O Importante é que nossa emoção sobreviva

Cautela

Se não te cuidares o corpo, cuida teu espirito torto, que teu corpo jaz perfeito
Se não te cuidares o peito cuida teu olho absurdo que teu peito tomba morto ante a tudo.
Se não te cuidares, cuidado, com armadilhas do ar, qualquer solto som pode dar tudo errrado.

Mordaça
Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar

Paulo Cesar Pinheiro

Nota. 14 - 15 - 16 de Julho

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro


Desconheço até agora o título do filme que assiti ontem. Estava anunciado como Antônio das Mortes. O folder dizia “Antonio das Mortes”. Nos créditos iniciais estava escrito “Antônio das Mortes”. O problema é que, baseado em sinopses que eu já lera, tenho a ligeira impressão de que assisti O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. O problema é que nunca assiti O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, e apenas li sinopses e análises. Para piorar a minha situação tinha um cara francês da Cahiers du Cinéma fazendo as apresentações. Cidadão novinho, que apesar de falar francês e inglês, tinha um vocabulário limitadíssimo, um desses tipos que falam um monte de línguas mas não sabem se expressar em nenhuma, cheio da impáfia dessa gente cabeça que transa vídeo, jurando de beicinho em riste que o nome do filme era simplesmente "Antônio das Mortes" . Portanto, continuo com a dúvida.

Desconfio que deva haver algum problema de direito autoral envolvido com o título do filme que assiti. Pois, como anunciado nos créditos iniciais, a cópia master do filme, no Brasil, perdera-se num incêncio. Restara então essa tal cópia, que fora restaurada e digitalizada na França com o nome de Antônio das Mortes. Enfim, quem passar por aqui e vir essa mensagem na garrafa, me esclareça a dúvida por favor. Já sei que Antônio das Mortes era o mesmo de Deus e o Diabo na Terra do Sol...

Antônio das Mortes é um miliciano, um matador profissional, interpretado por Maurício do Vale, que é contratado pelo delegado Mattos (Hugo Carvana) para matar o cangaceiro Coirama, que anda espalhando pela localidade de Jardim das Piranhas umas idéias... de justiça social, reforma agrária, distribuição de riqueza e um monte de outras idéias estranhas nessa mesma linha. Isso, evidentemente, assuta ao velho Horácio, que apesar de civil, ostenta o apodo de Coronel Horácio (Jofre Soares). Das Mortes tem o laconismo do Gary Cooper em High Noon, e a pontaria do Franco Nero em Django portanto é o cabra mais indicado para fazer o serviço de limpar a àrea.
A estória é simples. Das Mortes passa a mão na sua papo amarelo, calibre 44 e vai atrás de Cairama. Sangra Coirama num duelo épico onde todos os personagens assistem, inclusive Santa Bárbara. Porém em decorrência dos fatos se conscientiza que a luta de Coirama por justiça social era inglória, ainda que legítima. Por isso mesmo exige que Matos leve um recado ao Coronel. Exige que Coronel Horácio abra seus armazens e distribua comida aos pobres, pois como o próprio Antônio das Mortes diz a certa altura, Deus faz o Mundo e o Diabo o arame farpado.. Horácio se recusa, e contrata um outro matador chamado Mata-Vacas para dar cabo de Antônio das Mortes. Oton Bastos interpreta um professor de história que preocupa-se com uma história factual, episódica e memorialista. O professor, sempre manguaça, vive na birosca onde joga sinuca com Mattos, e está aparentemente conciliado com as injustiças locais, ou no mínimo alheio a elas.

O que torna esse filme sensacional, e aumenta a mítica sobre a tal genialidade de Glauber é o fato de que a história principal se desdobra em alegorias atemporais baseadas em narrativas folclóricas, cantos de cordel, e evocações de árias de óperas. Na maior parte das vezes não se sabe se estamos dentro da estória principal, dentro do sonho ou da divagação de algum personagem, bem no estilo de Rashomon de Kurosawa, ou Memento, ou até mesmo forçando um pouco a barra em algum dos filmes de David Lynch. As estórias se confundem e se embricam numa metalinguagem com muito de alegórico, pois, Coirama vê de perto os cutelos da morte mas não morre. Agoniza. Este somente vem a ser assassinado pelo bando de Mata-Vacas. O que aumenta ainda mais a ira de Antônio das Mortes e o sentimento de injustiça que paira no sertão. Para tanto, uma cena emblemática para mim é a do Professor recolhendo os estandartes em meio aos corpos dos jagunços que o bando de Coirama massacrara. Ou seja, incorporando sua luta e se aliando à de Antônio das Mortes. A própria cena final do duelo entre os capangas de Mata-Vacas, a mando do Coronel Horácio, contra Antônio das Mortes e seu agora aliado o Professor de história, é digno dos melhores filmes de Sergio Leone. Tudo é apoteótico, como numa ópera. É fogo pra todo o lado, sol, sertão, bala pipocando, a chapa quente, mas Antônio das Mortes mata a todos do bando adversário, mas não consegue matar ao Coronel. Sua amante Laura (no filme, a deslumbrantemente gótica Odete Lara) é beijada já sangrando pelo Professor numa cena que seria dramática se não fosse tão caricata – aliás como quase tudo no filme . Finalmente, o Coronel é assassinado por um homem negro que chega sobre um cavalo branco, portando uma lança. A alegoria a São Jorge, o Santo Guerreiro, é clara. E o Dragão da Maldade, nem preciso dizer.
Música do dia. Desafio: Abertura do Auto da Catingueira e . Elomar. Cantoria 1.

The Seventh Continent

Lembra da Rosana, uma cantora com cara de silicone que nos anos 80 cantava um troço mais ou menos assim... Como uma deusa você me mantém...? Aquilo era algum tema de novela, que ficava tocando insistentemente em qualquer rádio a qualquer hora do dia e da noite. Como diria o Assis Valente... Nem dá jeito de cantar, Dá vontade de chorar, E de morrer...

Pois é, Georg, funcionário de uma grande empresa, e sua mulher Anna, oftamologista, são um casal de classe média. Ambos têm uma vida confortável, vivem numa boa casa, possuem um carro relativamente novo, consomem produtos de qualidade, sonham com férias numa paradisíaca praia na Austrália e vivem uma vida rotineira. O despertador toca todos os dias às 6 da manhã, Georg se banha, Anna acorda a filhinha para a escola, no aquário os peixes vegetam, no café da manhã quase não falam, ou seja, tudo parece perfeitamente ordenado, eles parecem se conformar com a utilidade funcional do cotidiano onde a repetição de determinados rituais passam a preencher e dar sentido a uma espécie de vazio. Tudo parece perfeitamente ordenado até o dia que a filha da oftamologista mente na escola dizendo que está cega. Aos poucos percebe-se que o casal vive uma vida um tanto miserável, pois a monotonia os torna prisioneiros de uma alienação auto-destrutiva. Passam a surgir sinais de depressão, a indiferença se torna patológica. Georg, um cara competitivo, ascende na empresa passando por cima dos caras ao seu lado. Anna se desespera com o distanciamento da filha. Essa é em linhas gerais o enredo de The Seventh Continent, um filme que definitivamente me fez perder a paciência com Michael Haneke.

Haneke decidiu filmar uma estória baseda em fatos reais de uma família austríaca que comete suicídio. Sim, tal como em 71 Fragments of a Chronology of Chance ou em La Pianiste – que até é um filmezinho máomeno -, Haneke tem gosto pelo tabu. Até aí tudo bem, Stanley Kubrick também tinha. O problema é que há uma distância quilométrica entre Kubrick e Haneke. Kubrick transforma o incômodo do distúrbio numa forma de arte. Haneke transforma o trágico numa simples exaperação de imagens. Numa das últimas cenas antes do suicídio, juro por todos os exús e deuses, com a casa completamente destruída, a família encontra-se na frente da tv assitindo uma mulher cantando em alemão... Como uma deusa você me mantém...

Com isso concluo com duas coisas. Primeiro, mal comparando, você pode até gostar de Heineken, mas a partir do momento que você prova uma Chymay, já não dá mais pra assitir os filmes do Haneke. Segundo, é evidente que sou péssimo em trocadilhos!

Música do dia. Fez Bobagem. Assis Valente/Marcos Sacramento. CD Modernidade da Tradição.

Whisky



O filme Whisky, de Pablo Stoll, lança uma dúvida bem prosaica. Que diabos de relação há entre o nome do filme e a estória dos protagonistas Marta, Jacobo Koller e Herman Koller?

Jacobo tem uma pequena confecção de meias no centro de Montevidéu. É um homem solitário, na faixa etária dos 50 anos, que cuidou da mãe doente até o falecimento desta. Na fábrica trabalham apenas 3 mulheres. Dentre elas Marta (interpretada pela ótima Mirella Pascual), a mais velha, é uma espécie de gerente das outras moças. A relação entre Jacobo e Marta é, antes que fria e distante, uma relação de respeito e cordialidade pautada nas pouquíssimas palavras que trocam no decorrer dos dias. Quando Jacobo chega à fabrica, Marta, pontualmente o espera diariamente. Assim como Jacobo, Marta também é uma mulher solitária que afugenta sua condição humana de isolamento numa sala de cinema após a jornada de trabalho. Na manhã seguinte, a cena dela esperando que o patrão chegue em frente a porta da fábrica se repete religiosamente.

