Eu rio, choro, e aperto os braços de minha poltona toda a vez que assisto o “Ladrões de Bicicleta” de Vittorio De Sica (1948), toda a vez que vejo o menino Bruno (Enzo Staiola). O filme é um clássico dos clássicos do cinema neorealista italiano, mas que possui um enredo bastante simples onde sobra realismo e emoção.
Antonio Ricci é um desempregado, que após meses sem trabalho consegue uma vaga como colador de cartazes. Para preencher a vaga plenamente necessita de uma bicicleta, que encontra-se empenhada a causa de uma avaria sem honra de caução. Maria tem a capacidade de antever as coisas. Possui um sentido prático, buscando uma solução imediata para os problemas.
Imagino que Maria pense, a bicicleta é o meio pelo qual Antonio sustentará sua familia, portanto decide empenhar os lençóis da cama e retira, na mesma loja de penhores, a bicicleta. Empenhando as fronhas pela bicicleta a pindaíba finalmente parece acabar e tudo parece esperançoso e positivo quando Antonio Ricci consegue o emprego onde começaria a trabalhar numa manhã de sábado. Tudo é tão impressionantemente bom que Maria, como boa cética, desconfia. Isso fica claro quando Maria, após retirarem a bicicleta do prego, pede a Antonio que a deixe fazer uma visita a um certo lugar antes de ruamrem para casa. Na parada Maria visita uma vidente (satirizada pelo Woody Alen num de seus filmes do qual não me lembro o nome agora).
Na primeira cena alguns homens se dirigem para um local de um conjunto habitacional em construção na periferia de Roma, onde um funcionário público da agencia de empregos, chama por nomes para o preenchimento de vagas. As vagas ofertadas exigem algum grau de qualificação. Ao ser chamado, Ricci está distante, sentado num canto, quase sem esperanças de conseguir uma vaga de emprego. Ele está desempregado há dois anos. A vaga é de colador de cartazes para os filmes de Hollywood e a condição para que seja preenchida é a de que Antônio tenha uma bicicleta.
Entretanto, enquanto colava cartazes, Ricci tem a sua bicicleta roubada, exatamente no momento em que esta colando o cartaz do filme Gilda, um sucesso em 1946. Este é um filme clássico de Charles Vidor que retrata da história de um jogador inveterado em Buenos Aires. Glenn Ford consegue ascender na vida indo trabalhar num cassino, tornando-se braço direito de um mega-investidor que administra negócios escusos, envolvendo-se com a única mulher que não podeira se envolver: a esposa do patrão, o pitel da Rita Hayworth, sua ex-namorada em tempos imemoriais. De Sica teve uma grande visão com essa cena. Enquanto sua estória falava de um drama real de uma familia rodeada pela miséria e a luta pela sobrevivência, o único trabalho disponível era exatamente o de reproduzir a ilusão de que a indústria do entretenimento podería salvá-los da penúria. Pode não ser uma idéia nova, e mesmo que já tenha sido aventada, nunca é demais lembrar que a restauraçâo da Itália, sob a égide do Plano Marshall, trazia junto o cinema de Hollywood, baseado em comédias e dramas de interiores, sofisticados e distantes das questões sociais, que De Sica retrata bem aqui.
Desesperado, busca apoio da policia e dos amigos e tenta de todas as formas encontrar a bicicleta. Quando chega a casa, sem saber o que fazer, derrotado, Antonio Ricci senta-se desalentado na cama e sem coragem de contar a verdade à esposa e ao filho, diz Bruno que a bicicleta quebrou. Apenas um adendo, de maneira nenhuma, ao menos para mim, o sentimentalismo do filme passa uma imagem de que os filhos e a casa sejam condição desumana para Maria. Ela é uma mulher forte. Há sim um detalhe interessante, quando Antonio diz que ha trabalho para Maria e lhe mostra uma janela na rua. Alguém fecha a janela, impedindo que Maria veja o interior do local de trabalho. Interessante essa metafora. A opressão feminina não estava na casa, mas nas condições sociais impostas – talvez o Paul Auster nao concorde.
