Thanksgiving

Já frequentei Thanksgivings bizarros, com gente comendo sem parar e falando aos berros, rindo aos berros, agradecendo aos berros com a pança cheia em cenários que, se fardados, os personagens seriam autênticas figuras de George Grosz. Essas experências traumatizantes sempre me levaram a certa cautela em relação a essas celebrações de agradecimento coletivo. Mas não posso me queixar dos meus dois últimos.

A casa esteve cheia ontem. Comida medida, familia medida, amigos medidos, criancas desmedidas pela casa e boas conversas. Lembrei-me da casa de meus pais, sempre marcada pelas mesmas caraterísticas, mas com umas peculiaridades. Gente muito diferente vinha almocar no nosso pequeno apartamento, e deixavam-se ficar, e fazia-se café, e tirava-se a mesa do almoço, e lavava-se a louça, e começava-se um carteado que atravessava a tarde e a noite. Os adultos à Brisca, um jogo que em tese, quando jogado em dupla, ganha quem trapaceia mais. As criancas, um jogo menos malicioso: o cinquillo, que nem me lembro mais como se joga. Meus pais tinham amigos interessantes. Um primo de meu pai tinha, quando jovem, um bigodinho de cafetão; outro tivera um bar nas Laranjeiras, dentro do Fluminense; seu irmão casara-se com uma cantora zaragosana que todos chamavam, mesmo depois de velha e casada ha 30 anos, de "puta zaragosana"; um outro amigo, meio mentiroso, estivera na Legião Estrangeira servindo no Marrocos e depois viria a se tornar socialista; outro da Marinha Mercante; e outro estudara para padre e na juventude dividira um quarto com meu pai no lugar mais puro do Rio de Janeiro, na esquina da rua do Lavradio com Men de Sá - isso entre os anos 40 e 50 quando ali frequentavam figuras do calibre de Madame Satã e Aracy de Almeida. O dono do bar do Fluminense morreu. A viúva continuou frequentando a casa. O primo cafageste, solteirão, vive no apartamento, so come frango com batatas e tem uma vida de rei aos seus oitenta anos. Não sei como o velho, falando tão pouco, conseguia orbitar nessa fauna. O fato é que, sob o mesmo teto, todos ali, mesmo que diferentes, riam e voltavam.

Ontem esse gosto nostálgico reverberou aqui com cheiro de uma comida diferente, conversa de parentes, riso de amigos e criancas pela casa. Aliás, neste ano não veio muita gente. E é muito estranho que uma casa de pobre, onde não ha cadeiras suficientes, onde os pratos não formam jogo, os copos de vinho e de àgua acabam sendo os mesmos, onde só ha livros, filmes e discos, seja frequentada por uma fauna - ainda que não tão interessante como a da casa dos velhos - tão diversa, pois vez por outra aparecem um diplomata perdido, um economista pálido, um ex-ministro esquecido. À mesa de hoje não há primos cafagestes, marinheiros, mercenários da étrangère, putas zaragosanas, jogadores trapaceiros, mas quase me passou imperceptível, por serem tão familiares, que sob o mesmo teto, havia ontem um judeu e uma palestina rindo e brindando com a mesma Guaraciaba envelhecida que o Viva me presenteara. A mesa posta, a bebida escolhida, o molho de cerejas, as batatas, a carne, cuja textura e sabor comprovei antes de fatiá-la mas enfim, a não deixar passar em branco, com certa tristeza, que a casa de hoje é bem menos frequentada que a casa dos meus velhos.

Ontem não houve filme. Com a casa calma e em silêncio. Um disco da Olivia Byington cantando a Aracy, bem baixinho, pois a familia, o Gabriel, e os amigos que entornaram demasiado para dirigir, ja dormiam. Me instalei num canto da poltrona, abri dois contos do Cortazar, que já com a casa calma, fui lendo e relendo. O primeiro, eu lera há anos atrás. El Perseguidor. O segundo, acabei lendo pela primeira vez, Las Armas Secretas.

O Perseguidor é um conto interessante. É uma espécie de ode ao Charlie Parker, que na estória se chama Johnny Carter. Não me lembro bem se foi Onésimo, ou se li em algum lugar, que o Gregory Rabassa e o Cortazar, dois apaixonados por jazz, passavam horas falando sobre este conto. Bruno é um crítico musical francês e um fã de Carter, um músico fenomenal mas que vive em situação econômica lamentável. Colaboram para a decadência de Carter suas crises esquizofrênicas, seu caráter irascível, sua dependência de drogas. Mesmo sabendo que Carter se auto-destruía, Bruno, que é um admirador de Carter, apenas tenta narrar esse inacessivel mundo pessoal do músico, sem, a princípio, maiores envolvimentos. O problema que o ambiente nauseante que cerca a vida de Carter, passa por osmose a influenciar a vida de Bruno - que a certa altura se encontra perdido dentre tantas indagações pessoais. A princípio, o biógrafo, sabe que será o maior beneficiário dessa existência de sucesso e degradação na qual Carter imerge. Aos poucos se vê perdido, pois não encontra a chave que defina a genialidade de Johnny Carter, persistindo, como perseguidor, na busca. Um dos melhores de Cortazar.

As Armas Secretas é um conto chocante, pois o Cortazar não abre a guarda. Não torna o protagonista, Pierre, em nenhum momento um tipo atrativo ao leitor. Pierre é um sujeito que sofre de insônias, toma remédios para dormir, receitados pelo amigo Xavier. Pierre e Michele mantém um início de relação conflituosa, pois em sua ansiedade, Pierre não entende a aversão de Michele ao sexo. O jovem questiona-se o tempo todo pro que Michele não o visita em seu apartamento, e consumam de uma vez por todas a bendita cópula. Talvez em decorrência da combinação dos remédios com o conhaque, Pierre tem umas alucinações visuais e auditivas, uns déjà vus estranhos, onde se misturam cenários e palavras que não compreende mas que parecem se remeter, pelo detalhe do corrimão e de uma bola de cristal, recorrentes em seus sonhos, à casa de campo dos pais de Michele. Nesse ambiente de tensão, chegam a casa dos pais de Michele. Lá, Pierre tenta novamente ter sexo com a namorada. Esta o refuta pois sofreu um trauma ao ter sido violada por um soldado alemão, naquele cenário com o qual Pierre havia sonhado e onde realidade e alucinação se confundem. Pierre chega a morder o lábio de Michele, que se tranca no quarto. Pierre a abandona. Enquanto isso, Michele chama a Babete, e outros amigos para que a visitem. Pierre decide retrornar à casa e encontra uma Michele bem mais lívida. Alucinado com as imagens, os sons de canções alemãs, o cenário estranhamente familiar, volta a abusar de Michele.

Mas contado assim, sei que peco por reduzir a complexidade do conto e a comparação entre as casas de meus pais e a minha. Há muito mais detalhes sublimados.

My Life and Times With Antonin Artaud

Na época de faculdade frequentava muito teatro nos fins de semana. Gerd Borheim dava a dica durante a semana e duros, partiamos para assitir a tudo que fosse barato ou gratis. Ou seja, lugares onde, com todo os respeito, Barbara Heliodora jamais poria os pés. Das montagens de projetos finais das turmas iniversitárias de teatro - da UFRJ, UERJ, Uni-Rio - ao pessoal que orbitava o Teatro do Oprimido, no Pachoal Carlos Magno e o Tá na Rua – na época, ensaiando num daqueles casarios da Lapa. Hoje, olhando-se em retrospectiva, tudo era sofrivel. Mas sempre se tirava algum conhecimento, que se não fosse das peças em si, ao menos aos ensaios dos abertos: Shakespeare, Nelson Rodrigues, Antígona, Vianinha, Valle-Inclán...

Mas por acaso, nunca assisti a uma peça de Artaud. Artaud foi tão importante para o teatro como Stanislavski e Brecht, mas nem tanto por suas obras. O dramaturgo e poeta surrealista criou uma técnica de preparação de palco baseada numa forma diferenciada de atuar. Consistia em imergir o ator num ambiente de criação contínua, com uma impetuosa incessante necessidade de inventar, uma profunda integração com a própria vida, onde segundo sua perspectiva, tudo na vida é cruel causando uma sensação de desconforto constante. Consistia em coisas que hipnotizassem o espectador, sem que nesta hipnose estivessem contidos diálogos entre os personagens, e sim gritos, música, dança, sombra, explosão de luzes e expressão corporal, mais ou menos como nas peças de Gerald Thomas – aliás, agora me lembro, uma predileção do velho Gerd.

O palco seria o local da catarse onde o ator deveria romper com o texto literário, imaginar-se submerso na cena e movimentar-se nesse universo teatral vivo, onde realidade e ficção teriam apenas uma linha tênue de separação. Diga-se de passagem, Artaud definiu essa sua técnica de desvendar os mistérios da alma, como Teatro da Crueldade.

