O Pai Goriot



Rapaz da Provença, Eugênio Rastignac é moço ambicioso. Vive numa casa de cômodos onde conhece o Sr. Vautrin que lhe mostra o caminho das pedras a procura de um casamento nobre, passa por humilhações e avanias. O que há de mais terrível nessa sua ambição pela ascensão rápida é a falta de dinheiro que ele tenta contornar aproximando-se de Goriot. Aproximando-se do patriarca Goriot – ex-comerciante, que enriqueceu tremendamente com a especulação de trigo em tempos de crise, inquilino da pensão Vauquer, na zona central da cidade,  o velho é um espectro que havia sido, e no momento do romance não passa de um homem bronco -  humilhado pelas filhas, genros e serviçais -, aproveitando-se da fragilidade e isolamento deste, Rastignac procura se tornar amante de uma das filhas do velho, a Baronesa Nucingen. Sr. Vautrin, nababo de se babar e um dos inquilinos da Pensão de Vauquer, passa a lhe emprestar dinheiro de maneira cordial, e nos diálogos entre os dois Vautrin solta essa pérola tautológica da Literatura Universal....

“Uma fortuna rápida é o objetivo de cinquenta mil rapazes que se acham na mesma situação que você. Você é apenas uma unidade neste número. Avalie os esforços que terá de fazer e a ferocidade do combate. Como não há cinquenta mil bons lugares, vocês terão que devorar-se uns aos outros, como aranhas num frasco. Sabe como se faz uma carreira aqui? Pelo brilho da inteligência ou pela habilidade da corrupção. Eh preciso penetrar nessa massa humana como uma bala de canhão, ou insinuar-se no meio dela como uma peste. A honestidade não serve para nada. Todos se curvam sob o poder do gênio. Odeiam-no, tratam de caluniá-lo, por que ele recebe sem partilhar. mAS curvam-se se ele persiste. Numa palavra, adoram-no de joelhos quando não o puderam enterrar na lama. A corrupção representa uma força por que o talento é raro. Assim como a corrupção é a lama da mediocirdade que abunda, e você sentirá sua picada por toda a parte. Verá mulheres cujos maridos só têm seis mil francos de vencimentos, gastarem mais de dez mil em vestidos. Verá empregados de mil e duzentos francos comprarem terras. Verá mulheres se prostituirem para passear em carruagens dos filhos dos pares de França, que podem correr Longchamps pela avenida do centro. Você viu esse pobre animal do pai de Goriot obrigado a pagar a letra de câmbio endossada pela filha, cujo marido tem cinquenta mil francos de renda. Aposto minha cabeça contra esse pé de alface que você encontrará um vespeiro na casa da primeira mulher que lhe agradar, mesmo que seja rica, bela e jovem. Todas elas vivem procurando iludir as leis, em guerra com os maridos a propósito de tudo. Eu não acabaria mais de falar se fosse preciso explicar-lhe os negócios indecorosos que se fazem por amantes, por vestidos, pelos filhos, pelo lar ou pela vaidade, raramente por virtude, pode estar certo. Assim, o homem honesto é o inimigo comum. Mas que pensa você que seja um homem honesto? Em Paris, o homem honesto é aquele que se cala e se recusa a partilhar. Não falo desse pobres idiotas que em toda a parte cumprem seu dever sem jamais serem recompensados por seus trabalhos, e que eu denomino a Santa Confraria dos Sapatos Velhos de Deus. Eh certo que neles reside a virtude em todo o esplendor de sua estupidez, mas neles também reside a miséria. Já estou vendo as caretas dessas honradas pessoas se Deus nos fizesse brincadeira de mau gosto de não comparecer no Juízo Final. Portanto, se você quiser obter fortuna imediatamente, é preciso já ser rico ou parecê-lo.”

Efemerides, pobre dos que vivem delas...

Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas

 
"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.


Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.


Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.


Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.


Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.


E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História." (Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

AP CS3



O nome do cidadão é Sergey Larenkov. Junta às fotos hodiernas composições em Adobe Photoshop CS3. Coisa do Demo, sem dúvida, e que por isso mesmo muito interessante.

http://sergey-larenkov.livejournal.com/

“Clarice,”

Clarice Lispector é e sempre será um mistério. Falo da literatura experimental de Clarice Lispector. Ao tratarmos da biografia de Clarice, muito bem escrita por Benjamin Moser, percebemos que traz à luz dados novos e interessantes - mais sobre a vida da escritora que da mulher. E ouso dizer que, falha um pouquinho no momento de reconectar as duas mulheres. Explico. Para mim, não revela dados biográficos novos, mas apenas absolutamente previsíveis e já presentes em outra biografia que eu havia lido sobre a mesma autora.