Antônio é tomado pelo medo e o filho decide apoiá-lo. Precisa de uma bicicleta para seguir no emprego como colador de cartazes. A estória, acima de tudo, mostra o drama do homem comum, sua existência quase imperceptível, diluída na multidão, visível na indiferença protocolar da policia ao tratar do caso, no encontro fortuito com seminariastas falando alemão. Então a peregrinação em busca da magrela começa levando-o a caminhos e emoções irreconhecíveis até então. Procurando por conta própria, junto ao filho Bruno, Antonio Ricci encontrará o significado da dor, do egoísmo e da angústia pois ao perder a bicicleta, Ricci perdeu a chance de ter sua dignidade resgadada. Nesse momento, o filme envereda por uma espécie de jogo de paradoxos. Antonio busca o amigo Baiocco, chefe de uma trouppe de artistas, em meio a uma reunião de ativistas políticos. Os discursos inflamados por justiça social não o comovem. Seu objetivo é recuperar sua bicicleta. Dirigem-se então à Praça Vitório Emanuel, local da feira de bicicletas. Baioco, Antonio e o filho Bruno chegam na feira de bicicleta na Praça Vittorio. Procuram uma Fides ano 1935. Baiocco sabe que os ladrões desmontam a bicicleta para vendê-las por parte. Por isso devem procurar as partes da bicicleta. Trabalho ingrato este de encontrar e remontar fragmentos perdidos... Enquanto o pai procura pela bicicleta, o filho Bruno, sozinho, vasculha as bancas da feira de bicicletas pelos fragmentos. De repente, o menino é assediado por um homem com toda a pinta de pedófilo, que busca aliciá-lo e o pai repreende-o para que não se afaste dele, o pai.
Eles finalmente desistem de procurar na feira. Uma chuva torrencial cai. Pai e filho se abrigam da chuva repentina numa pequena cobertura de telhado numa casa de esquina. Ao correr para se abrigar, Bruno escorrega e cai. O pai não percebe e não se importar. Quando a chuva passa, o pai avista o ladrão. Pai e filho correm em direção ao mendigo que conversava com o ladrão. O mendigo se nega a revelar o paradeiro do ladrão e é seguido por Antonio e pelo filho. Chegam a uma igreja, onde voluntários prestam serviços aos mendigos: uma barba, dois pais-nossos; um corte de cabelo quarto salve-rainhas... Antonio insiste, mas o mendigo se nega a revelar o paradeiro.
Aos poucos Antonio se descontrola. Aos poucos, o homem normalmente pacato, calado e taciturno, torna-se alheio ao seu entorno. Grita com o filho. Bruno, passa a protagonizar esta alheação atraves de um sentimento de abandono. Mesmo tendo o pai o tempo todo ao seu lado, é uma criança esquecida. Certifica-se disso, quando da iminência da perda do filho - que pensa ter se afogado num rio. Tentando se reconciliar com o filho, e ainda com alguns tostões no bolso, leva-o a um restaurante. O pai mente, tenta ser trasparecer uma felicidade resignada alienando-se da tragédia pessoal. Mas não por muito tempo. Faz cálculos de quanto ganharia como colador de cartazes. Nas mesas ao lado, familias, com perdão da palavra, voilá, burguesas, caricatas. Detalhe: sua mesa é a única que não tem toalha. O filho percebe, mas o pai tenta dissuadi-lo de que o detalhe é inerente à suas condições de vida, às suas roupas, às suas maneiras de falar e comportar-se.
Ao deixarem o restaurante, Antonio decide procurar a vidente a qual criticava. A cena guarda algo de comicidade, mas serve apenas para encadear a cena seguite na qual Antonio finalmente encontra o ladrão. Segue-o até sua casa e envolve-se num imbróglio ao alienar-se do sentido de justiça e acusá-lo pelo crime. Vizinhos e amigos defendem o ladrão – que acaba tendo uma crise providencial e dostoievskiana de epilepsia. É mais uma vez o filho Bruno que introduz o ônus da razão ao chamar um policial que tenta intervir naquilo que poderia ficar pior. O policial indaga sobre as provas e testemunhas que sustentem a grave acusação. Ricci não tem provas de que o jovem de chapéu de alemão seja o criminoso e tenta agredí-lo. Aliás, na acusação e no ato insano, Antônio passou de vítima a culpado das circunstâncias.
É dia de jogo. Um Domingo qualquer. Uma tentativa frustrada. O estacionamento do estádio lotado de bicicletas. A tentação. O destino é cruel. A vida uma m... Fora do estádio. O filho Bruno presencia tudo e pode-se dizer que contribuiu para que ele não fosse preso. Talvez sensibilizado pelas lágrimas do filho, a vitima do furto é dissuadida. A vergonha demove a perda. A então quase perda do filho - quase assediado, quase atropelado, quase afogado – agora, insiste e aprofunda a perda. Bruno chora pela desgraça do pai. Os transeúntes desaprovam o exemplo do pai para o filho. Não entendem. Antônio parece perder o filho. Se perde de si. A derrota se consuma. E eu choro. Confesso: esse filme me emociona.
2 comentários:
Ótima resenha, conseguiu transmitir o sentimento de derrota do pai que é amplificado pela inocência do filho. Fico aguardando uma oportunidade de achar este filme em alguma locadora!
Kovacs, o De Sica eh um mestre do realismo italiano. Com esse tente assistir o Umberto D.. Outro grande filme.
A proposito, depois da dica do teu blog acabei indo procurar o Ian McEwan. Estou no meio. Eh otimo.
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