E acabei assistindo um filme experimental de 1993 do diretor francês Gerard Mordillat, 'My Life and Times With Antonin Artaud'. O filme é uma interessante visão biográfica da vida do dramaturgo. Aparentemente simples, o filme, baseado nas anotações do diário de Jacques Prevel, narra a relação de amizade e obsessão deste pela figura de Antonin Artaud, representado pelo inflamável, Sami Frey. O primeiro manifesto do Teatro da Crueldade é lançado por Artaud em 1932, vindo ao prelo em 1938. Mas o filme em si retrata o período posterior à Segunda Grande Guerra quando Artaud recebe alta do sanatório onde permanecia internado para tratamento de suas neuroses, bem como da dependência de laudanum. Retrata um homem de neurônios em chamas, incapaz de se livrar da dependência de da droga, torna-se cada vez mais criativo, paranóico e insano. Mesmo assim segue produzindo.

Já Prevel sofre com sua efemeridade. Dividido entre a vida familiar, a esposa grávida, Roland, a boemia, o filho, a amante Jany, a presença nos cafés, a falta de dinheiro e a temerária aspiração poética. Artaud percebe a ascendência sobre Prevel e joga o jogo. Precisa de laudanum e Prevel pode conseguí-lo – pois Jany, sua amante, que é chegada na substância. Artaud manipula suas amizades como a seus atores no palco. Torna-os objetos, tal como na cena onde ensaia uma atriz, levando-a a repetir a fala inúmeras vezes até a exaustão, até o desespero; ou como na constante guerra contra a esposa de Prevel e o encarceramento de sua vida familiar; ou como na preversa manobra de levá-lo aos editores, mesmo sabendo que sua obra é inconsistente; ou como num dos confrontos com Prevel afirmando que este não passa de um artista poseur.

A certa altura, obviamente, Prevel já não consegue perceber se Artaud, com tanto psicotrópico na cuca, é um hiper-perceptivo está apenas alucinando. De todas as maneiras, é impagável ver Sami Frey atuar e tornar a vida caótica de Artaud mais próxima. Mais interessante ainda é perceber a relação de um prosélito ambicioso e seu proselitista genial - mas com alguma marca do interesse pessoal.

Musica do dia: Wearing and Tearing. Led Zeppelin CD/DA.

Pedra

Pedra
A pedra é transparente:
o silêncio se vê
em sua densidade.
(Clara textura e verbo
definitivo e íntegro
a pedra silencia).
O verbo é tranparente:
o silêncio o contêm
em pura eternidade.


Livro. Transposição. Orides Fontela


Espanha. Uma fachada de Gaudí. Casa Batlló. Gaudí misturou em seus edifícios formas fantásticas e estruturas complexas. Como todo o brilhante arquiteto, era o terror de qualquer engenheiro civil. Mas encontrou Eusebi Guell, seu mecenas e amigo, que pagou para que engenheiros erguessem em sua arquitetura alucinógena a transparência do verbo.
Foto: Isabela Borges - Novembro 2008

Túnis. Dougga, situada a cerca de 200 km a oeste de Túnis, perto da fronteira com a Argélia. Sim um lugar onde Júpiter poderia ter perdido as botas. O Templo de Júpiter é o sítio arqueológico romano mais bem conservado do Norte da África, onde as pedras silenciam sua densidade. Foi descoberto só no séc. XIX, recoberto de terra, devido à erosão. Os árabes haviam construído suas casas, a partir do séc. XVIII, sobre as ruínas, sem saber o que havia embaixo! As ruínas romanas são aprox. do séc. II DC e, por sua vez, foram construídas sobre as casas dos Numídios, povo que apoiou os romanos na última guerra púnica que liquidou Cartago.
Foto: Mari Carmen Rial– Novembro 2008

American Pastoral

Quem lê Roth, aprende a lê-lo com reverência.

Neste livro, Roth apela para seu alter ego ficcional, Nathan Zuckerman. Desde já digo que é um livro de difícil resumo, por ser uma obre de mestre.

Zuckerman retorna a Newark, onde viveu, e encontra vários de seus companheiros desiteressantes de infância e juventude (por exemplo, Erwin Levine, filhos de 43, 41 e 31. Netos de 9, 8, 3, 1 e 6 semanas...) para um encontro de ex-alunos da escola secundária. Lá, entre outros, está Jerry Levov, irmão de Seymour Levov “o sueco” Levov, o mais destacado dos jovens de então. Zuckerman sabe por Jerry que Seymour Levov morrera pouco tempo antes da reunião. Segundo a imagem que ficara dos anos 60, guardada na memória de todos, Seymour mostrava-se como um atleta exemplar, um filho bom, honesto, um jovem próspero e empreendedor, um exemplo a ser seguido por todos os jovens judeus de New Jersey. Um tipo que além de exemplar foi sortudo. Herdeiro de uma fábrica de luvas, a Newark Maid, erguida do nada por seu pai, ainda de quebra casou-se com Dawn, ex-Miss New Jersey com quem teve uma filha, Meredith. Meredith seria adorável se não tivesse tido uma gagueirinha de infância.

Essa sua Arcádia ecumênica, silogismo de uma nação inteira, ansiada como um eterno dia de Ação de Graças, onde todos comem o mesmo peru, todos riem das mesmas piadas com a boca cheia de mashed potato e gravy escorrendo pelos cantos da boca, e se comportam da mesma maneira, começa a ruir. Começa a ruir exatamente no momento em que aquela menininha encantadora que tentava imitar a voz e os trejeitos de Audrey Hepburn, se torna uma adolescente problemática e emocionalmente instável, e começa a participar ativamente do Weatherman Organization, um movimento que entre 1969 e 1974 mandou pelos ares umas 4 duzias de predios ao redor dos Estados Unidos.

- - Ainda na festa Zuckerman indaga (tradução miserável):
"A filha, que o conduzia para fora da ansiada pastoral americana, era sua antítese e sua inimiga, a fúria, a violência, o desespero de tudo que era contrário à pastoral, a fera americana indígena."

Zuckerman apesar de se apresentar na festa como subdelegado da turma 4B e membro do comitê organizador do baile de gala - sem filhos ou netos e que ha mais de 10 anos havia sofrido uma operação de bypass quíntuplo – não para de pensar na estória contada por Jerry. Zuckerman passa a saber do drama do sueco ao ter a filha foragida e perseguida pela polícia. E decide escrever a história.

- - Num momento de inflexão da estória, Zuckerman, em meio a uma música da reunião começa a divagar, se separa de si "me ausentei da reunião e sonhei..., sonhei uma crônica realista. Começei a contemplar sua vida, não sua vida como um deus ou semi deus, cujos triunfos alguém poderia se regozijar na juventude, mas sua vida como um outro homem qualquer, atacável, e inexplicavelmente como o equivalente do "eis aqui este homem" [...]"

Para construir essa autópsia de Levov, Roth dá voz a Zuckerman na primeira parte, Paraíso Lembrado, mas do capítulo A Caída e o Paraíso Perdido, quem fala é o alter ego um do outro propriamente. Roth narra a história da família de Levov, de como a fábrica foi construída pelo patriarca, de como o sueco tomou os negócios nos punhos prescindindo do irmão – que preferiu tornar-se o oposto do irmão, um cirurgião mulherengo e invejoso, casando-se várias vezes e indo viver em Miami - as consequencias da Guerra do Vietnã.

O inferno de Levov, nas palavras de Zuckerman, começa com uma eternidade de memórias. Zuckerman de repente se sente condenado a recordar e recordar numa sessão de psicanálítica sem fim, e sem catarse possível, onde foi que o sueco Levov errou. Interessante que as ações de Levov, sempre pautadas no bem e na justiça, não bastam para definir sua conduta; o julgamento e a ação dos outros personagens são igualmente decisivos para determinar seus destinos desencantados.

Ao contrário, por exemplo, de sua espécie de discípulo Coetzee, Roth, em sua fúria, não arrasa apenas com seu protagonistas, mas desintegra a todos... como se todos, aos poucos, fossem decaindo moralmente, dissolvidos num ácido comum à todas as bìlis, forçados a perder suas esperanças na vida. Como se qualquer deslumbre fosse no fundo uma farsa por carecer de compreensão. Por exemplo, quando pai e filha se reúnem finalmente em 1973, numa fabrica abandonada, onde a filha vive em condições físicas desumanas, Levov vê seu mundo desabar num poço de desgostos, pois sempre manteve uma remota e idílica idéia sobre a inocência da filha. Merry, numa cena de uma violência incrível, diz ao pai que não havia apenas mandado pelos ares o prédio dos correios local, mas colaborado em inúmeras outras explosões ao redos dos Estados Unidos. Levov, poucas horas depois, numa festa entre amigos surta como nas melhores cenas de Tennessee Williams.

Um livro ótimo já que Roth não apenas não tem pena de seus personagens, como tampouco de seus leitores, pois acima de tudo nos deixar uma incômoda pergunta: Seremos nós verdadeiramente responsáveis pelas pessoas que cativamos?