Essa rotina quase mecânica muda na ocasião do Matzeiva da mãe de Jacobo pois seu irmão Herman, que vive no Brasil e também tem uma fábrica de meias, chegará para a celebração póstuma. Jacobo então propõe a Marta que ela fique em sua casa nos dias de estada do irmão, simulando que estão casados.

Nesse momento percebemos que o filme se trata de uma ótima comédia de humor seco e cortante, pois no momento da proposta o telefone toca. Jacobo vai atender. Retorna dizendo se tratar de um engano e prosseguindo a coversa. A presença providencial do telefone tocando em momentos centrais da trama se repete comicamente umas duas ou três vezes. Como por exemplo quando Jacobo com certa torpeza lhe dá uma aliança de “casados”. O anel fica grande e cai no chão. Ela imediatamente se abaixa para procurá-lo embaixo da mesa. Jacobo fica estático. Ela encontra o anel e pergunta se a aliança era de sua mãe. Jacobo responde desconcertado que sim. Providencialmente o telefone toca. Jacobo retorna e diz equivocado. E Marta responde como em outras ocasiões... Sí, a veces pasa.

Aos trinta minutos de filme, vem finalmente a resposta. Para que a presença de Marta não levante as suspeitas do irmão, Jacobo providencia que Marta passe uns dias em sua casa e a leva para que tirem uma foto como casados. Nesse momento o nome do filme faz sentido. No estúdio fotográfico eles estão sobre um fundo azul, bem vestidos e constrangidos. O fotógrafo diz, A ver una sonrisita... digan whiskyyyy.... Eles se abraçam de maneira torpe e repetem a palavra whiskyyy mostrando os dentes, simulando um sorriso, sem muito empenho.

Tudo pronto. So falta Herman chegar.

A presença de Herman torna tudo muito mais constrangedor. Os dois irmãos não se viam há anos, não tinham maiores intimidades. Herman é um tipo expansivo e auto-centrado, sua efusividade contrasta com a indiferença de Jacobo a tudo e a todos tornando o filme uma comédia com detalhes brilhantes. Como quando os irmãos, que não se viam há anos, se presenteiam meias. Ou quando vão assistir um jogo de futebol da segunda divisão, do time de Jacobo. Ou quando decidem ir passar uns dias num hotel no balneário de Piriápolis, um local onde os irmãos iam de criança e que se encontra decadente e vazio.

O roteiro do filme, assinado pelo diretor, por Juan Pablo Rebella e Gonzalo Delgado Galiana, tem diálogos econômicos e situações de inisitada originalidade. Eu diria que este é um roteiro muito bem amarrado. A frieza e a parsimônia com que os personagens são apresentados permite a revelação gradual de detalhes de suas personalidades através de pequenos gestos incorporando-os a um sentido mais universal de melancolia e solidão. Além disso é evidente um certo sabor das comédias do romeno Cristi Puiu e do finlandês Aki Kaurismäki em algumas situações do filme.

Uma curiosidade trágica: no dia 7 de julho fará 3 anos que o roteirista Juan Pablo Rebella se matou. Ao lado de seu corpo, em frente ao computador, foi encontrado um revólver calibre 32 e uma garrafa de whisky pela metade.


Pina Bausch

O mundo perde uma das grandes coreógrafas da dança moderna. Pina Bausch morreu ontem, cinco dias após ser diagnosticada com câncer. Nunca tive a oportunidade de assitir Bausch dançando, mas já assisti vários vídeos de suas performaces e coreografias. Muito antes de assistir ao filme de Almodovar Hable con Ella - onde Bausch faz uma breve aparição exibindo um fragmento do Café Müller - o que mais me atraía em seus movimentos era a inovação da linguagem corporal. Bausch (além de van Manen, Balanchine, Cunninghan e toda essa turma) recriou a expressão do corpo contemporâneo, desenhando movimentos repetitivos e fragmentados, quebradiços, e ao mesmo tempo sugerindo uma proximidade entre a dançarina e o público, como se convidasse-nos a um diálogo quase sussurrado. Havia muito de teatro em suas coreografias. A expressão corporal e a expressão facial eram elementos importantes em suas composições que sugeriam algo visual, algo narrativo e nem sempre harmônico ou pacificador.

Toda essa geração de Bausch e Merci Cunninghan - que tive a feliz oportunidade de assistir ao vivo meses atrás, ele já com 90 anos e numa cadeira de rodas - está nos deixando....

Neda Agha Soltan

Há meses atrás recebi um email bastante grosseiro, em inglês, sobre essa postagem
http://ilusaodasemelhanca.blogspot.com/2008/12/golias-davi.html
A foto tinha sido retirada do jornal El Pais.
Não respondi.

Nesta semana, ainda titubeante, decidi não colocar o vídeo da morte de Neda Agha Soltan assassinada por um atirador de elite Basij, pois  a brutalidade de imagens dolorosas como estas, apesar de longe dos olhos, povoam o mundo diariamente.
http://www.youtube.com/watch?v=Ej59UI5yyw8&feature=related

Os Basij são uma espécie de grupo paramilita surgido na época da revolução iraniana, e aparentemente tão brutais e corruptos quanto outras milícias próximas a nós.

Um Poema de Amor e Duas Canções Desesperadas

Tom Waits - San Diego Serenade 1974 - Disco. The Heart of Saturday Night.


Crosby, Stills and Nash Suite: Judy Blue Eyes Woodstock 1969


Jethro Tull - Living In The Past 1969

SoBRe NOtíCiAs e ChIChas



De tanta bobagem que li na internet hoje, a opinião mais ponderada é a do Nassif.



Mas não nos iludamos... Amados Pinheiros sempre existirão... com o sem diploma.


Casa de Bonecas


Casa de Bonecas é uma magnífica peça em moldes feministas de 1879. Na versão escrita original, Ibsen ambienta toda a ação num cômodo da casa, geralmente na sala de visitas, nas vésperas de Natal. A versão de 1973 que assiti, dirigida por Patrick Garland, é filmica e diga-se de passagem estática, com poucos mas distintos cenários, ainda que os diálogos sigam em grande medida o roteiro original de Ibsen.

Toda a trama se passa em torno à família Helmer. Anthony Hopkins é Torvald Helmer, o diretor de um pequeno banco de investimentos, um businessman extremamente concentrado em seus negócios, casado com a delicada e confusa Nora Helmer. Torvald, em sua concepção, tem uma casa perfeita, com empregados conscienciosos que servem a filhos perfeitos, bem como à sua esposa perfeita. Nora Helmer, com seu toque feminino, esforça-se a nível da quase-insanidade para que este mundo construído por Torvald continue assim, como numa casa de bonecas. Lendo a peça, me pareceu vagamente que Torvald Helmer seria um homem autoritário. Impressão apagada pelo efeito desconstrutor que Anthony Hopkins imprime ao personagem, tirando-lhe o peso maniqueista que por vezes o leitor carrega da leitura e tranformando-o num tipo refinado, de gestos contidos, e um tanto edulcorado.

De certo que em toda a peça há um certo maniqueísmo nos diálogos, com uma forte dose de moralidade sobre qual seria o papel dos esposo e da esposa num casamento em moldes conservadores e (?) vitorianos – nem sei se o termo se aplica à Noruega. Curiosamente o Natal não é apresentado como uma festa religiosa e quando o celebram, o fazem com danças e fantasias fora de casa. Interessante, pois no ajuste das contas finais entre Nora e Torvald, no terceiro ato – da peça escrita - , ela evoca essa referência referindo-se a tudo a sua volta com uma ótica absolutamente material, querendo, mas sem poder, se distinguir da ótica do próprio Torvald.

Neva fora. Nora faz os últimos arranjos na decoração de natal. A neve que Ibsen evoca constrasta com o calor artificial do lar dos Helmer, por um motivo específico. Nora, anos atrás cometeu um crime de estelionato para cobrir uma dívida de Torvald, sem este saber que as promissórias tinham sido assinadas em seu nome pela própria esposa. No fim do primeiro ato, Nora é chantageada por Nils Krogstad, um empregado do banco onde Torvald ascende profissionalmente. A razão da dívida é um tanto obscura. Algo relacionado a uma viagem a Itália. Algo relacionado ao pai de Nora, que considerava Torvald um incapaz financeiro... enfim, algo que em hipótese alguma justificaria o crime. A razão da chantagem é a falta de confiança que Krogstad inspira em Torvald. Na corda bamba, tendo seu emprego em jogo, Krogstad decide chantagear a esposa do chefe.

Nesse momento, uma velha amiga de Nora, Mrs. Linde, retorna à cidade procurando emprego já que encontrando-se viúva e com filhos, procura no trabalho o preenchimento de seu vazio vital. Linde conversa com Nora, enquanto Dr. Rank conversa com Torvald no escritório deste. Linde pede para que Nora interceda por ela junto a seu marido com o intuito de conseguir-lhe um emprego no banco. Nora revela a Linde o episódio da falsificação da assinatura e do empréstimo e pede para que esta consiga as promissórias assinadas com Krogstad. Nesse momento, em que Rank e Torvald deixam o estúdio, enquanto Torvald comenta sobre a corrupção da sociedade, Krogstad chega e entra no estúdio para pedir que Torval d o mantenha em sua posição já que há fortes desconfianças de sua retidáo moral. Do lado de fora, Dr. Rank, que arrasta uma asa por Nora numa atitude que lhe causa a fascinação de algo semi-proibido, ousado, afirma que Krogstad e um dos seres mais corruptos do mundo. Dentro do escritório Torvald comunica a Krogstad que seu posto foi dado a Linde.