Ao contrário de “Eu sou uma pergunta”, uma biografia que li há anos atrás, sugerida por um amigo que vive hoje em Pretória, esta “Clarice,” mergulha mais nas fantasias de Clarice, em suas tentativa de meditação e mediação entre literatura e realidade, que em sua vida real. Ao menos, esta foi a imagem que tive ao comparar amadoramente as duas biografias. Faltou um pouco pontuar os fatos, desde a imigração dos pais para o Brasil em 1922, passando pelas relações familiares, e até mesmo, por que não dizer, esclarecer como uma pessoa tão confusa - não há pejoração aqui! - conseguia promover seus livros a partir de uma rede de apoio que começava com sua irmã, e passava por Lucio Cardoso e recebia o abraço corporativo de amigos influentes como Alberto Dines.

Na biografia de Teresa Cristina Montero, essas relações estão mais claras, sem dúvida.

Pois mostram que já consagrada no Brasil e no exterior, Clarice ainda se angustiava com a crítica e com a relutância de editores em publicar seus novos trabalhos. A biografia escrita por Moser complementa esse aspecto e mostra, por exemplo, a irritação de Clarice com a crítica de Alvaro Lins (reunida no livro Mortos de Sobrecasaca: Obras, Autores e problemas da Literatura Brasileira, ensaios e estudos, 1940-1960) sobredois de seus livros, Perto do Coração Selvagem e O Lustre. Folheando  Mortos de Sobrecasaca percebi que o crítico realmente começa com uma análise meio datada e até mesmo esdrúxula sobre escrita "feminina" e a aceitação do lirismo como forma de expressão literalmente feminina e inaugurada por Virginia Woolf. E vai além, afirmando que Clarice mimetizava o estilo de Woolf. Clarice se indignara com a crítica e confessara que nunca sequer havia lido Woolf. Lins classifica Perto do Coração... como um livro confuso, tomado pelo caráter do sonho e da super-realidade. Lins na certa ainda sofria o impacto entorpecente de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, encenada pela primeira vez no mesmo ano do lançamento de Clarice, obra que aparentemente forjou a forma daquela geração ver a relação entre ficção e realidade. Mas no decorrer da crítica, apesar de menos condescendente com O Lustre, Lins aponta e nos relembra para elementos realmente interessantes. Por exemplo, é claro que para quem já leu o livro, alguns personagens mesmo que secundários, importantes para a trama, aparecem e desaparecem com muita facilidade, numa espécie de mutilação dos antagonistas para dar voz apenas a seus protagonistas. Lins define isso como uma técnica processual. Mas essa mudança de centro de gravidade era comum nos grandes mestres. Balzac e Machado cansavam-se de fazer isso, por outros meios. É, ou não é, meu caro biógrafo do Barão? E por que a Clarice não podería?

Mas por essa biografia, ainda que a biografada saia imaculada pelo respeito do biógrafo, podemos acompanhar claramente a carreira literária de Clarice Lispector: suas estorinhas inventadas quando menina, seu trabalho como repórter de jornal chapa branca, seus traumas, na análise das missivas podemos perceber suas angústias criação literária, um pouco de suas amizades e trocas de favores com os intelectuais e escritores e a paixão platônica e sempre muito mal explicada pelo escritor Lúcio Cardoso, sempre muito mais enfatizada que o suposto romance com Paulo Mendes Campos – nunca claramente investigado para além da forte influência intelectual que Mendes Campos exercia sobre ela, ou para além da maledicência de amigos do meio literário.


Podemos até mesmo perceber que paralelamente à sua carreira literária, Clarice tinha uma vida privada.