Outra ótima resenha é a do Barros.
http://barrosbar.blogspot.com/2009/01/philip-roth-pastoral-americana.html

Drežnica

Drežnica é um curta muito interessante de Anna Azevedo todo construído com imagens Super 8, onde a falta constante de foco permite-nos apenas vislumbrar as cenas de uma festas de aniversário, umas paisagens supostamente americanas, e a travessias de uma mulher num navio de nome Drežnica. Isso mesmo, exatamente: uma espécie de sonho onde as imagens não se conectam.

Entretanto, através de uma lírica narrativa costurada não só com imagens, mas sensações, reveladas pela memória e pelos sonhos de pessoas que não enxergam Anna Azevedo fez mais. Não sei o que significa o nome, mas a sei que em pouco mais de quinze minutos o curta nos remete de maneira lírica a ambiente e sensações inexplicáveis. Sensações sobre inóspitos lugares, como os dos sonhos que não posso ter. Explico: os sonhos de gente que perdeu a visão narrando seus sonhos. Os depoimentos são inseridos num fluxo de imagens, muitas vezes desconexas, que tal como os sonhos, se fragmentam deixando um vazio entre a imagem e a narrativa. Interessantíssimo, pois nessa viagem onírica da memória, através das narrativas de gente que não vê, descrevendo por exemplo o azul do céu e como o vêem em seus sonhos, o próprio céu adquire um novo tom, mais poético, mais próximo, mais amplo, mais esparamado.

Nota. Ainda nao assisti ao filme Ensaio sobre a Cegueira. Li o livro e adorei, mas espero que o filme seja tão poético quanto esse curta.

Jogo de Cena


Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2007)


Clifford Geertz, um dos pais da atropologia simbólica, dizia sobre os símbolos: símbolos guiam as ações. De uma certa forma o que Geertz diz é que as pessoas se comunicam e se perpetuam através de formas simbólicas. E a função da cultura é nada mais nada menos que impor um significado a toda a simbologia para que passe a ter sentido e dai se torne compreensível. Eu desconfio que Eduardo Coutinho saiba isso na prática.

O livro de Geertz, The Interpretation of Cultures, deve ter mais de 30 anos e obviamente tem todo aquele jogo de cena da linguagem enfadonha que usa para se defender dos dentes de seus pares, mas o que mais me marcou deste livro é que através de uma prosaica rinha de galos em Bali - e de como os apostadores homens se comportavam ao redor da arena -, Geertz chega a conclusões impressionates sobre as atitudes e as simbologias de toda uma sociedade frente à violência, a corrupção e à política.

Na rinha ocorria, na verdade, um teatro onde os papéis reais de homens reais que jamais poderiam ser encenados na vida real, o eram ali dentro. No fundo, os papéis que os apostadores adquiriam, frente a arena, eram no fundo também um jogo de cena, uma majestosa fabulação da realidade. Weber diria - em relação à ética protestante - que eles, tal como os proselitos protestantes, estavam amarrados às teias de um significado que eles mesmos teceram, a papéis sociais indissociáveis. Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, joga com isso: com peso das imagens.

O Eduardo Coutinho fez um documentário, no meu ponto de vista, profundamente irônico para aqueles que encaram a ficção como algo alheio, ou tão distante da realidade como uma rinha de galos. Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida no palco do Teatro Glauce Rocha. Vinte e três delas foram selecionadas e filmadas para contar sonhos, saudades, medos e amores. Alguns meses depois, atrizes - umas famosas e outras nem tanto - interpretaram as histórias dessas mulheres.

O resultado foi um documentário conceitual que embaralha o velho adágio da arte imitar a vida – ou vice-versa. Veja bem, não estou dizendo que não exista essa separação entre realidade e ficção. Há. Eu sei, e eu sei que evidentemente o Coutinho sabe que há, pois, veja bem a ironia do Eduardo Coutinho: as mulheres - pessoas e personagens - contam suas estórias de costas do alto do palco para uma platéia vazia. Ou seja, uma ironia séria. Foi uma escolha sacana e bem sacada, eu sei. Vou colocar as mulheres num palco de teatro, sem platéia, para contarem e recontarem suas histórias - pensou Coutinho. Pois eu sei que, eu como documentarista, lido com esse falso compromisso com a exploração do real, com essa ilusão da semelhança o tempo todo - indaga secretamente, Coutinho.

Digo, eu, que é irônico, pois, até a terceira ou quarta história, era evidente quem no palco era a atriz, e quem era a personagem real, a dona da história – primeiro, por que as atrizes eram famosas, voilá, Globais; segundo, pelos cortes dados pelo diretor; e terceiro, por que o próprio diálogo do diretor com as atrizes sobre as dificuldades interpretativas deixavam claro isso. Mas a certa altura, quando as atrizes passam a não ser conhecidas, e os cortes mudam, o expectador deixa de saber quem é a atriz e quem é a personagem real. Esse ponto de inflexão é claro quando a Fernanda Torres e a Andrea Beltrão, quase não conseguem teminar suas interpretações pois percebem que erram seus papéis. Erram pois nos passam a impressão de seus medos, da temeridade de mimetizarem o real, com suas pulsões, não-ditos, traumas, medos e preconceitos na ficção. Essa confusão do expectador é mais evidente quando as histórias passam a se repetir.

A propósito quando Fernanda Torres e a Andrea Beltrão chegam ao palco e expõem seus comentários e dificuldades ao interpretar suas falas fez sentido para mim por que o Coutinho selecionou, para a primeira história, a história de uma atriz de teatro popular, que faz uma pequena interpretação do texto Gota d’àgua. Medéia, sem loucura, num ato de fria e premeditada vingança em relação ao marido, oferece ao infiel Jasão um pedaço de bolo envenenado.

A evocação de Eurípedes, no Doc, me fez lembrar não sei bem por que, mas instantaneamente, do Persona do Bergman. Foi uma livre associação errada, eu sei, pois a Liv Ulman interpretava, na verdade, não Medéia, mas Electra. Entretanto, não pude deixar de fazer a analogia entre a tragédia grega e o jogo de cena criado pelo Eduardo Coutinho. O Documentarista leva ao palco todas aquelas atrizes e mulheres para se perpetuam através de seus arquétipos, dos símbolos que criaram para elas mesmas, sendo mulheres reais, atrizes desconhecidas ou atrizes GLoBais.

O paradoxo que Coutinho cria é tão interessante, que ao final não se sabe quem é a atriz e quem é a mulher real. A escolha das histórias e personagens é tão criteriosa que leva-o a fechar o documentáriocom o depoimento de uma médica, por sinal, uma espécie de versão carnavalesca de uma Clitemnestra irredutível porém auto-inflectiva, no meio da Sapucaí, à procura de Nemo.

http://www.cinemaemcena.com.br/jogodecena/blog.asp

Noel - Poeta da Vila


A história genérica de Noel Rosa todos conhecem. Um cara de queixo torto, estudante de Medicina, feio como Frankstein, e que morre de tuberculose aos 26 anos. O que poucos sabem é que o Noel Rosa fez no Brasil dos anos 30 o que os EUA somente viriam a fazer nos 50: colocar os pretos e os brancos para tocarem juntos. E muito menos se sabe sobre os detalhes da vida de Noel.

Boêmio e manguaça, Noel era um desses caras que já nasceram tortos. Bebia, fumava, cheirava loló, frequentava o meretrício, tomava cachaça, jogava sinuca, falava palavrão, se apaixonava por mulher da zona... enfim... o que esperar de um tipo desses! Lógico: poesia.

O filme "Noel - Poeta da Vila" segue bem de pertinho a biografia do João Máximo - que por um golpe de sorte adquiri a edição já esgotada por uma nota preta . Ricardo van Steen - que deve ser filho de Edla van Steen - fez um filme ótimo sobre o Rosa. Mostrou bem como um cara branco e de classe média acaba conhecendo criaturas do calibre de Ismael Silva e por meio deste chegar ao mundo do samba onde habita o pedreiro Cartola e o marceneiro e malandro Wilson Batista. Mostra como esse jovem ingênuo descobre o mundo horroroso da birita, do samba, das mulheres, das altas horas e das ressacas. Aos 19 anos já vende milhares de discos. É um ídolo do rádio, que era o meio de comunicação mais importante na época. Num Carnaval, conhece a Lindaura, quinze anos. Traça a Lindaura sem se preocupar com as consequências. Meses depois, conhece Ceci e por ela se apaixona. Vai enrolando as duas o quanto pode, até que é enunciado pela mãe de Lindaura como raptor de menores, restando-lhe duas saídas terríveis e equivalentes, casamento ou xilindró. Quando descobre que é tuberculoso, vai para Minas se recuperar. Longe daquela vida horrorosa que levava - nos bares e meretrício, cheia de bebida, cheiro de cigarro, loló, sinuca, palavrão e mulher de zona - acaba ficando melancólico. Volta ao Rio de Janeiro e reencontra Ceci. Nesse reencontro há uma cena de gosto duvidoso... algo bizarra, dos beijos com as mascaras hospitalares. Eu podia ter sido poupado pois estava implícito...