Nesse momento começa a triangulação que se desenrolará nos próximos atos. Krogstad procura Nora pressionando-a para que ela consiga seu posto de volta, com a condição de que caso não consiga revelará o crime ao seu marido. Linde, a pedido de Nora, procura Krogstad tentando convencê-lo de que volte atrás. No entanto, no momento em que Linde chega a casa do chantagista, a carta reveladora, escrita por ele, já havia sido enviada. Essa tensão se arrata pela noite de natal, com a carta enviada, já na caixa de correios, até que finalmente de volta da festividade, Torvald decide conferir sua correspondência. Encontra dois cartões de visita de Dr. Rank com cruzes negras. Torvald não entende a mensagem, mas Nora, ainda em estado de choque pelo seu destino iminente, revela que Rank – um homem absolutamente apaixonado poe Nora - se mataria naquela noite. Quando Torvald prepara-se para entrar em seu estúdio e conferir o resto de sua correspondência, Nora se retira e se prepara para deixar a casa. Nesse momento decisivo e dramático da peça, Torvald para-a agressivamente, desesperado, aturdido, dizendo coisas sem sentido, atacando-a verbalmente agitando a carta de Krogstad nas mãos. Torvald, desesperado, apenas preocupa-se com o abalo de sua carreira em ascensão. Culpa-a de maneira despropositada por qualquer iminente ameaça. Seu amor desesperado pela esposa se desfaz como numa onda que varre um castelo de areia. Ele a insulta sem que ela reaja, sem que ela se altere na condição humilhante em que se encontra naquela espécie de estágio de vigília inicial de um longo sono. Nesse momento a empregada entra com mais uma carta. É uma segunda carta de Krogstad se desculpando por tudo contendo as as letras de câmbio assinadas por ela. Torvald exultante abraça-a e tenta a reconciliação, após a série de palavras insensatas despejadas na discussão de instantes anteriores. Propõe a reconciliação e que tudo volte ao normal.

É tarde. Tarde demais. O diálogo final, é um dos grandes e memoráveis momentos da história do teatro. Ele compassivo, ela encarcerada em seu mimetismo. Eh comovente a força de uma mulher que não sabe exatamente para que direção partir, mas que não tem outra saída se não a de deixar para trás o passado, irreconciliavelmente.

Eugénie Grandet


Eugenia Grandet ou Eugénie Grandet, novela de Honoré de Balzac é parte do projeto da Comédia Humana. De um modo geral a estória trata de Eugenia, a portagonista, filha de um rico e ambicioso homem de província e de como essa prosaica, trivial e até ingênua mulher contorna a realidade de uma vida familiar solitária e sem desafios. A composição dos personagens que giram em torno a Eugenia é de uma riqueza psicológica que só mesmo Balzac poderia criar. A moça é bela e apesar de passar dos 20 anos ainda mantém uma certa inocência dada pela combinação das convenções sociais da vida no interior e a constante vigilância da mãe, uma mulher infeliz e, segundo a descrição de Balzac, não lá muito dotada de beleza física. Pela lenda que corre na cidade de Saumur, o pai, o senhor Grandet, possui uma fortuna incalculável e isso desperta a cobiça das famílias locais em torno da mão se sua jovem filha, ainda que esta se mantenha fiel ao seu jovem primo Charles que chega de Paris após a falência e morte do pai.

É uma estória de trama simples, mas que retrata de maneira bem cinematográfica a escalada de um plebeu que nada mais vê a sua frente que o brilho enriquecedor do ouro. A ganância do senhor Grandet é inescrupulosa. Chega a ser caricata mas não de todo inverossímil, pois mostra bem a trajetória de um novo rico de província que coloca a ascensão social e financeira acima de sua própria família, da esposa, da filha única Eugénie, e da empregada Nanom - que de certa forma participa dos meticulosos gestos mesquinhos de seu senhor para salvar sua própria pele.

É nesse cenário de uma casa solitária, monótona e melancólica, que a introspectiva Eugenia habita, até que seu primo Charles chega de Paris. Nesse momento da chegada do sobrinho, o senhor Grandet recebe a trágica carta anunciando o suicídio do pai de Charles, seu irmão. Charles que chegara com hábitos cosmopolitas, roupas estranhas e extravagantes jamais vistos pelas mulheres, havia sido enviado a Saumur pois seu pai falira e não tendo mais condições de criar o filho, envia-o aos cuidados do tio. A monotonia em que Eugenia vivia logo se apaga. A jovem passa a querer agradar o rapaz a todo o custo, ordenando que a empregada preparasse pratos especiais, providenciando velas para que ele pudesse ler à noite... Tal mudança de comportamento é notada pelo avarento Grandet.

Charles ao saber da falência e suicídio do pai, entra em depressão profunda o que causa verdadeira comoção nas mulheres da casa. Eugénia, ainda abalada e compadecida pela notícia invade sorrateiramente o quarto de Charles que estava adormecido e lê algumas de suas missivas. Numa destas, pede a um amigo para vender seus pertences e pagar todas suas dívidas, já que irá tentar a vida nas Índias. Noutra, descobre que Charles tem uma namorada em Paris o a torna apreensiva. Entretanto, ignorando a dor do sobrinho, o senhor Grandet, articula sua ida às Indias com o intuito de se livrar de uma boca a mais na casa. O intuito avaro do homem contrasta com o sentimento de misericórdia e admiração da filha, Eugenia e da mãe desta. E percebendo as articulações do pai, Eugenia dá a Charles umas moedas de ouro, presente de seu pai, para que ele recomeçe a vida nas Indias.

Agora, do meio para o fim de um livro que é impossivel largar, a ironia fina de Balzac começa a operar. Charles, após anos nas Índias fica tal qual Grandet, com perdão da má palavra um somítico. Como se o individualismo e a escrotice de Grandet tivessem passado por osmose, ao passo que Eugenia passa a adquirir certos rasgos de personalidade do pai, Charles, distante, viajando por anos em mares das Indias e das Américas, se embrutece e esquece o amor que prometera a Eugenia. Nessas viagens faz dinheiro comercializando escravos negros e chineses e praticando a usura. O embrutecimento, talvez decorrente de suas atividades, torna a relação com a prima uma relação distante e meramente financeira, já que ela emprestara seu primeiro capital para iniciar a viagem.

Enquanto isso, Eugénia perde mãe e logo em seguida o pai. O espólio a torna tão quanto uma mulher rica, uma mulher em busca – continuando o legado da nossa miséria - da solidificação da fortuna do pai. De uma maneira mais branda, é verdade.

Alguns anos se passam até que recebe uma carta de Charles contando que se casaria com uma das herdeiras dos Aubrion, em Paris. Destruída toda a ilusão vê quão falsa foi sua espera e sua esperança. Descide então se casar por conveniências com o advogado Bonfons, não sem antes imbuí-lo de uma missão: ir a Paris e saldar as dívidas do primo. Porém, quis o destino que o rapaz morresse após breve trajetória política, revelando que este, não o destino, mas Bonfons não fosse o homem tão respeitoso que ela pensava se tratar. O rapaz tinha, como dizia-se no tempos antigos “amigas”.

Um romance simples, mas Balzac possui uma capacidade de descrição psicológica e corrosiva do endurecimento da alma diante das ascensões materiais. O livro termina num tom um tanto melancólico, nem tanto pela aura de contorno romântico com a qual Balzac envolve a jovem, mas pela forma com que Balzac optou por conduzir a estória em dois campos sem tramas paralelas ou zonas cinzentas. Balzac nos faz viajar em dois continentes isolados, um mundo da ambição patriarcal e um mundo de ingenuidade onde a protagonista, Eugenia, gradualmente se anula, e que raramente se cruzam.
No meio do livro ainda há uma esperança. O leitor embarca na possibilidade do romance açucarado de Eugenie e Charles, quando esta tenta com suas parcas armas de sedução conquistar Charles. Essa é a mesma esperança de Stefan Zweig na biografia de Balzac quando lá pelas tantas diz, “A pequena Eugenia Grandet, em si trivial e um pouco ingênua, ao não se sujeitar ao olhar ameaçador de seu pai avarento por um torrão de açúcar no café de seu querido Charles demonstra tanto valor como Bonaparte quando atravessa precipitadamente a ponte do Lodi com a bandeira na mão.” Só para constar -até para mim que não sabia -, a batalha de Lodi foi o episódio no qual Napoleão derrota o marechal Beaulieu abrindo caminho austríaco para que as tropas francesas cheguem a Milão. A comparação é, sem intermitência, não sem intencionalidade, pois antes da virada do século ninguém sabia no que Napoleão se transformaria. Tampouco no que Eugenia viria a se tornar após a morte dos pais. Mas no final, com Eugenia já balzaquiana - perdoem o tocadilho - e portanto sem a ingenuidade de outrora, as famílias locais começando a confabular novamente sobre a da mão da jovem viúva, não há como não lamentar o legado da nossa miséria.