Clarice foi casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente. Uma relação, que apesar dos filhos, sempre deixou um certo ar de aparências. Primeiro, pelo cotidiano que é sufocante para qualquer casal - ela chega até mesmo a citar para a irmã, se não me engano, "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente.". Segundo, pelos desgastantes problemas psicológicos apresentados pelo filho mais velho. Por tudo isso, Clarice nunca escondeu de seu círculo mais íntimo que se sentia sufocada pela vida conjugal, já desde os primeiros anos em Berna, Torquay e mesmo depois no 4421 Ridge St em Montgomery Country. Enfim, na biografia de Moser, ao contrário na de Teresa Cristina Montero, o casamento, instituição difícil para qualquer criatura dotada de mínima racionalidade, não raramente se torna um obstáculo às ambições, sonhos e promessas da escritora. Dessa biografia, no aspecto específico citado,  pode-se concluir que incapaz de elaborar a crise que inventava nas suas linhas escritas, Clarice passou a conviver com sua falta de elaboração, como quem divide a vida com uma pessoa amarga e que tenta temperá-la em vão no dia-a-dia. Aos poucos, de alguma maneira, enquanto Teresa Cristina Montero mostra a face pública de Clarice no papel de esposa de diplomata, recebendo em sua casa, se tornado amiga das esposas de diplomatas, trocando confidências banais e estúpidas, e obviamente se utilizando do prestígio para publicar, Moser mostra o oposto, mostra a sua face de prisioneira que não consegue entender por que Clarice e Maury estão presos, mesmo sabendo, ou desconfiando que a chave da cela está com eles, mas não conseguem localizar. Demorou 16 anos para encontrarem a chave.

Mas nada me tira da cabeça que uma mulher que escreve de tal maneira, ou melhor, depara-se de tal maneira com a força do próprio desejo já desde jovem, sabia ou ao menos suspeitava dos ônus em se casar com um diplomata, de viver fora do Brasil, ou seja, de ser expulsa de seu paraíso imaginário para ganhar a temível e angustiante notoriedade de escritora. Ela assumiu isso em troco de algo. E por isso imagino que a chave estava bem guardada, ao invés de perdida...

A paixão por Paulo Mendes Campos foi secreta. Tão secreta que passa quase incógnita pelas páginas dessa biografia. O caso era tão discreto que não conta com mais de duas páginas em todo o livro e termina com Mendes Campos intimado pela mulher inglesa a partir com a família para Londres. A paixão por Lúcio Cardoso era platônica, mas que não deixava de tera algo de paternal. Ele mostrou-lhe que suas anotações dispersas e que pareciam incoerentes, eram o seu próprio método, além de ter sido ele quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. Paixão e labor andavam juntos em ambos os casos.

Enfim, o livro de Benjamin Moser tem muitos pontos muito atrativos. Ao juntar elementos biográficos e espelhá-los na obra ficcional de Clarice. Se é inovador eu não sei. Desconfio que sim. Mas o mistério das duas mulheres não necessariamente se desvela, até por que não há razão nem ontológica tampouco comercial para isso.

Hawaii, Oslo



Hawaii, Oslo é um bom filme norueguês de 2004 que segue a linha de outros filmes como 21 Gramas e os clássicos Magnolia e o grande Crash. O filme conta a estória de um grupo de pessoas que não necesariamente se conhecem mas que têm suas vidas cruzadas em algum momento.
Talvez a principal estória seja a de Leon, paciente de um hospital psiquiátrico, que espera pela realização do pacto que fizera com sua namorada, Åsa, dando conta de que quando cumprisse 25 anos, iriam viver juntos. No hospital, Vidar é o trastornado enfermeiro que se torna um bom amigo de Leon. Mais que amigo, se torna uma espécie de protetor do paciente que ao se sentir frustado, ou tomado pela sensação de pânico, começa a correr sem parar. Vidar é transtornado pelos seus sonhos. Até aí Freud riria de minha frívola sentença. Mas literalmente, Vidar acredita ter poderes premonitórios, já que seus sonhos trágicos, de alguma maneira se tornam realidade. Num deles, o jovem Leon é atropelado por uma ambulância e morre. Essa morbidez torna Leon superprotegido por Vidar, que angustiado pela perda do paciente e amigo, passa a não quere mais dormir.
O Filme começa com Frode e Milla com um bebê dentro de uma ambulância. Eles estão tendo seu primeiro filho, e foi dito a eles que não viveria por muito tempo. Em cortes rápidos, Leon corre em disparada pelas ruas de Oslo, à noite. Noutro corte, Vidar corre a procuda de Leon. Uma mulher desconhecida também vaga pelas ruas e cruza com Leon. Toda a sequência inicial é caótica mas determina todas as demais sequências do filme...
No dia de seu aniversário, Vidar, ansioso pelo momento da visita de sua prometida, acba recebendo a visita de seu irmão, Trygve, cumprindo pena por roubo, que pega Leon no hospital psiquiatrico para comemorar seu aniversário, mas que tem planos de usar a saída da cadeia com o irmão para fugir. O irmão tem um novo plano de assalto e pretende envolver Leon no roubo, no mesmo momento em que Leon se desespera com a hipótese de não encontrar Åsa.
Filmezinho bom, filminho bom...