Torna-se parceiro de Ismael e de Chico Alves. Engravida a Lindaura. Ceci o deixa para ficar com Mario Lago. Nesse meio tempo, Lindaura perde o bebê. A tuberculose piora e ele bebe mais. Nas últimas, termina "Último Desejo", samba que havia prometido para Ceci.

Mas antes do ar depressivo tomar conta do filme, Noel protagonizou uma polêmica engraçadíssima travada através de canções com Wilson Batista. O filme mostra bem isso. Wilson fazia apologia do malandro de lenço no pescoço para não sujar o colarinho, navalha no bolso e chapéu Panamá aba larga. Ao samba Lenço no Pescoço, Noel respondeu com "Rapaz Folgado." Vários de seguiram como Mocinho da Vila, Feitiço da Vila, Conversa Fiada... e Palpite Infeliz. Um detalhe que não me lembro bem é se Frankenstein da Vila, que ficou sem resposta por parte de Noel, foi mesmo feito por Wilson Batista nas circusntâncias da morte de seu pai.

Noel - O Poeta da Vila, é um filme, da safra recente de filmes brasileiros, muuuito estranho. Em todo o filme há apenas um tiro. Um tiro apenas! O tiro que Ismael Silva da no malandro encrenqueiro. Tudo isso me deu uma profunda esperança de que o cinema brasileiro voltará ser cinema e enterrará de vez essa praga de Homens dos Anos, Tropas de Elites...
Nota. Caricatura de um dos maiores caricaturistas brasileiros - Lula Palomanes

O Que Há de Ficar

O Que Há de Ficar é um curta fresco do diretor Felipe Continentino que assisti ontem. Fresco pois parece que depois do Festival do Rio 2008, este é o segundo lugar onde o doc é exibido. Pode ser impressão minha, pode ser até pretenso de minha parte pensar que o Felipe Continentino teve algumas sacadas boas de Bergman - algo do Persona - e de Antonioni (especialmente contidas no céu de nuvens, as visões repetidas da piscina e no passarinho de madeira na varanda deixando-se ao movimento do vento) estão ali, controladas para o tempo certo de um curta, numa narrativa linear porém atravessada de não-ditos.

A bela Maria Flor protagoniza uma jovem, provavelmente há anos vivendo fora do país que recém chega à casa de sua infância. No início, quando a câmera focaliza a mala e a cama onde a protagonista sem nome dorme, não fica claro se ela está de partida ou chegada. Aos poucos, com a câmera acompanhando-a em todos os recantos da ampla, vazia e intimista casa, percebe-se que aquela era uma casa que guardava lembranças, nem sempre boas, mas aparentemente mais intensas que as más.

Com muito mais silêncios e vazios que razões narrativas, com delicadeza, o curta focaliza a economia de emoções da protagonista no contato com objetos do passado, os discos, os quadros, o sofá preferido, as fotos escolares, os livros prediletos, a piscina, com os pequenos detalhes guardados nos objetos e lugares da casa.

Vera Holtz é a mãe. Só se sabe isso, de sua breve aparição na casa. Ao visitar a filha, numa escolha difícil, nostalgicamente decidem as duas o que deve ser vendido dos discos e quadros, ou levado.

Pelas razões expostas, Viva, Patricia e eu viemos discutindo no metrô sobre esses espaços vazios deixados propositalmente pelo diretor e roteirista, preenchendo-os com várias hipóteses, e uma plausível é a de que Filha e mãe vivem no exterior ou longe uma da outra, talvez em países diferentes, e decidem se encontrar na casa; e a filha decide vir antes para preparar uma surpresa à mãe, arrumando os móveis numa tentativa de prolongar a sensação de pertencer ainda àquele espaço adiando o que há de perda em qualquer partida. Mas evidentemente, essas hipóteses somente fazem sentido aqui, numa quinta-feira chuvosa e paradoxal, após um curta que fala de saudade e por isso propício ao reencontro com uma grande amiga - que não via há mais de três anos.

Um curta interessante para um mundo tão pequeno!

Antologia das Mensagens Velozes

Prometi que não falaria mais nisso, mas corre o risco de Obama chamar Larry Summers de volta ao Departamento do Tesouro. Summers foi Secretário do Tesouro durante a dinastia Clinton. Dizem que é brilhante, mas esta não é a mesma opinião do pessoal verde e do pessoal do sexo feminino ligado ao grupo alcalino positivo das ações afirmativas.

http://en.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Summers

Quando ocupou a sala ao lado da de Dart Wader, no último andar do prédio da H Street, declarou que empresas poluidoras deveriam mesmo ir para paises em vias de desenvolvimento, pois lá os custos sociais seriam menores, já que a mão de obra é mais barata.

Como heitor de Rarvard disse que determinadas funções, como o gerenciamento de alguns endowments estava aquém da capacidade de gestão de uma das professoras. Os inimigos sugeriram por ela se tratar de veterinária e mulher. Os amigos de Larry quiseram emendar o soneto dizendo que ele a chamou de incompetente por ser veterinária e não médica.

Enfim, seja Larry, seja Robert Rubin, parece que voltam mesmo os Chicago Boys. O problema é que para reformular o New Deal, especula-se chamar os caras que o desmontaram... É mais ou menos chamar obsessivo Humbert do Nabokov para levar a Lolita num passeio dominical, ou sendo mais prosaico, chamar o lobo mau para babysitting a chapeuzinho vermelho. Vai ser um desastre!!

Sabendo disso recebi de outra amiga uma mensagem com uma petição contra Summers.
A petition to the Obama transition team against the appointment of LarrySummers

http://action.openleft.com/page/petition/treasury




Em toco o caso, chegou em boa hora a antológica mensagem tão importante quanto a anterior, do meu chapa Wagner, carnavalesco marquiçista, isquerdixta de centro, enxadrista e exímio estrategista na purrinha, lider lumpesino, psicanalista suburbano, ex-braço direito de Jesse Valadão, enfim, um ser que mesmo desprovido de qualquer beleza exterior , ainda guarda no fundo de si algumas qualidades rousseaunianas.

--- Em qua, 12/11/08, Chico escreveu:

De: chico
Assunto: Re: Peço sua atenção para [ ].
Para: academiabrasil@iconoclastia.com
Data: Quarta-feira, 12 de Novembro de 2008, 12:49

Wagner,

Por aqui ha muita esperanca. Mas muita gente anda preocupada, muita gente ja
esta desempregada e parece, segundo os economistas, que a parada toda estoura no
varejo ateh junho do ano que vem. Sinceramente, nao sei se o Obama vai dar
jeito. Mas que eh simbolica, a vitoria dele, eh.

Abraco grande a todos. Chico.




Valeu, Chico!

Quanto a Obama e os caralhos... Acho que estes caras deveriam voltar um pouquinho ao velho Marx, não o político, mas o pensador da economia. Estes caras deveriam ler o "Capítulo 6º; o inédito" e sacar que só quem produz valor é o "trabalho produtivo". O trabalho improdutivo, apenas realiza valores, seja ele o cabeleireiro, o corretor de imóves, o especulador da bolsa. Todos dependem do valor gerado pelo trabalho produtivo!

Mesmo a grana preta q rola nas .com etc é uma parte do valor gerado pelo capital produtivo e entregue a terceiros, quartos etc para que este negocie seus produtos e td aquilo ligado a ele; propaganda, formas de consumo etc...

Portanto, a saída é uma só; 1) fiscalizar as transações no mercado financeiros, de forma q elas não sejam percentualmente superiores a 30% ou menos do que circula de capital geral por trabalho produtivo; 2) Garantir o funcionamento da cadeia produtiva de grande escala; automóvies, informática, navios, etc.... (produção consumidora); 3) Realizar grandes obras de infraestrutura pública para desacelerar o desemprego...; 4) Ampliar o colchão social mínimo (bolsa isso, bolsa aquilo) para o lúmpen e os trabalhadores muito pouco qualificados; 5) diminuir o empréstimo compulsório dos bancos comerciais juntos aos bancos centrais 6) rezar p q Deus nos ampare; 7) Arriar um ebó para tranca-rua abrir os caminhos...

No mais.

Grande abraço e obrigado.

Wagner PP







Nota: Este email foi editado, pois havia muito mais palavras de baixo calão, troca de acusações, infâmias e injúrias.