Garrincha


Não sou botafoguense, ainda bem. Mas se fosse ficaria triste com o filme Garrincha -- Estrela Solitária. Esse é o sentimento que toma conta do espectador, independente do clube de coração, ainda no meio do filme. Um filme laudatório, formal e extremamente mal feito e mal produzido. O cinema brasileiro já vem fazendo isso há algum tempo, transformando excelentes biografias em filmes de qualidade e gosto duvidosos. Primeiro, com Olga de Fernando Morais, e agora com o fantástico Garrincha -- Estrela Solitária, de Ruy Castro – diga-se de passagem, sem reserva alguma, um dos melhores biógrafos brasileiros.

Não sei exatamente o porquê deste fracasso mas em relação ao filme em questão, Garrincha – estrela solitária, dirigido por Milton Alencar e com roteiro de Rodrigo Campos, me parece que o ator principal, André Gonçalves, não entendeu bem as duas faces do espírito de Garrincha, a alegria da juventude e a decepção do fim da vida – optando por interpretá-lo o tempo todo com uma expressão apática e distanciada dos anos de alcoolismo. Além disso, o roteiro, assinado Rodrigo Campos, me pareceu extremamente formal, optando por iniciar o filme exatamente pelo fim da vida, quando Garrincha, empobrecido, cheio de filhos, cheio de amantes e entregue à bebida, não era a sombra que foi, dando assim um aspecto decrépito ao mito. O filme mostra que a opção do flashback é sempre perigosa no cinema. Se não for bem feita, resulta e trabalho mal acabado e até desrespeitoso.
Além disso o filme, já que biográfico, deixou de fora vários pontos importantes que poderiam amarrar melhor a história. Por exemplo, as atuações do craque com os joelhos enxarcados de infiltrações em analgésicos, as batalhas judiciais em torno do divórcio da primeira mulher de Garrincha, representada por Dirceu Rodrigues Mendes, um advogado pralá de mau-caráter, e as inúmeras tentativas de retorno aos campos, jogando pelo nordeste e até mesmo em campos de várzea para conseguir alguns tostões no fim da vida.

Decepção. Não cheguei a ver Garrincha jogar, mas acho que a transposição da biografia do cidadão para a tela grande deveria ter sido um pouco mais cuidadosa. E olha que sou flamenguista, se eu fosse botafoguense escrevia um desagravo!

Pá de Palavras

Gostei muito de alguns documentários assistidos duas semanas atrás no II Reel Time Brazil Doc Film Week. Primeiro, o Palavra (En)canatada. Helena Solberg, a mesma que criou o exímio Carmen Miranda - Bananas is my Busines, dessa vez, atacou com um documentário original sobre uma idiossincrasia típica da música brasileira, que é a de musicar a lírica, ou melhor, a de por melodia na poesia. A idéia não é original, a bem da verdade. Muita gente fala disso há anos. O intragável, ácido e preciso José Ramos Tinhorão já falava disso nos idos de 1970. Tudo bem, enfatizava uma questão de classe e falava com certo desprezo, mas falava. O próprio José Miguel Wisnick, em suas comparações entre a cultura americana e a brasileira, cita de passagem as diferenças que marcam o folk americano da música brasileira. Enfim, mas se todos já falaram, qual seria o mérito de Helena Solberg? Muitos. Um bem prosaico, pelo menos para mim, Solberg foi a primeira a reunir toda essa informação numa pesquisa criteriosa e disponibilizar para mim o trio literatura-cinema-música numa tela de cinema, numa linguagem clara e sem exibicionismos.

Os depoimentos sustentam com certa credibilidade uma tese até certo ponto incômoda para quem trabalha ou vive da escrita. A tese de que a produção musical brasileira evoca a tradição medieval da oralidade, da trova provençal, da estória cantada pelos menestréis, que veio se transformando em cinco séculos, cadenciadamente desabilitando colonizadores que tentavam perpetuar nossa cultura por meio da palavra escrita. O filme é cronologicamente linear, começando pela influência da poesia na canção clássica da Era do Rádio, passando por Dorival Caymmi, a Bossa Nova, o Tropicalismo e chegando ao rap. A tese, se de certa forma incomoda pela frágilidade sazonal, de certa forma também derruba a velha idéia elitista de gente como o poeta Bruno Tolentino, que antes de morrer bateu-se claramente, de maneira reativa, no marco divisório entre poesia e música. A idéia central do doc, dá conta que a tradição se transforma, mas não se perde pois se retro-alimenta. Enfim, tem uns caroços pelo caminho, como o hip-hop que não foi ainda absorvido pelos artistas que fazem música para classe média e que é original, mas distante daqueles que controlam a logomarca MPB.

Basicamente, Helena reuniu um time da pesada da música como Chico Buarque de Hollanda, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Lenine, Antônio Cícero, Tom Zé, Luiz Tatit, e um rapaz que confesso não conhecia por eu já ter mais de 32 dentes e há tempos alguns cabelos brancos, chamado Lirinha - cara impressionante que musicou as poesias de João Cabral de Melo Neto. Reuniu toda essa gente para refletir a relação entre a música popular, poesia e literatura. Além dos depoimentos, o doc mostra imagens emocionantes, como a de Dorival Caymmi jovenzinho com seu bigode Errol Flynn-canastrão, cantando O Mar; e as da encenação da peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, no Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França, em 1966.


Outro imperdível, numa linha diametral, é o documentário de Pedro Cezar Só Dez Por Cento é Mentira, sobre a vida e obra do poeta sulmatogrossense que um dia disse “As coisas que não levam a nada tem grande importância,” Manoel de Barros. Aos 91 anos, com mais de vinte livros publicados e vivendo atualmente em Campo Grande, Manoel de Barros é um cidadão meio arredio às entrevistas, dificilmente biografável ou rotulável. O diretor Pedro Cezar ousou em filmar poesia com poesia no melhor estilo de um Andrei Tarkovsky. Exagero? Pode ser, pois ao filmar ou narrar o que é poético pode-se cair facilmente na imprecisão de adaptar a palavras escrita para a tela, mas isso é pecado original da sétima arte. Já nasceu com ele e não dá para fugir nem com muita àgua benta, nem com todos os sacramentos. Fato é que a dificuldade não implica necessariamente na impossibilidade da tentativa e por isso mesmo, o documentário todo é de uma beleza plástica impressionante. Alternando seqüências de entrevistas com o escritor e com outros poetas, versos de sua obra e depoimentos de especialistas em sua poesia, Pedro Cezar intercala-os de maneira calma com imagens de objetos do cotidiano que só outro poeta como Aldir Blanc poderia definir... “soro poluído de pilha e folha morta, de aborto criminoso, de caco de garrafa, de prego enferrujado, dos versos do poeta, pneu de bicicleta.” Enfim, glosando o homem, só que tem esse soro nas veias pode sentir tudo aquilo que nossa civilização rejeita , pisa e mija em cima, e que serve para a poesia. Pedro Cezar, ousou em tentar fazer e se saiu bem ao imprimir aquelas texturas de tom ferruginoso à sua narrativa documental.

Eu conheci a poesia de Manoel de Barros há uns 15 anos através do saudoso Caderno Idéias do Jornal do Brasil, por uma entrevista absolutamente displicente do poeta, que quando perguntado sobre o que lia, simplemente respondeu que havia lido há muitos anos o Baudelaire, o Benjamin, mas que aquilo tudo era muito complicado para sua cabeça... Achei engraçadíssimo o homem responder daquela forma, pois alguns eus líricos de poetas têm personae tão arrogantes que é melhor mesmo não topar com seus egos. Fui ler o homem exatamente por esse descompromisso com a complexidade e fiquei mesmo impressionado com aquela coisa de misturar prosa de Rosa com existencialismo de Sartre, objetos em si complexos, com um monte de coisas de roceiro (como passarinho, lagartixa, cuspe, mulher prenha...). Desde então, nunca mais parei de ler e o Gramática Expositiva do Chão que passou a ser um desses livros que volta e meia folheio, por trechos como este:

“Faz muito calor durante o dia. Sobre a tarde as cigarras destarracham. De noite ninguém consegue parar. Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. Passarinho ja compreendeu, está quieto no galho. Os bichos de luz assanharam. Mariposas cobrem as lâmpadas. Entram na roupa. Batem tontas nos móveis. Suor escorre no rosto.
Todos sentem um pouco na pele os prelúdios da chuva. Um homem foi recolher a carne estendida no tempo e na volta falou: “Do lado da Bolívia tem um barrado preto. Hoje ele chove!”

Para terminar, o documetário tem depoimentos do grande Fausto Wolff, de um guia turístico de “deslugares” da poesia de Manoel em Corumbá, de uns acadêmicos e poetas como Bianca Ramoneda e Elisa Lucinda, e para mim, o mais interessante de todos, de um cara que faz que faz geringonças, tipo um esticador de horizonte, com sucata e as nomeia com trechos da poesia de Manuel. Esse documetário é fantástico, e bem diferente do primeiro, por que justamente não tenta definir nada na universo de Manuel de Barros - pois reparando bem é um universo composto de 90% invenção e só 10% mentira, que não tem a menor importância, que, cá pra nós, não serve pra nada, e só quem desiste de entendê-lo pode realmente ter o gozo de contemplá-lo! Otimo! Melhor doc disparado da mostra.

