Bem, para início de conversa é uma novela que de forma alguma supera a Dois Irmãos – para mim, seu clássico. Entretanto, é uma grande novela pela elegância com que Hatoum apresenta a fracassada saga de Arminto Cordovil, durante a fase de decadência econômica do chamado ciclo da borracha. Arminto é um desses herdeiros dos anos de fausto, é um jovem manauense, que carrega o Cordovil no sobrenome, ou seja, vem de uma linhagem de empreendedores da selva que a ferro e fogo desvendaram - ou pensaram ter desvendado - os segredos do “Eldorado.” Com a morte do pai, torna-se um jovem rico, "órfão" e herdeiro não apenas de uma tradição que começa com o avô Edílio, passando pela sombra sempre pesente do pai Amando, mas também de uma próspera empresa de navegação que leva as bolas de latex do interior da floresta à embocadura do rio Amazonas.
Homem sem disposição empresarial, que por ingenuidade ou irresponsabilidade, perde pouco a pouco o império deixado pelo pai, evidenciando seu descaso para com o espólio - para desespero de Estiliano, uma espécie de avatar, um homem de muitos silêncios e procurador dos Cordovil -, o Arminto que conta a estória é evidentemente um homem velho que olha para sua vida com o ceticismo dos que pouco se importam com o porvir. Em sua tentativa de narrar a própria vida, conclui pouco a pouco que teve uma mãe morta precocemente e da qual somente restara um rosto em preto e branco numa fotografia rasgada, um pai que até o momento de sua morte no meio da praça da Vila Velha não passara de um mero desconhecido, e uma paixão que por algum motivo misterioso ou velado tornara-se irrealizável. Esta paixão tem um nome Dinaura. Uma das órfãs das carmelitas em Vila Bela, que lê romances e enfeitiça Arminto para o resto da vida levando-o à degradação. Ou seja, é como se a fiação das moiras o imolassem numa tapeçaria de detalhes inverossímeis cercados por lendas e mitos encalacrados na oralidade da floresta e traduzidos por Florita – sua iniciadora sexual e oráculo tradutor entre o mundo mítico inacessível e o desamparo da realidade crua.
Os motivos de sua decadência moral e até mesmo física, estão conectados. Com a mesma intensidade que a paixão e a busca obsessiva por Dinaura (uma orfã por quem se apaixona após, esta, digamos assim em linguagem figurada, dar-lhe sua muiraquitã no meio de uma moita) o persegue, afugenta-se com todas as forças da sombra dominadora de um patriarca quase que onipresente, mesmo depois de morto. Pensando bem, ambos, metáforas do Eldorado. E o Eldorado de Arminto é uma espécie de meio caminho entre a lenda e a realidade onde as artimanhas de sua memória tentam dar forma à espécie de limbo danteano (ou dantesco?) onde estão os carentes de batismo. Onde está a suspeita de um incesto. Onde não está a razão. Onde, suposta e ironicamente, encontra Dinaura. Onde o Eldorado permanece velado....
[…]
Na porta vi o rosto de uma moça e fui sozinho ao encontro dela . Escondeu o corpo, e eu perguntei se morava ali.
Moro com minha mãe, disse ela esticando o beiço para o outro lado do lago.
Onde estão os outros?
Morreram e foram embora.
Morreram e foram embora?
Ela confirmou. E reapareceu aos poucos até mostrar o corpo inteiro, retraído pela timidez e desconfiança.
Trabalhava nesta casa?
Passo o dia aqui.
Conhecia uma mulher… Dinaura?
Recuou um pouco, juntou as mãos, como se rezasse, e virou a cabeça para o interior da casa.
A sala era pequena, com poucos objetos. Uma mesinha. Dois tamboretes, uma estante baixa, cheia de livros. Duas janelas abertas para o lago do Eldorado. Parei perto do corredor estreito. Antes de eu entrar no quarto. O prático e a moça me olhavam, sem entender o que estava acontecendo, o que ia acontecer.
[...]
Dinaura? Outra? Um espectro? Mais uma das alucinações da selva? O desgramado do Hatoum não revela(!) tornando as suspeitas do final deste livro tão eletrizantes quanto as incógnitas que pairam na cabeça do narrador de Dois Irmãos... sua incerta descendência... Yaqub ou Omar? Ou seja, o Aleph de Hatoum continua velado. E isso é ótimo!