Una Breve Vacanza


Vittorio de Sicca fez o filme “Una Breve vacanza” em 1973, já quando o Neo-realismo italiano era uma sombra estilística apagada na memória de cinéfilos fiéis à temática dos problemas sociais, das crianças lacrimosas, dos atores desconhecidos e da ambientação hiper-realista... É a estória de Clara Mataro, uma mulher metalúrgica, de poucas posses, com 3 filhos que ama, e uma horrenda família composta por um marido embrutecido, o cunhado tão rude estúpido e grosseiro quanto ao irmão, com o adendo de uma leve marca do mau-caratismo, e uma sogra exemplarmente sofredora e por isso, sintomaticamente latina – com o detalhe de todos viverem sob o mesmo teto, e apenas Clara a trabalhar. Após uma síncope de exaustão no trabalho na fábrica onde trabalha, Clara, sob orientações médicas, é recomendada a seguir para uma clínica de repouso no norte montanhoso de Dolomites. A família – não sei se ja disse, ‘horrenda’ - insiste que ela está bem e que não precisa do tal tratamento. Apesar de amar aos filhos, a insatisfação no casamento não a faz titubear e parte para as “férias forçadas.” Chega à clinica e logo percebe que dependendo da classe social, os tratamentos são diferenciados. Mas independente da discriminação entre pacientes nababos e remendados, a experiência da recuperação de Clara não é apenas física, mas emocional. A famosa consciênça de crasse passa longe daqui. Aos poucos Clara torna-se amiga de outras internas, independente de quanto levam na carteira, e adquire novas atitudes frente a sua feminilidade, a leitura, à solidariedade e ao amor. Sua vida muda. Torna-se confidente de mulheres - como a interpretada por Adriana Asti no papel de Scanziani, uma doente mental em estado terminal, um dos pontos sensíveis do filme - que talvez jamais as encontrasse em seu dia-a-dia. Aliás as mulheres que encontra são interessantíssimas...

Todos os estágios de sua feminilidade são expostos, independente da dimensão de sua felicidade frágil e por que não dizer, perturbada pela presença do marido. De Sica impõe um diálogo de sombras com o espectador através da alternância de cenários entre os Alpes oníricos ensolarados, a fábrica opressora, e a casa escurecida – onde quase não é possível distinguir os rostos - , compondo nessa reprodução de fragmentos um quadro onde o tema do, voilá, o adultério, esta tão batida carta, é reinventado. Na clínica, reencontra um jovem mecânico que a convidara a um café no dia da consulta, antes da viagem. Clara, uma mulher de invulgar modestia, deixa-se levar pela atração e nós acabamos torcendo por ela quando o drama vira dramalhão e a paixão entra na veia. Supostamente, no filme, que é uma espécie de dramalhão romântico, mas cheio da sensibilidade, De Sicca nega-se à farsa exuberante ou ao drama existencial que, por exemplo, Antonioni enveredou após deixar os neo-realistas. Supostamente, o filme foi baseado no adágio de Appollinaire, “Só na doença, os pobres tem férias” – o que não deixa de ser uma verdade.

E o bom dos filmes do De Sicca é o final: nunca feliz, mas não menos verosímil. Clara, retorna a casa, após ter a alta antecipada pelo médico – resignado, mas sem deixar de ser delicadamente vingativo - que tentara discretamente porém sem sucesso, seduzi-la. A emoção produzida pelo amor dissolvido que sentira por Luigi torna-se evidente, em toda a sua amplidão, na viagem de retorno de trem para casa. De Sica nos deixa a amarga imaginação da extensão das perdas de Clara.

Tudo bem. Acredito que grandes obras literárias ou filmicas não necessitam nem de longe finais nem de longe felizes. Mas o título que o português deu a esta, francamente, é de uma boçalidade hermenêutica: "Amargo Despertar"


Musica do dia. Age Maria (Guinga e Aldir Blanc)
Age, Maria

Rasga o teu véu de virgem

Tinge tuas mãos na vertigem do pecado

Maria, ateu ao teu lado

Lanço em teu ventre

A língua que te consagre

Milagre é ser pura em plena incontinência

Sacra é a vida da incoerência

Não quero ser carpinteiro

Pra esculpir cruz que imortalize:

Que não seja eu

Que ao te amar

Te martirize



Le Scaphandre et le Papillon


Tive um breve, mas intenso contato com meu avô. Nesta breve estada em minha casa, o velho alfaiate - dizem que dos bons - ao inventar estórias sobre caça a perdizes, vaticinava. Falava que não somos nada nesse mundo ao referir-se a dois dos netos - um que ele nem chegou a conhecer. Eu, um guri na época, mais preocupado com meus times de botões, imaginava uma carga de fatalismo um tanto exagerada nas palavras do velho e o tomava como um gárrulo.


Ontem lembrei do meu avô, e de muitos outros fatos da infância, e de gente querida que foi ficando para trás...


Julien Schnabel fez um filme belissimo que numa tradução para o português seria mais ou menos “O escafrandista e a borboleta,” baseado na história de Jean-Dominique Bauby, ex-redactor-chefe da revista francesa Elle. Bauby, nascido em 1952, pai de três filhos (Théophile, Céleste e Hortense), era redactor-chefe da revista francesa Elle quando foi vítima de uma doença rara, uma espécie estranha de AVC.


Ao acordar, 20 dias depois, no Hospital Marítimo de Berck-sur-Mer, descobriu que perdera a capacidade de se movimentar e de falar. Lúcido, mas paralisado por completo, podendo respirar, comer por meios artificiais e mover o olho esquerdo, Bauby começa a ditar um livro baseado num sistema de comunicação que consistia em piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. "Ditando", não apenas palavra por palavra, mas ainda letra por letra, recompôs o livro de sua vida mentalmente.
Esse filme talvez tenha sido um dos melhores e mais poéticos filmes dos últimos meses. Julien Schnabel nos faz perceber os detalhes tão inacraditáveis, de maneira tão metafórica, tao densa, tao estranhamente proximos, que ninguém pode passar impassível por determinadas cenas desta estória, pois meu amigo... não somos nada nesse mundo, e vivemos num mundo cheio de escrotidão.

Tempest

Um filme de de Paul Mazursky, 1982.

Phillip Dimitrius, John Cassavetes, é um arquiteto que passa pela crise dos 40 anos. Angustiado, sem uma amante, abusando da birita, desinteressa-se da esposa, Gena Rowlands, que obviamente passa a abandona-lo. Apos uma discussao ruim - como sao todas as brigas de separacao - na frente da filha, separam-se. Ele entao decide viajar para a Grecia em busca de suas raizes. A filha adolescente, chata e no atraso, o segue a revelia. Na Grécia, tentando reencontrar suas raízes, conhece Aretha Tomalin, uma mulher misteriosa, cantora de cabaré e se tornam amantes. Sempre tentando fugir da mulher e de seu (dela) amante, por acaso seu antigo patrão, decide se instalar numa ilha deserta. Aretha e a Filha seguem o Préspero. Chegando a ilha encontram esse pastor de ovelhas de nome Kalibanos, Raul Julia – impagável, engraçadíssimo. Bom, Aretha e Phillip são mais ou menos amantes, pois por razões meio doidas, ele declara voto de castidade, enquanto a pobre Aretha, balzaquiana inopinada, insistentemente filmada sem sutien, com uma camisa branca levemente úmida, gradativamente sobre pelas paredes.

O filme tem umas sacadas que só o Cassavetes poderia ter, pois são dele: A insistência de Cassavetes em ser independente e pagar o preco por isso estão la nas criticas sutis a Coppola e Woody Allen - mas o final é algo decepcionante.

Declaração da inutilidade de meu voto


Falta 3 dias e algumas horas para uma das eleições mais importantes da historia dos Estados Unidos desde, talvez, a de Roosevelt ou quem sabe Lincoln. Não criei este espaço para falar de política. Que Bertold Brecht me perdoe, mas não gosto de politica e nem por isso me considero um analfabeto político. Acredito piamente na máxima do historiador Marc Bloc sobre a qual os eventos políticos estão na epiderme, e portanto, por isso, tornam-se irrelevantes para a história. Mas não posso deixar de comentar este fato importante: Faltam 3 dias para todos se livrarem da ignorância crapulosa, da desgraça invencível, da desmoralização, da penúria absoluta que se abateu sobre as cabeças de todos nós – e aqui incluo você - desde 2001.

A falta de 3 dias para um fato - que fique claro - não é um fato, pois não se pode fazer do apenas iminente um algo concreto. Mas a ansiedade é tamanha, que me deixei contagiar pela ilusão de que a falta de três dias já é sobranceiramente um evento que sintetiza a esperança no futuro e ao mesmo tempo o medo de que a ilusão perdida numa era perdida aprofunde o fosso do obscurantismo oportunista dessa era, que em três dias terminará.

No fundo, pouco importam os três dias, pois qualquer apedeuta que como eu que tenha lido Robert Dahl ou Lijphart sabe que o voto é irracional e que há sempre algo estranho na estabilidade política de regimes bi-partidarios, como este. Eu, particularmente, não acredito no voto por dois motivos muito mais prosaicos e admito um tanto retóricos: primeiro, pelo total desconhecimento como se constrói a imagem de um candidato a presidente; segundo, pelo fato de que a fé na vitória, assenta-se na defesa emocional de ideologias e valores morais apelativos.