Nota. Entrei no cinema com 3 minutos de atraso. Breu total. Tateio e encontro uma cadeira. Faltando meia hora para o final a fita começa a dar problema. Um cara levanta e sai correndo para trás do cinema. A fita volta a funcionar. O cidadão volta ao assento onde tinha deixado a mochila. Conclusão: tive a honra de assistir tudo ao lado do Pedro Cezar. Pior: como sou um tremendo arredio que beira a otarice, não falei com ele. Deveria.

Música do dia. Natura, Festa do interior. Música de Sobrevivência. Egberto Gismonti

O Alçapão de Marcelino

...como dizia Balzac ao descrever o senhor Grandet, em Eugénie Grandet,

«O senhor Grandet desfruta em Samur de uma reputação cujas causas e efeitos não podem ser totalmente compreendidos por pessoas que não tenham vivido muito ou pouco numa província»,

...por essas e por outras, imagino que o livro Marcelino, de Godofredo de Oliveira Neto, talvez deva ser compreendido com esse olhar, nesse diapasão de quem tem parentes na roça, e que ao mesmo tempo vê, escuta e sente tudo, com a devida familiaridade da matuta estranheza. Ou seja, um olho na roça e um olho no Modernismo.

...a estória se passa nas costa do litoral de Santa Catarina, onde vive Marcelino Alves Nanmbrá dos Santos, o herói  -  ou anti-herói do romance. Marcelino é um jovem pescador, neto da mistura de uma avó índia, com um escravo e um açoriano. Profissionalmente, Marcelino cruza e cabeceia,  é uma espécie de arrais, pescador e contramestre, que pilota um barco de pesca, o Divíno Espírito Santo, presente se sua avó a quem dedica toda sua memória e agradecimento. A embarcação, que aos 15 anos recebera de presente, é uma baleeira de onde tira seu ganha-pão e que seria razão de sua vida, e diga-se de passagem, do início de sua desgraça.

...eventualmente, Marcelino, trabalha para o ex-senador da República e alto funcionário do governo federal Nazareno Correa da Veiga di Montibello, casado com Emma Alencastro quando este passa férias na Villa Faial, na praia do Negro Forro: tipo assim, leva para passear, traz um peixinho fresco… e por ai vai.

...os Di Montibello são uma família politicamente poderosa. A casa e a rua são a mesma coisa. Usufruem da coisa pública de uma maneira semelhante com que administram a casa. Os cientistas sociais diriam assim ó, dos Montibello: o aconchego e as formas emotivas, falsamente próximas, com que tratam os empregados são levadas à esfera do Estado com naturalidade sem maiores dramas quanto à reserva do que é privado ou público.

...além da grana, da ascendência baseada no patrimonialismo, e do poder baseado na imbricação política, os Di Montibello tem dois outros tesouros. As filhas Sibila e Martinha. Sibila é uma menina que, na flor da puberdade, insinua-se para Marcelino – que não é bobo né! Não que aos 18 anos o rapaz não sentisse falta de uma mulher. Sentia. Obvio que sentia. Imagine, você leitor, os hectolitros de testosterona, próprios dos 18 anos, projetados numa Sibila andando por ali pela praia do Negro Forro. Mesmo em seu silêncio, Marcelino, que é jovem de vida simples, e que cuida de pássaros, e que vive em harmonia com a natureza e com os vizinhos, tem seus momentos de reflexão e divagação romântica, se é que vocês entendem quando se fala de Romantismo. Ou seja, no plot do livro, Marcelino sabe que se chegar junto em Sibila a treta fica cheia de complicações.

...Nego Tião é o amigo de Marcelino que entende da vida prática. O rapaz é aquele anjo torto que todo o amigo tem. Nego Tião tá de olho em tudo. Vê que a moça se insinua para Marcelino de uma maneira diferente, mas que este estranhamente não corresponde às investidas. Nego Tião então o instiga para conhecer as mulheres do “L’Amore”, onde, segundo o próprio, Rosália lhe ensinaria tudo. Ou seja, tudo. Nesse caso tudo é tudo, entendeu?  Mas ele não consegue convencer a um Marcelino que dispensava no “Amore” tanto quanto tudo aquilo que poderia encontrar em Sibila. Enquanto no “L’Amore”, segundo reflexões de Marcelino, estavam as mulheres de todos e, portanto, nenhuma que se encaixasse em seu universo idílico,  filha do senador, não fazia por menos em mostrar-se sempre superior, elitista, cosmopolita - caso se pudesse dizer isso de alguém do Rio de Janeiro. Mas de fato, sempre quando Sibila passava férias na Villa Faial, o jogo de sedução se repetia, ano a ano.

...os personagens secundários são igualmente um universo à parte nesse mosaico balzaquiano que o autor vai montando aos poucos. Mesmo sem dar muito ouvidos ao Nego Tião, é só junto aos companheiros do colégio Luis Delfino que Marcelino se sente em casa, à vontade, com os seus. Seus como a professora Ednéia, como Martinha, filha de Ézio, da venda de Praia do Nego Forro, menina sonhadora que queria casar  - talvez com Marcelino. Ou seus, como o próprio Tião do Luiz Delfino, um amigo próximo, que é o responsável por desvendar a razão do estoicismo de Marcelino. Tião é quem descobre  ter sido Marcelino embruxado pela alemoa Eve, a governanta dos Di Montibello. A mulher que pelo apodo de “potranca polonesa” devia mesmo ter nada de metafísico e muito de femme fatale. No fundo, Marcelino só tem olhos para a governanta do doutor Nazareno Correa. Sendo mais claro, Marcelino só tem olhos para butique da alemoa.

...e justamente no momento em que a paixão por Eve é revelada na trama, sua vida parece virar de ponta a cabeça. O jovem tem seu destino mudado a partir de uma tempestade no mar que causa grandes estragos a sua embarcação e pior que isso, resulta na morte de um de seus ajudantes, um menino aprendiz de nome Edinho. De volta à Praia do Negro Forro (vizinha de Santo Antônio de Lisboa, Ilha de Santa Catarina – se não sabe onde é, dá ai um Goolgle), atormentado pela perda, Marcelino Nanmbrá, ou simplesmente Lino Voador, retorna desnorteado, remoído pelo arrependimento, ferido gravemente na mão.

...gravemente ferido na mão e deprimido, Marcelino está entregue a uma espécie de letargia, quando Eve aparece em sua casa. Ele interpreta a visita como algo mais que solidariedade. Dá-se um diálogo de surdos. Ele, ainda atormentado pelo infortúnio, e a polonesa falando de planos mirabolantes que consistiam em Marcelino salvar o Brasil. Percebendo que suas palavras não surtiam efeito nos pensamentos ausentes do pescador, Eve começa a insinuar-se, o que faz com que Tião, um tipo digamos mais sagaz para esse tipo de coisa, dias mais tarde interpreta o evento de maneira prosaica, comentando que a polaca anda com calor nas partes.

,,,as férias acabam. Os Di Montibello retornam ao Rio. A mão ferida piora por falta de tratamento. A febre toma conta de seu corpo, a gangrena é inevitável e a amputação da mão uma consequência natural. Tudo podia ser trágico, mas o autor estanca aqui o calamitoso.

,,,aqui, Godofredo começa com suas investidas no triller de espionagem. Diga-se de passagem, muito bem fundamentado em fatos históricos e em detalhes históricos que passam pelas transmissões do Reporter Esso, e pelas linhas das revistas Seleções, Diretrizes, e por ai vai. A série de acontecimentos e infortúnios em torno ao acidente de Marcelino desencadeiam uma manipulação de bastidores dos inimigos políticos de Nazareno Correa. 

...Eve e o Senador convencem Lino a passar uns tempos no Rio para se recuperar e cuidar dos pássaros do Senador, entretanto, o que está em jogo é uma ação muito mais ambiciosa. A casa do senador é frequentada por políticos, empresários, agricultores, exportadores, banqueiros e toda uma gama de gente do andar de cima, simpatizante ou não do governo. O próprio senador é homem que tem livre acesso ao Palácio do Catete. Estamos mais ou menos nos inícios dos anos 1940, época da política das barganhas de Vargas. Anos antes, Karl Ritter é declarado persona non grata, pelo governo brasileiro, o Wilhemstrasse paga com a mesma moeda expulsando Moniz Aragão da Alemanha, o Eximbank manda dinheiro para a constução da CSN e por trás desses grandes acontecimentos pendulares internacionais entre os pró-americanos e os simpatizantes do Eixo, existe a política palaciana no Catete muito mais local e realista como foi o governo Vargas. E é ai que entra o Claudionor!

...Claudionor é dos assessores políticos de Vargas, visto por aqueles dias de estada de Marcelino no Rio com Eve e seu grupo. A figura nefasta na política das paragens da praia de Negro Forro, por ter interferido na decisão de Getúlio em romper relações com o Eixo e consequentemente contra a Alemanha. Em seus diálogos internos, Eve sonha com ver Lino matando-o a tiros. E Lino, aos poucos passa a acreditar nos sonhos megalomaníacos da amante, e entende, em sua maneira peculiar de entender o mundo, que ele salvaria o Brasil eliminando Claudionor.

