Li. Sinceramente, na primeira vista não gostei. Comentei com esse amigo e disse que faltava-lhe algo que nem mesmo eu sabia explicar. Talvez ação, talvez um contorno maior da psicologia do protagonista. Meu amigo insistiu. Conheço esse amigo a suficientes anos para saber que ele não é um leitor amador, que não é um profissional qualquer da literatura, e que assim como eu constata com certo incômodo, que a lógica da narrativa formal causal-linear sofre de uma certa debilidade no relato contemporâneo, agora ligeiro, disperso, fragmentado e superficial; de uma acumulação de superficialidades e lugares comuns. Se insistiu é por que merece uma releitura.
Reli, ontem. Mudei de idéia completamente. Descobri num novo livro um livro muito bom, e uma personagem principal, ainda que imersa numa vida monótona, interessante: o escritor. Explico: a personagem principal é um contador, uma espécie de guarda livros, um pacato funcionário que habita a monotonia e o conforto de um escritório, massacrado pelo cotidiano, e movido pelo sonho de escrever um livro.
O problema é que sua vida, cercada pela solidão e pela racionalidade matemática, não admite erros, falhas, discordâncias. As colunas somatórias do Excel devem estar impecavelmente alinhadas e as contas, no fim do dia, devem bater. E tem um problema maior. Antes de iniciá-la, não tinha uma idéia ou sequer estória definida. Portanto, como todo o escritor, sobre a folha branca deveria inventá-la. Assim, começa pela elaboração de um personagem. Seu personagem principal se chama M.. M. é uma criatura que com o passar da estória torna-se um ser autônomo. Este lhe conta a estória de um grande amor perdido por uma tal Rosa, nome que nunca agradou ao escritor, preferindo chamá-la em seu relato como Atla. Ou seja, o escritor inventa um personagem e o personagem domina o escritor e o conduz por caminhos desconhecidos. Para narrar a estória o contador decide matar Atla no primeiro capítulo do livro que escreve e sugerir a seu personagem que viaje para a Africa a procura de um novo amor. A estória então se torna interessante, pois é evidente que o Eu do escritor se propõe a escrever um livro de viagens baseado nos telegramas enviados por M. da Africa. Há então um jogo interessante entre o criador, que não se sabe bem quem é e a criação deste autor.
Para quem tem familiaridade com os filmes Being John Malkovich ou Eternal Sunshine of the Spotless Mind, pode constatar que há algo em Marmelo que pode-se encontrar nos filmes do brilhante roteirista Charles Kaufman. Ou seja, em meio a estórias aparentemente confusas e enredos inverossímeis, existe um jogo envolvente apresentando-nos um narrador céptico. Na estória de Marmelo, o protagonista, ou seja o contador-narrador, maldiz o excesso de realidade e de monotonia em sua vida. Nessa tensão entre um protagonista rígido e um antagonista livre para viajar, para amar Atla, Amina, Fathma... e para reinventar-se, protagornista e antagonista acabam por intercambiar seus papéis, pois mesmo que o narrador lamente constantemente a abundância de realidade que surge em sua escrita, consegue nessa tensão, entre o que deseja escrever e o que consegue expressar por palavras, realizar o que em suas palavras seja um exercício literário honesto.
Outro paralelo poderia se traçar entre o nosso contador e Daniel Quinn, personagem que persegue Paul Auster em Trilogia de Nova York. A única e irônica diferença é que nosso próprio narrador afirma precipitadamente - “eu sou o manipulador, e M. é o meu títere. E que não reste nenhuma dúvida sobre isso.” - ter controle absoluto sobre M.. Ironicamente, isso deixa de ser verdade no momento em que M. começa a dominar a narrativa com seus telegramas, envolvendo o próprio contador em suas estórias de aventuras e amores na Africa. A questão é que tanto quanto Craig Schwartz conhece John Malkovich, e Quinn muito bem conhece a Auster, desconfio que nosso contador-narrador conhece bem M.. Desconfio de uma ou duas outras coisas mais.
Desconfio, por exemplo, que na verdade M. seja um médico galego que deixou tudo para trás indo trabalhar em Lisboa. O que me leva a suspeitar da real identidade de M. é num de seus telegramas, dando conta que conheceu uma liberiana de nome Fathma por quem se apaixonou. M., através de seus aerogramas enviados ao contador-narrador de Marmelo, oxalá, escreve uma narrativa reinventando-se. Os telegramas, de tom sincero e confidente, não deixam de ser um ajuste de contas consigo, que o contador-narrador de Marmelo vai tratando de desvendar, ao mesmo tempo que vai mostrando sua face extremamente introspectiva. Fathma pode muito bem ser o alter-ego de Oriana ou até mesmo Ondina... mas isso são suposições...
Mas mesmo que o contador-narrador de Marmelo construa uma ficção sobre as imagens criadas por M., e que a partir delas tente fugir de sua própria realidade, ocultando a sua realidade como motor da obra literária, no final, em Londres, quando encontra G., uma colega do curso de contabilidade que prometera guiá-lo pela cidade, tudo passa a fazer sentido: Aonde o vento me levar.