Fato é que há 3 dias das eleições, a minha esperança ainda está no ar. É etérea. Democratas e Republicanos não cantam vitória ainda, por um motivo claro. Sabem que as eleições americanas não são simples. A certeza do futuro não existe. Democratas sabem que levam no voto popular California, NY e outros estados ricos e importantes, mas não sabem se levam os voto colegiado dos delegados de estados da caipirolândia. Ainda paira sobre a cabeça dos Democratas a sina dos 5 votos que faltaram para Gore se eleger no Colégio Eleitoral, mesmo que tivesse conquistado meio milhão a mais no voto popular. Ainda paira sobre a cabeça dos Democratas uma coisa pior, o fantasma da fraude eleitoral baseado nos Southern Sheriffs, nos desdentados do Wall-Mart, na felicidade histérica do Good Morning América da ABC, nas notícias manipuladas da Fox News, no assombro dos fantasmas de Cheney e de Edgar Hoover e nos ativistas cristão-pseudo-fascistas que tentam induzir o voto de americanos ignorantes.

Não sei se já disse que não creio no voto, e o proselitismo, é mais um dos motivos que me levam a desconfiar. E um idiota pode até levantar-se e dizer, o Chico não acredita na Democracia! Não só acredito, como considero-a indispensável para perpetuar os princípios democráticos calcados na justiça, na liberdade, na igualdade e na solidariedade. Ideais vagamente defendidos por Obama. São esses mesmo ideais democráticos que alimentam a minha esperança de que o GOP seja derrotado e com ele o eleitor arquetípico conservador, obeso e branco, religioso e obscuro, que defende os valores da família dentro de seu SUV, opõe-se ao casamento de veados, e ao finaciamento do aborto com recursos públicos – valores que por sinal, são defendidos pela última flor do láscio, a calipígia porém palilógica, Sarah Palin.

Barack Obama pode ser eleito em 3 dias. Se eu votasse, votaria, cético, nele. Cético, pois não acredito na sua proposta de espalhar a riqueza aumentando o imposto dos mais ricos e distribuindo a riqueza aos pobres; não acredito que ele jacksonianamente terminará com a permissividade regulatória, cara a Greenspan e Bush; não acredito que assumindo a presidência - se de fato for eleito e vier a assumir – abandonará as idéias liberais e adotará algumas poucas idéias intervencionistas, tal como Roosevelt fez em 1932, pois quando chegou, este, de alguma maneira, herdou melhores condições que o próximo presidente herdará. Além do mais, há três dias das eleições, não acredito que uma campanha muito mais rica que a de John McCain sustente as promessas eleitorais feitas até agora. Acima de tudo, pelo pouco que vi até agora, não acredito que o desdentado-cristão-pseudo-fascista-conservador-branco-pro-life vote em Obama. Ainda assim, mesmo não tendo todos os dentes bons mas tendo um bom atestado de antecedentes Iluministas, se eu votasse, mesmo não acreditando nos políticos, votaria, cético, em Barack Obama.

Ladrões de Bicicletas



Eu rio, choro, e aperto os braços de minha poltona toda a vez que assisto o “Ladrões de Bicicleta” de Vittorio De Sica (1948), toda a vez que vejo o menino Bruno (Enzo Staiola). O filme é um clássico dos clássicos do cinema neorealista italiano, mas que possui um enredo bastante simples onde sobra realismo e emoção.

Antonio Ricci é um desempregado, que após meses sem trabalho consegue uma vaga como colador de cartazes. Para preencher a vaga plenamente necessita de uma bicicleta, que encontra-se empenhada a causa de uma avaria sem honra de caução. Maria tem a capacidade de antever as coisas. Possui um sentido prático, buscando uma solução imediata para os problemas.
Imagino que Maria pense, a bicicleta é o meio pelo qual Antonio sustentará sua familia, portanto decide empenhar os lençóis da cama e retira, na mesma loja de penhores, a bicicleta. Empenhando as fronhas pela bicicleta a pindaíba finalmente parece acabar e tudo parece esperançoso e positivo quando Antonio Ricci consegue o emprego onde começaria a trabalhar numa manhã de sábado. Tudo é tão impressionantemente bom que Maria, como boa cética, desconfia. Isso fica claro quando Maria, após retirarem a bicicleta do prego, pede a Antonio que a deixe fazer uma visita a um certo lugar antes de ruamrem para casa. Na parada Maria visita uma vidente (satirizada pelo Woody Alen num de seus filmes do qual não me lembro o nome agora).

Na primeira cena alguns homens se dirigem para um local de um conjunto habitacional em construção na periferia de Roma, onde um funcionário público da agencia de empregos, chama por nomes para o preenchimento de vagas. As vagas ofertadas exigem algum grau de qualificação. Ao ser chamado, Ricci está distante, sentado num canto, quase sem esperanças de conseguir uma vaga de emprego. Ele está desempregado há dois anos. A vaga é de colador de cartazes para os filmes de Hollywood e a condição para que seja preenchida é a de que Antônio tenha uma bicicleta.

Entretanto, enquanto colava cartazes, Ricci tem a sua bicicleta roubada, exatamente no momento em que esta colando o cartaz do filme Gilda, um sucesso em 1946. Este é um filme clássico de Charles Vidor que retrata da história de um jogador inveterado em Buenos Aires. Glenn Ford consegue ascender na vida indo trabalhar num cassino, tornando-se braço direito de um mega-investidor que administra negócios escusos, envolvendo-se com a única mulher que não podeira se envolver: a esposa do patrão, o pitel da Rita Hayworth, sua ex-namorada em tempos imemoriais. De Sica teve uma grande visão com essa cena. Enquanto sua estória falava de um drama real de uma familia rodeada pela miséria e a luta pela sobrevivência, o único trabalho disponível era exatamente o de reproduzir a ilusão de que a indústria do entretenimento podería salvá-los da penúria. Pode não ser uma idéia nova, e mesmo que já tenha sido aventada, nunca é demais lembrar que a restauraçâo da Itália, sob a égide do Plano Marshall, trazia junto o cinema de Hollywood, baseado em comédias e dramas de interiores, sofisticados e distantes das questões sociais, que De Sica retrata bem aqui.

Desesperado, busca apoio da policia e dos amigos e tenta de todas as formas encontrar a bicicleta. Quando chega a casa, sem saber o que fazer, derrotado, Antonio Ricci senta-se desalentado na cama e sem coragem de contar a verdade à esposa e ao filho, diz Bruno que a bicicleta quebrou. Apenas um adendo, de maneira nenhuma, ao menos para mim, o sentimentalismo do filme passa uma imagem de que os filhos e a casa sejam condição desumana para Maria. Ela é uma mulher forte. Há sim um detalhe interessante, quando Antonio diz que ha trabalho para Maria e lhe mostra uma janela na rua. Alguém fecha a janela, impedindo que Maria veja o interior do local de trabalho. Interessante essa metafora. A opressão feminina não estava na casa, mas nas condições sociais impostas – talvez o Paul Auster nao concorde.

Antônio é tomado pelo medo e o filho decide apoiá-lo. Precisa de uma bicicleta para seguir no emprego como colador de cartazes. A estória, acima de tudo, mostra o drama do homem comum, sua existência quase imperceptível, diluída na multidão, visível na indiferença protocolar da policia ao tratar do caso, no encontro fortuito com seminariastas falando alemão. Então a peregrinação em busca da magrela começa levando-o a caminhos e emoções irreconhecíveis até então. Procurando por conta própria, junto ao filho Bruno, Antonio Ricci encontrará o significado da dor, do egoísmo e da angústia pois ao perder a bicicleta, Ricci perdeu a chance de ter sua dignidade resgadada. Nesse momento, o filme envereda por uma espécie de jogo de paradoxos. Antonio busca o amigo Baiocco, chefe de uma trouppe de artistas, em meio a uma reunião de ativistas políticos. Os discursos inflamados por justiça social não o comovem. Seu objetivo é recuperar sua bicicleta. Dirigem-se então à Praça Vitório Emanuel, local da feira de bicicletas. Baioco, Antonio e o filho Bruno chegam na feira de bicicleta na Praça Vittorio. Procuram uma Fides ano 1935. Baiocco sabe que os ladrões desmontam a bicicleta para vendê-las por parte. Por isso devem procurar as partes da bicicleta. Trabalho ingrato este de encontrar e remontar fragmentos perdidos... Enquanto o pai procura pela bicicleta, o filho Bruno, sozinho, vasculha as bancas da feira de bicicletas pelos fragmentos. De repente, o menino é assediado por um homem com toda a pinta de pedófilo, que busca aliciá-lo e o pai repreende-o para que não se afaste dele, o pai.

Eles finalmente desistem de procurar na feira. Uma chuva torrencial cai. Pai e filho se abrigam da chuva repentina numa pequena cobertura de telhado numa casa de esquina. Ao correr para se abrigar, Bruno escorrega e cai. O pai não percebe e não se importar. Quando a chuva passa, o pai avista o ladrão. Pai e filho correm em direção ao mendigo que conversava com o ladrão. O mendigo se nega a revelar o paradeiro do ladrão e é seguido por Antonio e pelo filho. Chegam a uma igreja, onde voluntários prestam serviços aos mendigos: uma barba, dois pais-nossos; um corte de cabelo quarto salve-rainhas... Antonio insiste, mas o mendigo se nega a revelar o paradeiro.