...bom, eu também paro por aqui, respeitando o clímax da estória, e dou um salto de algumas páginas para o final reconciliador. Marcelino regressa a Santa Catarina num cargueiro sujo e infestados de arganazes. Esquecido e “perdoado” pela família dos patrões grã-finos. O Marcelino que retorna à p
raia do Negro Forro como um  farrapo humano. Chega irreconhecível - aqui, por volta do capítulo 98, pode haver um pequeno erro de continuidade, pois o protagonista é algemado...como algemado? Entendeu? 

Os Di Montibello acharam por bem, melhor dizendo, que pobre coitado fora enganado pelos nazistas. No dia seguinte, todos correm para a àrvore onde Marcelino pendura suas gaiolas em galhos altíssimos. Anda de galho em galho, vago nos princípios e impreciso em suas desilusões, carregando memórias absolutamente enigmáticas. Para os que o viam do pé da árvore, não faziam do que ocorrera no Rio. Estes, pensam que se jogará. Martinha murmura de amor. Tião sobe para tentar socorrê-lo. A professora chama-o manumisso. Talvez fosse. Talvez não. Fato é que todos os personagens desconhecem sua intenção, e inclui-se aí o leitor, já que Godofredo Neto, habilmente segreda o foco narrativo de Marcelino, calando-o nos momentos decisivos da trama. O alçapão de Marcelino, ou melhor, a gaiola de Godofredo de Oliveira Neto não é feita para pegar trouxas. Ou é…


...pois um  muito trouxa como eu, tem a impressão errônea, ao fechar o livro, de que Marcelino figura como um títere. Um objeto de mofa utilizado pela família do senador, por Eve, e pelos seus amigos. Mas essa idéia vai se desfazendo aos poucos, ao se perceber que do ponto de vista da construção do personagem, Godofredo de Oliveira Neto rompe logo de cara com duas idéias genéricas contidas no Modernismo. Primeiro, seu livro se encaixa talvez muito de longe na proposta Regionalista. Há ali obviamente essa tal tensão entre o idílico e o realista, o vinco entre a oralidade e a língua culta (inclusive atentando para as idiossincrasias do português falado na Negro Forro e no Rio de Janeiro), entre o campo bucólico e cidade perversa. Mas pára por aí e não se prolonga nisso de maneira lá muito exaustiva. Segundo, o autor, mantendo a estrutura narrativas de tempo, respeitando a separação muitas vezes irreconciliável entre o culto e o popular – clara quando Marcelino trauteia uma ària de ópera ouvida na casa dos Di Montibello - , imprime um profundo respeito com a linguagem, e não assume o texto como um relato, onde o narrador é onipresente. Nesse ponto, rompe e ultrapassa a herança modernista e meio tosca de herói. Godofredo tira Marcelino do espectro desse herói... daquele herói..., que sem nenhum caráter, que racionalmente se posiciona acima do bem e do mal, que por isso mesmo isenta-se da moral, é um herói que por malabarismos linguísticos transforma-se no herói a procura de um caráter.

...a pretensão de Godofredo de Oliveira Neto é clara, ao menos para mim. O autor tenta fugir da retórica do Modernismo, que a reboque de tanto academicismo, de tanta bobagem, criou, e tenta refundar seu Marcelino claramente como um herói pré-moderno, nos moldes dos heróis vencidos bem próprios e mais próximos de um protagonista da obra de Lima Barreto - o mais visionário e avançado dos modernos. Na verdade, pra ser sincero, nem sei se Godofredo de Oliveira queria criar novos heróis literários ou prender no visgo do seu alçapão os ainda tentam sobreviver.

 

Música do dia. Matador de Passarinho. Rogério Skylab.


Les Amants


Jeanne Tournier, é uma mulher, apesar de reservada, que não mostra rasgos de convencionalismo. E a esposa de um diretor de um importante jornal de Dijon. O marido, Henri Tournier, é um workaholic, um cidadão tenso, nervoso, que dispensa pouco ou nenhum tempo à esposa, e quando o faz é apenas para lhe cobrar e demandar.


Jeanne, enquando o marido trabalha, dá umas escapadas para Paris durante o dia para passear tempo com a amiga Maggy com Raoul, seu amante jogador de pólo. Numa dessas escapadas, o carro de Jeanne quebra no meio do caminho, e então a providencial ajuda de um jovem estudante, Bernard, chega. O problema é que o favor se torna um estorvo, pois Bernard tinha uma série de visitas a fazer na cidade e não poderia levá-la a seus compromissos com Maggy. Conclusão, Jeanne chega atrasada para o jantar em sua casa, onde estão a sua espera Maggy e Raoul. No fim das contas, descobre-se que Bernard é filho de um amigo do marido de Maggy. Durante a noite em que todos dormem na casa, ainda no jantar, o marido pergunta qual são os planes de Jeanne para o dia seguinte. Ela, evasiva e sem cuidado, diz que são de estar com ele. Raoul tenta por todos os meios estar com Jeanne em sua própria casa, entretanto ela diz que é perigoso. Desce à bilbioteca, onde todos deixaram Bernard escutado uma sonata. Chegando lá, nesta cena decisiva, não o encontra. Desliga, então o disco da turntable, recolhe sua gravata e seu paletó, pousados numa gaveta e vai ao bar misturar à guisa de um bom rabo de galo, uns drinques. Encosta o copo com gelo na testa à guisa de esfriar a cabeça, vai até a porta em estilo francês, cheia de janelinhas quadriculadas. Olha para fora. Está impaciente. Tenta matar uma mosca sem sucesso. Abre a porta e começa a caminhar lentamente pelo exterior da casa, divagando em pensamentos - nestes momentos, ela fala em terceira pessoa, como se Jeanne fosse uma outra - , quando Bernard lentamente a segue. Ela se assusta. A câmera foca no rosto de Jeanne mostrando que ela se excita com a inesperada presença de Bernard. Ri nervosa e dissimula. Ela passa a andar de maneira teatral, como se o instigasse a seguí-la. Olha levemente para trás para certificar-se que ele segue. Ela esta confusa, passa a mão pelo rosto como limpando-o da dúvida. Bernard inicia um diálogo pueril sobre como deve ser om viver numa casa daquelas. Um diálogo dispensável, mas que quebra tensão da cena, mas que termina com um poema declamado por ambos, a noite é bela, a noite é uma mulher. Passam a noite num pequeno barco o resto da noite juntos. Toda a sequência, com seus silêncios, crises e diálogos internos de Jeanne, os dois na pequena canoa a deriva no meio de um lago, é de uma beleza impressionante. Na manhã seguinte, cansada do marido autoritário, e do ridículo amante, Jeanne parte com Bernard para uma nova vida, chocando a todos.

Louis Malle não é bem considerado um fruto da Nouvelle Vague, exatamente por que não é lá muito intransigente com os modelos do cinema estabelecido, tampouco usa diálogos inesperados ou rompe com a linearidade narrativa. Mas nesse seu segundo filme mais comercial, apelando para algum erotismo velado, feito diga-se de passagem quando ele tinha 25 anos, a parsonagem Jeanne é uma espécie de Madame Bovary pós-moderna, uma Capitolina sem véu e sem olhos de ressaca, sem o benefício da dúvida. De alguma maneira, Malle fez desse filme, um ponto fora da curva revolucionária da Nouvelle Vague, uma obra clássica, elegante e impressionantemente moderna sobre a frustração ou ao menos o desejo inancançável da verdade entre dois amantes. Usando da escandalização moral, tentou mostrar a verdade como uma virtude ambígua, especialmente no final quando o carro de Bernard e Jeanne deixa a cidade, e ela, num de seus diálogos internos, já não está certa de seu passo, mas nem por isso se arrepende.

Nota Fúnebre

Morreu ontem, domingo, aos 88 anos imagino que bem vividos, o escritor uruguaio Mario Benedetti. Por uma triste coincidência, somente este ano conheci o Benedetti novelista com a leitura de Quién de nosotros, apesar de já conhecer sua poesia cantada em parceira com Daniel Viglietti desde o fim dos anos 90.

Quién de nosotros é uma obra de geração sobre um triângulo amoroso existencial. Nessa primeira novela, Benedetti já lança uma técnica que mais tarde outros autores iríam utilizar, que é a de dar voz a todos os personagens envolvidos na trama. Nesta, “Miguel”, entre aspas, é na verdade o diário de Miguel, marido de Alícia. No diário, Alícia, decide deixar a casa e sua filha pequena para viver com Lucas, um amigo de juventude de ambos, Alicia e Miguel.
Todos os fantasmas que assolam Miguel passam pelo dilema de que Alícia, mesmo o tendo escolhido para casar, sempre fora apaixonada por Lucas. De alguna forma, ele, secretamente, convivia com a paradoxal situação de que a mulher com quem dividia a vida não era para ele. Ou seja, qualquer semelhança entre Jules et Jim pode ser ilusão, já que a novela é de 1953, nove anos antes do filme.

