoria, e à mercadoria da imagem um fetiche para pendurar na sala de jantar.

Last but not least, o culpado da morte do verdadeiro Dr. Edwards não era o ‘Dr. Edwards’ que lembra finalmente de sua identidade. Isso não o livra do xilindró, pois junto aos fatos do passado, as lembranças revividas revelam os detalhes sobre o acidente que ocasionou a morte do irmão – detalhe que torna o suspense da trama tesa até a penúltima cena, já que a última é a do beijo, pois como diria David Lynch isso é Hollywood.



Bacana também são as piadinhas calhordas do Dr. Alex Brulov: “Good night and sweet dreams… which we’ll analyze in the morning” ou “ women make the best psychoanalyst until they fall in love. After that they make best patients”

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