Aos poucos Antonio se descontrola. Aos poucos, o homem normalmente pacato, calado e taciturno, torna-se alheio ao seu entorno. Grita com o filho. Bruno, passa a protagonizar esta alheação atraves de um sentimento de abandono. Mesmo tendo o pai o tempo todo ao seu lado, é uma criança esquecida. Certifica-se disso, quando da iminência da perda do filho - que pensa ter se afogado num rio. Tentando se reconciliar com o filho, e ainda com alguns tostões no bolso, leva-o a um restaurante. O pai mente, tenta ser trasparecer uma felicidade resignada alienando-se da tragédia pessoal. Mas não por muito tempo. Faz cálculos de quanto ganharia como colador de cartazes. Nas mesas ao lado, familias, com perdão da palavra, voilá, burguesas, caricatas. Detalhe: sua mesa é a única que não tem toalha. O filho percebe, mas o pai tenta dissuadi-lo de que o detalhe é inerente à suas condições de vida, às suas roupas, às suas maneiras de falar e comportar-se.

Ao deixarem o restaurante, Antonio decide procurar a vidente a qual criticava. A cena guarda algo de comicidade, mas serve apenas para encadear a cena seguite na qual Antonio finalmente encontra o ladrão. Segue-o até sua casa e envolve-se num imbróglio ao alienar-se do sentido de justiça e acusá-lo pelo crime. Vizinhos e amigos defendem o ladrão – que acaba tendo uma crise providencial e dostoievskiana de epilepsia. É mais uma vez o filho Bruno que introduz o ônus da razão ao chamar um policial que tenta intervir naquilo que poderia ficar pior. O policial indaga sobre as provas e testemunhas que sustentem a grave acusação. Ricci não tem provas de que o jovem de chapéu de alemão seja o criminoso e tenta agredí-lo. Aliás, na acusação e no ato insano, Antônio passou de vítima a culpado das circunstâncias.

É dia de jogo. Um Domingo qualquer. Uma tentativa frustrada. O estacionamento do estádio lotado de bicicletas. A tentação. O destino é cruel. A vida uma m... Fora do estádio. O filho Bruno presencia tudo e pode-se dizer que contribuiu para que ele não fosse preso. Talvez sensibilizado pelas lágrimas do filho, a vitima do furto é dissuadida. A vergonha demove a perda. A então quase perda do filho - quase assediado, quase atropelado, quase afogado – agora, insiste e aprofunda a perda. Bruno chora pela desgraça do pai. Os transeúntes desaprovam o exemplo do pai para o filho. Não entendem. Antônio parece perder o filho. Se perde de si. A derrota se consuma. E eu choro. Confesso: esse filme me emociona.

The Virgin Suicides

Desse camaradas novos, tais como Michel Chabon, Jeffrey Eugenides e Nathan Englander da nova narrativa americana, fico com o Eugenides e com o Englander. Chabon é uma das coisas mais chatas que ja li. O seu Wonder Boys é chato: aborrecidíssimo. É um dos pouquíssimos livros que largo pela metade sem arrependimento. Seus personagens são figuras chapadas, sem profundidade.

Bom, mas acabei assistindo com algum atraso o The Virgin Suicides com o James Woods e Kathleen Turner.... A Sofia Coppola é uma diretora de filmes irregulares e de escolhas históricas de tradição duvidosas, com a de fazer um filme sobre a Maria Antonieta pela ótica do mundo fashion e pueril. Neste The Virgin Suicides, por exemplo, ela transformou a ironia fina e o humor negro contidos no livro homônimo do Eugenides numa estória com cortes meio sem pé nem cabeça mas que vai sendo tocada com destreza. A estória gira em torno das filhas dos Lisbon – um casal católico que zela com a mão-de-ferro estóica pelo hímen de suas crias. Jurei para mim mesmo que não molestaria os valores puritanos (risos) fazendo comentários sujos sobre a beleza das ninfetas, e menos ainda da Kristen Dunst, mas um pai com filhas daquele calibre deve ser, tem que ser, tem que aceitar infelicidade como destino de maneira lacônica (gargalhadas). Pois afinal de contas, um homem tem as filhas mais desejadas pela molecadada onanista da vizinhança, deve sofrer inflexivelmente calado. Na minha opinião só dois atores poderiam encarnar esse papel trágico de maneira cômica: o James Wood e o Steve Buscemi. Deu Wood.

O filme se passa num subúrbio de Detroit nos anos 70. Cecilia, a filha mais nova, tenta o suicídio cortando os pulsos. Sua incompetência acaba transformando a famíla que tenta ser mais aberta. Após a primeira tentativa frustrada, seus pais tentam integrá-las à comunidade fazendo festas em seu basement, regadas a ponche de frutas, músicas chatas e vigilância constante. Porém, Cecilia consegue realizar seu desejo de suicídio com sucesso, se atirando na grade debaixo da janela do quarto, durante uma festa que acontecia no porão. A partir daí o filme vira uma crônica sociológica sobre o suicídio feita pela ótica durkheimninana de uns meninos patetas que circundam a vizinhança da casa dos Lisbon.

Mais adiante, Lux, a mais velha das filhas, se envolve com Trip Fontaine, durante o baile da primavera, perde a virgindade e é abandonada após a festa, no meio do campo de futebol. Ao chegar a casa a repressão dos Lisbon se intensifica. Nesse meio tempo em que, isoladas, sem poder sair, são observadas pelos inocentes garotos do bairro, que se comunicam com elas através de códigos morse de persianas e músicas tocadas pelo telefone, elas decidem se suicidar, cada uma à seu modo. Nesse momento, acabou a história e morreu a vitória.

Eu Apertei a Mão do Paul Auster, Portanto Ele é Real


Paul Auster esteve na Politics and Prose na quinta-feira passada para apresentar seu novo livro: Man in the Dark. Auster é um camarada simpático e bem humorado. Assim que chegou fez uma piada indagando, com a voz rascada por anos de nicotina, o que tanta gente fazia ali numa tarde tão ensolarada, perdendo seu tempo para escutar um escritor sombrio. E logo em seguida fez uma leitura de quase uma hora de algumas partes de seu novo livro.
Desta vez o protagonista não é o cão de Timbuktu que narra o definhamento de seu dono. Tampouco, Auster tenta reinventar aspectos da Trilogia de Nova Iorque e de seu protagonista Daniel Quinn. Na Trilogia, Quinn, se me lembro bem, era um homem interessado na vida do escritor Paul Auster e de sua mulher Siri - que na vida real se chama Siri Hustvedt. Sobre ele Auster escreve: " O que interessa sobre as estórias que escreve não tem relação com o mundo, mas com suas outras estórias." Essa confusão meio sacana, proposital e absolutamente atrativa de níveis, protagonistas, antagonistas, e realidade com ficção, também se viu em Leviathan quando Auster introduz as personagens Iris - anagrama de Siri - e o escritor apresentado apenas por P.A..
Desta vez, não. Desta vez, pelo menos que eu me lembre, os personagens não são reinvenções espelhadas. São novos. August Brill é um homem de 72 anos e como outros de seus personagens, um homem solitário, lacônico e ambivalente . O protagonista é um escritor e crítico literário premiado pelo Pulitzer. Sofre de insônias, e enquanto rola na cama, conta a si mesmo histórias tentando esquecer coisas que prefere não lembrar, tais como a perda da mulher. Ora é um velho mágico aposentado, ora um soldado, hora um homem que cresce dentro de um buraco. Interessante: o homem no buraco é Owen Brick, o filho de um mágico que é lançado de sua casa em NY para o meio de uma guerra civil ambientada após o colapso do sistema democrático decorrente da eleição fraudulenta que lançou os Estados Unidos numa guerra após a eleição de George Bush. Nesse cenário, o World Trade Center ainda está lá, as cidades americanas vão sendo abandonadas por uma crise econômica, e a guerra é inevitável.
August Brill, após um acidente que inutilizou uma de suas pernas, está se recuperando na casa da filha em Vermont. Tem por companhia a filha e a neta, uma estudante de cinema que também se recupera do trauma de ter deixado a Escola de cinema em NY, após o acidente do namorado. E tudo se passa numa noite de insônia. Aliás, diga-se de passagem, os diálogos entre o velho e a neta sobre os filmes de sua predileção são um capítulo à parte para quem gosta de cinema e literatura.... Brill e a neta assistem alguns clássicos - Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica; A Grande Ilusão, de Jean Renoir; O Mundo de Apu, de Satyajit Ray; e Era Uma Vez Em Tóquio, de Yasujiro Ozu. Auster então faz uma reflexão - a la Saramago em Objeto-Quase - de sobre como, em todos esses filmes, simples objetos inanimados servem para expressar as emoções humanas. Enquanto isso, Owen Brick é resgatado do buraco por um soldado e tem como missão, a partir de agora, assassinar o homem responsável pela perversidade de deixá-lo naquele claustro. O responsável? Se alguém ainda lembra: August Brill.
Nos últimos anos, Auster anda preocupadíssimo com a morte e parece que a temática, apenas a temática, deve girar em torno do Viagens no Scriptorium - um dos mais fraquinhos dele . Mas este, me parece que deve trazer de volta algo do A Trilogia de Nova Iorque".
Bem, de qualquer maneira, vai por mim: tenho quase certeza que Paul Auster existe.