E como a novela se divide em três partes, a segunda parte é exatamente uma longa carta de Alícia a Miguel, explicando que sua atração por Lucas era decorrente dos próprios silêncios de Miguel, de sua ambiguidade em aproximá-la de Lucas alimentando uma amizade dos tempos de faculdade. Constata-se que Alícia desejava o diálogo, que Miguel, em seu laconismo, nunca correspondeu. Já na terceira parte, e exatamente na terceira parte, o título do livro começa a fazer sentido. Lucas, um escritor imaginativo e fabuloso, tem então voz ativa na estória. Seus personagens são extremamente ficcionais e percebe-se que o cidadão muitoas vezes não fala cois com coisa. Numa dessas aberturas, deixa transparecer que Alícia o abandonara novamente. E nesse finzinho, percebemos... quem deles... ou... qual deles... tem a verdadeira razão....

Ray Bradbury se esqueceu de nós

Em 1966 Truffaut lançou Fahrenheit 451 baseado no livro homônimo de Ray Bradbury. Nunca fui muito chegado no gênero de ficção científica, pois sempre pensei que a fabulação interferia de alguma forma na trama apondando sempre para um fim moralista. Mas quanto a este livro, percorri o caminho inverso. Assiti ao filme antes de ler o livro. O filme, apesar de ser um dos mais fracos de Truffat, deixa-nos uma sensação estranha.

Num futuro, numa certa América, as pessoas vivem numa circunstância de ações pragmáticas ao extremo. Hedonismo e ignorância levam ao Estado punir qualquer um que seja pego lendo livros, enclausulando-os num sanatório. Os livros ilegais encontrados (por exemplo, Whitman, Faulkner e Ortega y Gasset), são queimados por bombeiros. Guy Montag, é um bombeiro que queima livros, mas um bombeiro diferente. No dia seguinte em que encontra a esposa prostrada ao lado de um frasco de comprimidos, vai para mais um dia de labuta. Furtivamente, ainda perturbado com o suicídio da mulher, numa das casas subversivasa, acaba folheando uma revista. Sente-se atraído pel conteúdo e passa a roubar livros para ler. Daí em diante, a estória toma outro rumo e ele vai descobrindo, agora com simpatia, que cada vez mais pessoas tem esse hábito subversivo.

Ou seja, de alguma forma, pensar numa sociedade que não lê, pode ser algo assutador. E ontem, revidando o blog de Galeno Amorim, me deparei com essa notícia.
Norte tem 92 cidades sem bibliotecas

A região Norte do Brasil apresenta um dos maiores déficits de bibliotecas do País. Uma, entre cada cinco cidades que ainda não possuem esse equipamento, está em um dos estados da área. Ao todo, são 92 cidades sem bibliotecas: Acre (6), Amazonas (36), Roraima (7), Rondônia (3), Pará (10), Amapá (4) e Tocantis (26).O Ministério da Cultura pretende zerar o número de municípios sem acesso público e gratuito aos livros até o mês de julho.

De alguma forma, até julho ainda corremos o risco de que a realidade possa ser muito mais perigosa e cruel que a ficção científica de Bradbury.

Imaginem se até julho, por falta de recursos públicos, essas bibliotecas não chegam à região Norte e as crianças que não tiveram acesso a esta biblioteca - que de fato nunca existiu - , se tornem adultos sem leitura e cheguem a conclusão que bibliotecas são prescindíveis, na mesma medida que a pobreza espiritual, àquela que desliga os olhos com que lemos ao sentimento, seja algo normal, e que os edifícios prisionais, lotados de pessoas que geralmente nunca puderam ler, sejam mais importantes que escolas, e que um policial seja tão desrespeitado quanto um professor, exatamente por aceleradamente perder a função social, mas isso não impede que as pessoas tenham uma idéia idílica do país como um lugar muito agradável de viver, mesmo sem saber ao certo como se irá sentir dignidade depois.

Pronto, botei um fim fabuloso, cabuloso e moralista.

Deixando para trás os nomes que vão mudando


Tive a oportunidade de reler recentemente (Sapa)teia Americana, livro de Onésimo Teotónio de Almeida. Antes de tratar do título, atento para o fato de algo que quase nunca me chama a atenção, e que nesse livro capturou meus olhos e minha alma: a dedicatória singela endereçada aos pais. «A meus pais, que de e/imigração entendem mais do que eu».

Mas tratando do título, o título. Pelo que verifiquei sofre ligeira influência do livro de um poeta português pouco conhecido no Brasil, que viveu por anos em Nova Iorque, chamado Vitorino Nemésio. O Sapateia Açoriana de Nemésio, sem dúvida, tem influência nos contos de Onésimo Teotónio de Almeida, mas não através dos poemas do livro em si. A influência verdadeiramente vem de uma outra obra de forte influência romanesca, que ainda não tive a oportunidade de concluir, chamada Mau tempo no Canal. Sente-se de Mau tempo a influência das idéias ali contidas. Os protagonistas da estória de Nemésio, João Garcia e Margarida Clark Dulmo estão apaixonados. Querem se casar. Entretanto, pertencem a classes distintas. João é um novo rico que pela sua descendência não oculta certo sentido de ostentação da riqueza em dispendiosas exibições. Já Margarida Clark Dulmo vem de uma família abastada, com raízes estrangeiras, mas em decadência.

O romance, aparentemente inconcluso, entre João e Margarida é uma grande metáfora que Nemésio cria para a condição de seu Açores, um arquipélago a meio caminho entre o velho e o novo continente. Isso fica claro nos sonhos de Margarida, quando procura os significados oníricos na décima ilha - Açores, só para constar, tem 9 ilhas -, justamente na chamada Ilha da Felicidade, um tipo de mito heliodrômico que povoa o imaginário dos açorianos há pelo menos... não sei quanto tempo. Certamente, a crença de que a civilização, assim como o sol, caminha para o ocidente está lá, latejando na cabeça dos insulares desde que Platão e Swift decidiram localizar suas Atlântidas a oeste do arquipélago. Pelo pouco que li, Nemésio aponta para esse caminho.

Certamente , tal paradoxo percorre todo o (Sapa)teia Americana - com os parenteses nas duas primeiras sílabas - em virtude, talvez não muito bem clara para muitos, de certa lógica de harmonização entre a idéia original de Nemésio, e o enredo e contextualização dos personagens com o próprio título. Há esse diálogo sem dúvida, que autor do (Sapa)teia Americana, entretanto, como todo o bom autor contemporâneo, transforma o mito e o sonho numa realidade nem sempre palatável, deslocando o eixo imaginário de Margarida, fragmentando-o em vários personagens, que vivenciam a dura realidade de imigrantes nos Estados Unidos, seja na California, NY ou Rhode Island.

Em linhas gerais (Sapa)teia Americana é um livro sobre imigração e a perda das raízes, que pode converter-se até certo ponto na perda da alma. Nesse ponto, dito assim, tudo poderia ser dramático. Poderia nos trazer a projeção sombria e lúcida do protagonista de Mephisto no filme de Szabó. Entretanto, em (Sapa)teia, um livro a meio caminho do conto e da crônica, há o componente – para o bem e para o mal - que Sergio Buarque definira ( não me lembro bem se em Cobra de Vidro ou Raízes do Brasil) como predominantemente aventureiro e semeador do colonizador tanto ibérico quanto luso.

No Brasil de quatrocentos anos atrás, dizia Sergio Buarque, o português chegara transpondo a cultura da metrópole para a colônia, recriando sua arquitetura e urbanismo, e adaptando-os, com improviso e com a mistura com as culturas nativas e africanas, à realidade da nova terra. Os lusitanos, isso sim, teriam sido mais semeadores do que ladrilhadores. Seu enraizamento era de certa forma orgânico e não planejado. Diferente do projeto ladrilhador norte-americano que, reza a lenda, já chegara com o espírito protestante, com o moralismo proveniente da natureza puritana, e o espírito da acumulação capitalista.

Transpondo essas características para os dias de hoje, (Sapa)teia Americana é um livro sério que rompe com a visão dramática de um Hendrik Höfgen versando com muito sarcasmo e bom humor em torno ao tema central da imigração. E os personagens dos contos, que são em grande medida imigrantes de língua portuguesa, na sua maioria portugueses ou açorianos, mas que também vez por outra atravessa ali por trás da tela principal, um brasileiro ou africano, são de uma riqueza interessante. Carregam ainda essa alma aventureira, sem dúvida. Mas a projetam num país anglo-saxão. O resultado em certos termos, trágico, realista, resulta na aceitação da vida, por parte dos personagens, como ela é, sem formar grandes ilusões nem imaginar grandes expectativas.

O que particularmente me chama atenção nesses contos são dois pontos. Primero, é a riqueza de detalhes cotidianos que o autor incorpora de forma lúcida a seus personagens. Segundo, o trabalho com a linguagem que o autor elabora, inclusive com um glossário do slang anglo-português, aproximando-nos da linguagem prosaica de seus personagens, e que ao fechar o livro, paramos e dizemos... É isso mesmo! Ainakin é Cerveja Heineken. Ame sóri é obséquio. Obvio. Obvio é o que vejo e não consigo expressar por palavras.

Interessante para mim, um reles mau leitor, falpórrias e consumidor de literatura, é nem tanto a profundidade psicológica dos personagens, que de certo o autor ocultou de maneira proposital, mas a naturalidade com que o autor dá voz a tipos prosaicos, deterrados, emprestados em terras estranhas, que sentem-se seduzidos mas ao mesmo vivenciam uma relação problemática com o cotidiano da cultura americana. Tais personagens, como começando com o primeiro conto, que se passa numa escola mas que aponta para as experiências fora da sala de aula onde Antônio, que dirige seu Buick, estuda inglês sem empenho, e inveja os parentes que concretizam o adágio de que mais vale a necessidade que a universidade, evidenciando que a maior experiência para ele, Antônio, está fora de sala de aula; ou Marianinho do conto A Amér(d)ica do Mariano, um tipo sem lapidação, um tipo que vai deixando a paixão pela música em vitrude das agruras da vida e da quantidade de filhos que vai acumulando; ou o padre Melo preocupadíssimo com os destinos dos carismáticos com suas falácias rituais que tomavam sua Igreja de assalto, mas que no fundo inquitava-se mesmo é com os institntos acasalatórios dos miúdos que andam pelos quintais de sua paróquia. Outros personagens, como o Jorge de O Dever de Homem, com seu laconismo desconfortável, num bar com os amigos a falar das agruras vida, das chatices da existência e evidentemente, como sempre, de cópulas com exaltações a natureza fodedora dos portugueses. Interessante, pois Jorge, tão português e tão macho quanto os companheiros de mesa, passa-nos a impresssão de que até poderia falar de mulheres nos termos colocados pelos companheiros, se estivesse num outro lugar, talvez com amigos mais chegados. Mas, como transparece um alto grau de pudor, apenas deixa entrever a extensão moral de sua solidão preferindo prescindir do nacional-fodismo dos amigos. Enfim, dessa estreita relação entre as personagens e o seu meio, surge uma simbiose interessante entre os protagonistas, geralmente inábeis expressar verbalmente coisas como solidão e saudade, e seu Outro. Esta relação, aliás, problemática desde o princípio em que pisam na terra, altera-lhes a aceitação da vida, torna-os céticos sem grandes ilusões se não àquela de um dia retornar.

De certa forma, interessante é como estes pisam e sapateiam essa terra de forma a reincorporar a alma prescrita de imigrante. Pois quem há de dizer que ainda são o que eram em suas aldeias , ou já são o que serão na nova terra. Esse vácuo, depois de atravessarem o mar de chão liquido do Atlântico, entre o que se deixaram de ser e o que nunca serão, é o paradoxo que acompanha os protagonistas imigrantes. E talvez aí esteja o verdadeiro sentido do título que me intrigou desde que pus os olhos sobre o livro.

Onésimo joga bem com esse paradoxo do Portugee na Amérida em forma de duas metáforas: primeiro, com o verbo sapatear - que vem a ser também uma dança típica dos Açores e que nos traz à lembrança a muñeira - ; segundo com o substantivo teia. Ao mesmo tempo que sapateiam e esconjuram a terra, em momentos de desespero, criam teias, pois vão deixando pelo caminho mulheres, amantes, filhos, saudades e raizes.




Poesia do dia: De Apolinário a Poço Fundo - João Cabral de Melo Neto

[...]
Deixando vou as terras
de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as, enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

Linha do tempo

1792. No Rio, na praça de nome Tiradentes, há uma estátua do neto da mulher que mandou executar o alferes.
1822. A Independência Política de portugal foi feita por um príncipe português, que se tornaria rei de Portugal.
1838. 30 mil mortos é o saldo da Balaiada, que teve como herói um homem com codinome de O Pacificador.
1850. A lei da proibição do tráfico intercontinental de escravos veio no mesmo ano que a lei de terras. Ou seja, torna-se a terra cativa, na iminência da mão-de-obra passar a ser livre.
1864. A Guerra do Paraguai foi a única guerra em toda a América Latina a usar armas biológicas (Decepava-se a cabeca da vítima de varíola e deixava-se o corpo na cabeceira do rio, contaminando a água)
1861. O maior romancista brasileiro, Machado de Assis, trabalhou com censor no Conservatório Dramático Brasileiro.
1888. A abolição da escravidão foi assinada por uma senhora de escravos.
1889. A República foi proclamada por um monarquista.
1889. As eleições do Império, com voto era censitário, havia mais votantes que a da República onde mulher e analfabeto não votava.
1896. Um dos maiores massacres de um movimento igualitário foi liderado por um fanático religioso moralizante e conservador.
1922. O herói nacional do Modernismo é um tipo sem caráter.
1930. A Revolução Burguesa foi feita pelas oligarquias. A Revolução de 1930 não foi uma revolução.
1937. Um presidente ditador criou mais garantias trabalhistas que todos os presidentes democratas até então.
1954. O mais marcante feito de um presidente foi um suicídio.
1964. Ditadores eram estatistas. Democratas financistas.
1982. A redemocratização foi encabeçada por um general Sorbonne e um lider da UDN Bossa Nova.
1990. O único presidente que sofreu impeachment por corrupção foi o único que prometeu eliminá-la.
1995. O maior plano de privatização foi feito por um intelectual esquerdista.
2003. Os maiores lucros bancários da história da República foram alcançados na gestão de um presidente filiado a um partido trabalhista/socialista. O adágio de Celso Furtado é incômodo. Na bonança o Brasil concentra os lucros e e na crise socializa as perdas.

Waiting for Godô


Da serie britânica de 4 DVDs Beckett on Film, assisti quase todos. A bola da vez de ontem foi Waiting for Godot, como já dito por alguém, dificil para um adulto e incrivelmente fácil para uma criança. Waiting.. é um texto enigmático em vários sentidos, mas sem dúvida é a obra prima de Beckett.

Dirigido por Michael Lindsay-Hogg e tendo Barry McGovern no papel de Vladimir, Johnny Murphy no papel de Estragon e Stephen Brennan no papel de Lucky; a peça é dividida em dois atos onde contracenam dois personagens principais Vladimir, chamado de Didi, e Estragon, chamado de Gogo - e no decorrer da estória aparecem Pozzo, Lucky (uma espécie de escravo de Pozzo) e na cena final entra um menino, suposto mensageiro de Godot. A peça começa com ambos, Didi e Gogo, num lugar ermo, uma espécie de estrada, com uma àrvore seca ao fundo e um tempo indefinido entre o dia e a noite. Estragon tenta tirar sua botina, sem muito sucesso até desistir e murmurar... Nothing to be done, não há nada a fazer. Os dois então iniciam um diálogo trivial com uma série de referências bíblicas, tais como quando bem no começo, Vladimir citando o livro de Lucas, começa a falar da crucificação de Jesus e da salvação de dois dos quatro crucificados, se não me engano no fim da pirambeira da via Apia. Vladimir se sente frustado com a limitação de seu interlocutor e essa relação de superioridade impera nos dois atos. Mas os diálogos são triviais que chegam a ser absurdos, sim.

Estão ali esperando um sujeito de nome Godot. Nada se sabe a respeito deste. Durante toda a peça não há o mínimo indício de quem é ele ou o que Vladimir e Estragon querem dele. Interessante observar que a incógnita não interefere no andamento da peça, pois Godot é um ente oculto que em nada interefere na vida dos personagens. Muitos desinformados foram levados a fazer uma associação direta entre Godot e God, associação veementemente refutada pelo protestante irlandes Beckett em vida. Na verdade, penso que não fazer a associação enriquece muito mais a assimilação da peça.

No vazio em que se encontram, Estragon sugere que se suicidem. O efeito é cômico pois rapidamente abandonam a idéia ao se darem conta que talvez um sobrevivesse deixando o outro solitário, hipótese absolutamente imponderável para ambos.

A certa altura passam dois desconhecidos. Um segurando uma longa corda que está amarrada ao pescoço do segundo. Pozzo segura a corda que amarra o pescoço de Lucky, que carrega uma pesada mala. Didi e Gogo, eles que estão esperando alguém que nem sequer conhecem, se sentem assustados com o absurdo da cena. Pozzo decide descansar um pouco e puxar dois dedos de prosa com a dupla Didi e Gogo, que a princípio pensam se tratar de Godot. Pozzo come um frango, toma uma taça de vinho e assim que termina lança os ossos a Lucky que Estragon prontamente tenta alcançar, para embaraço de Vladimir.

Antes de partir Pozzo pergunta se ele poderia fazer algo pelos dois. Estragon tenta perdir algum dinheiro, porém Vladimir corta-o imediatamente, mas aceitam que Lucky dance e filosofe na frente deles. Na peça como se pode ver não há ação, não há profundos sentimentos que liguem os personagens, não há sequer uma trama que amarre a todos, chegou-se a dizer que nas peças de Beckett nada acontece. De fato, nada acontece. Não há a ação que encontramos, por exemplo, nas peças de outros dramaturgos contemporâneos comoEugene O’Neill ou Wilde, ou a profundidade psicológica de um Treplev de Tchekov. Então o que nos torna reféns da poltrona frente à peça?
Tal como tudo que é bom, ilegal, imoral e engorda, o que te prende na poltrona é o paradoxo da atração e do incômodo.

Os paradoxos para espectador são muitos, nem tanto pelo absurdo das cenas e dos diálogos desconexos, mas pelas consequências dos mesmos. A peça é surpreendentemente instigante exatamente pelos fragmentos de diálogos e da narrativa, quase na forma de esquetes que ficam cutucando e incomodando de alguma forma nosso parcimonioso inconsciente sonolento e preguiçoso.
Como diria o porteiro de um lugar onde trabalhei... [Beckett] é celebral!
Tudo de complexo para ele, tal como um drible do Nunes ou um passe do Adílio, era cerebral.