Um trecho:

"Estou sozinho no escuro, o mundo dá voltas dentro da minha cabeça, enquanto enfrento mais um ataque de insônia, mais uma noite branca neste vasto deserto americano. No andar de cima, minha filha e minha neta estão dormindo em seus quartos, cada uma sozinha. Miriam, de quarenta e sete anos, minha filha única, dorme sozinha há cinco anos, e Katya, de vinte e três, filha única de Miriam, que antes dormia com um rapaz chamado Titus Small, mas Titus morreu e agora Katya dorme sozinha, com o coração partido."

Música do dia: Bachianas No. 5. Egberto Gismonti - Trem Caipira.


Pão e Sonhos


Sábado. Gabriel em Sad Diego. Manhã de Olimpíadas na tv e leitura preguiçosa, entre um cigarro e outro, dos jornais.


O Financial Times celebrava no caderno de artes os 50 anos de Vertigo – que realmente, é uma das melhores coisas feitas pelo Hitchcock. Na mesma reportagem Nigel Andrews, FT's chief film critic, faz um texto muito mal costurado ligando o lançamento de Vertigo com o lançamento nos EUA do Man on Wire, documentário que mostra a façanha de do francês Philippe Pettit, que cruzou as torres gêmeas do World Trade Center, em 1974, andando sobre uma corda. Na reportagem, o distinto cidadão, diz que o documentário é a imagem espelhada de um presente ao Vertigo.


Com tempo livre para assistir 3 bons docs. Fui assistir a dois documentários do Manuel de Oliveira ( O Pão e o Pintor e a Cidade), e o tal Man on Wire:


Em O Pão (1959, 29 minutos), Manuel de Oliveira mostra o esforço dignificado do homem para produzir o pão, num ciclo que se inicia com a semeação, fecundação, nascimento do trigo, a colheita, o “debulhar o trigo, recolher cada bago do trigo”, ensacamento, transporte do grão, moagem industrial, panificação moderna, distribuição e consumo do pão. Enfim, “forjar no trigo o milagre do pão, e se fartar de pão.” Oliveira, mostra o papel do homem em cada etapa do fabrico do pão, desde a semente até à distribuição. A idéia de que há uma comunicação entre indivíduos afastados no espaço e no tempo, mas que comungam, sem saber, de único elemento: um grão de trigo.


Um documentário que inicia com a imagem de um casamento, simples, sem pompa, de dois componeses. O foco - nas mão brutas e incultivadas do trabalho do cultivo da terra. O corte - para o arado, puxado por um cavalo, sulcando a terra e novamente o foco na mão esquerda do homem, já com a aliança e retornando ao trabalho. A narrativa – feita de imagens encantadoras, como as do moinho meditando àgua em grão e pó, a mulher velha escondendo as medidas de farinha na massa do pão que amassa, na cidade, o menino invejando a vitrine de sonhos, açúcares e cremes, e o padeiro vendendo o pão de porta em porta. Imagens que ainda faziam sentido nos anos 60 e 70 no Brasil.


Um documentário, apesar de extremamente etnográfico, mostrando pelo que indica o sotaque dos diálogos o norte de Portugal, um tratamento sensível, muito poético e com uma oblíqua crítica ao Salazarismo – mas posso estar enganado. Assisti a essa versão curta, predileta do diretor, que termina exatamente com o regresso da semente à terra. Um novo ciclo se inicia: “Afagar a terra, conhecer os desejos da terra, cio da terra, a propícia estação, e fecundar o chão”
Os filmes do Manuel de Oliveira mostram uma superação de nossa trivialidade, revelam que enquanto nos preocupamos em ter expectativas irreais sobre o Homem, enquanto tentamos nos armar de uma ilusão deslumbrante, carente de percepção, sobre o que nos rodeia, percebemos a assombrosa farsa da incompreensão. Por isso ele faz filmes simples, sobre gente simples.

Em O Pintor e a Cidade, (1956, 27 minutos), Oliveira mosta a cidade do Porto através das aguarelas do pintor António Cruz. O artista sai do seu atelier e percorre a cidade e ass imagens reais alternam com as impressões estéticas que o artista vai registando nas suas aquarelas. Supostamente, este é um documentário muito influenciado por Berlim, Sinfonia de uma Cidade de Walther Ruttman, o mesmo que trabalhou com Leni Reifenstahl no monumental Triunfo da Vontade. Oliveira, após assistir ao doc de Ruttman, decidiu fazer um filme desse género sobre a cidade do Porto.


O documentário mostra a actividade fluvial no Rio Douro, na zona ribeirinha da sua cidade natal. Este filme seria o primeiro documentário entre várias primeiras obras que abordariam, de um ponto de vista etnográfico, o tema da vida marítima da costa de Portugal. É especial pois é o primeiro feito em cores pelo diretor. Além disso o som e os ruídos da cidade – altísssimo, as vezes - são quase um elemento autônomo dentro do filme. Uma coisa quase que separada das imagens. Uma espécie de desdobramento, uma sucessiva divisão do olhar que o acto de filmar representa. Algo que encontramos muitas vezes no Win Wenders. Ou seja, repensar a origem daquele ruído e juntá-lo novamente, reconciliando som e imagem.

Por algumas razões pessoais, gostei imensamente do O Pão.

Man On Wire, muitíssimo diferente dos anteriores, é um doc ótimo. Um dos destaques do festival Sundance 2008, dirigido por James Marsh. É um documentário onde beleza e loucura giram em torno de um sonho que se tornou real. Friamente falando, Philippe Petit parece um lunático que encontrou um monte de outros divertidos maconheiros confessos, para realizar um sonho: caminhar na corda bamba, no topo dos 110 andares, que ligava as torres gêmeas World Trade Center nos idos de 1974.


Marsh vai pouco a pouco construindo a imagem de Philippe Petit como um homem obstinado pelas cordas, que após fazer caminhadas sobre corda na catedral de Notre Dame, em Paris e sobre uma ponte em Sidney, na Austrália, resolveu que World Trade Center seria o seu objetivo maior. Diga-se de passagem, o diretor, abusando de triangulações na narrativa, de idas e vindas ao passado, uso de imagens e jornais da época, consegue mantê-la firme até o final. Começa contando a infância de Philippe Petit e sua compulsão por escaladas, quando as torres se tornaram para ele um objeto de obsessão desde que viu pela primeira vez - ainda quando não haviam sido construídas - numa propaganda de revista na sala de espera do dentista. Passa ao encontro com as figuraças que o ajudariam a se infiltrar e introduzir as cordas e os cabos, no prédio. E termina mostrando que após uma noite insone, aconteceu finalmente a travessia: oito idas e vindas, policiais putos da vida não vendo a hora de pôr as mãos naquele francês maluco que os provocava, ajoelhando-se, deitando-se e fazendo sinais para deleite da patuléia que assistia petrificada lá embaixo. Acho que qualquer americano levemente instruido que assistir a esse filme, deixará por alguns momentos de pensar nos dias do fim do WTC - tema no qual o doc não toca em nenhum momento.
Tive a certeza de que a comparação entre Vertigo e Man on Wire foi de uma comparação infeliz do Nigel Andrews, pois em nada se tocam ou assemelham, mesmo espelhados.

Amamos a vida quando podemos

Também nós amamos a vida quando podemos
Dançamos entre dois mártires e no meio deles erguemos um minarete de violetas ou uma palmeira.
Também nós amamos a vida quando podemos.
Ao bicho- da - seda roubamos um fio para tecer o nosso céu e estancar este êxodo.
Abrimos a porta do jardim para que o jasmim saia para a rua como um dia bonito.
Também nós amamos a vida quando podemos.
Na morada que escolhemos, cultivamos plantas vivazes e recolhemos os mortos.
Sopramos na flauta a cor da distância
desenhamos um relincho no pó do caminho.
E escrevemos os nossos nomes
pedra a pedra.
Tu, ó raio, ilumina a nossa noite, ilumina-a um pouco.
Também nós amamos a vida quando podemos.

Mahmud Darwich, poeta palestino, morreu no Texas no último sábado, após uma cirurgia no coração.
http://www.nytimes.com/2008/08/11/world/middleeast/11darwish.html?_r=1&ref=books&oref=slogin

Dos àrabes ainda restam vivos.
Tahar Ben Jelloun. Leaving Tangier, The sand child, This blinding absence of light
Elias Khoury. Gates of the city, Little mountain, The kingdom of strangers