Disgrace

John Malkovich é David Lurie, o professor de poesia romântica que perde sua posição e prestígio, antes de cair em desgraça, pela “relação amorosa” que mantém com uma aluna. Tanto o livro quanto o filme mostram que a reconciliação é um conceito apenas retórico na Africa do Sul pós-apartheid. No filme, Malkovich que já era um especialista em papéis ambiguos, Dangerous Liaisons e Ripley's Game são a prova maior disso, empresta a pele ao David Lurie, personagem criado por J.M. Coetzee.


O filme de Steve Jacobs segue absolutamente linha por linha a trajetória do livro. Para dizer a verdade, tamanho respeito ao original, torna a linguagem filmica um pouco monótona e nos mostra que realmente as duas formas de expressão, o Cinema e a Literatura, são práticas que dialogam mas que antes de tudo são distintas.

Nem por isso deixam de dialogar e esclarecer algo que talvez escapasse até mesmo a uma segunda leitura atenta ao livro.

Um dos pontos que o filme, ou no caso, uma segunda leitura com imagens, Lucy, a filha de Lurie, mesmo depois da violência sofrida, escolhe reerguer a vida exatamente no local onde a mesma havia sido violada e destruída. A decisão da filha não é compartilhada pelo pai, estremecendo mais ainda uma relação que nunca havia sido muito sólida. Um segundo ponto é tentar entender as razões de Lurie não aceitar uma espécie de pacto corrupto, se retratar publicamente e retornar a suas atividades docentes. No livro, o leitor talvez sempre se espere por uma virada, que a cada página se torna mais distante. O filme segue literalmente o livro, mas se Jacobs tem algum mérito, o mérito está em monstrar um David Lurie completamente devoto ao seu estudo intelectual. Enfim, não se pode esperar de um homem que dedica a sua via a ler Byron, Keats e Shelley, essa espécie de remissão. Por isso a estória é demolidora, no papel e na tela.

O filme vai até um pouco mais além. A indulgência nunca chega, e se chega assume uma peculiar expressão de aceitação. A auto-expiação, se caso ela exista, está ali em imagens quando quase no final do filme a câmera em zoom-out se afasta de Malkovich e mostra seu entorno. Ou seja, uma pequena casa, a câmera se afasta, uma pequena fazenda de terra não muito fértil, a câmera se afasta mais, a casa cada vez menor frente a vastidão de uma terra cada vez mais virgem, intocada, bravia. E o filme termina.

http://ilusaodasemelhanca.blogspot.com/search/label/Literatura%20Sul-Aficana

Música do dia. Ne me quitte pas. Jacques Brel
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Saramago (1922-2010)

Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar.

A Caverna.

Antropofagia



Um modernista poderia dar cambalhotas de felicidade. Eu não. Em um dia apenas, confiro o saldo bancário, leio de 30 a 40 páginas, dou pelo menos uns 10 Ctrl+Alt+Del, uns 150 Enters, troco 3 fraldas em média e durmo 6 horas em média, traduzo e reviso, assino meu nome pelo menos duas vezes por dia em algum memorando sem a menor importância, leio dois jornais em português, dois um em inglês, um em espanhol e quando dá um em galego, uso o comando ls –l e o pwd e abro e fecho permissões  no UNIX  pelo menos 200 vezes para saber onde estou localizado no mundo, e assisto pelo menos dois filmes. Quando dá tempo, ainda racunho coisas para este meu blogue maltratado e sem-vergonha. E por isso tudo, mas principalmente pela falta de tempo, não há coisa mais insuportável para mim que assistir filmes ruins. Ao assistir Inglorious Basterds certifico-me do grande antropofágico que é Tarantino. Uma vez pergutaram para Billy Wilder o que ele achava de Tarantino – na época de Pulp Fiction e Reservoir Dogs! Wilder devolveu ao entrevistador uma pergunta premonitória: “Quem?”


À epoca, achei um certo exagero de Wilder. Mas depois de assitir Jackie Brown e principalmente Bill Kill um e dois, chego a conclusão que Wilder tinha razão. Tarantino é um pastiche dele mesmo, um reciclador de lixo, prova disso é que seu filme anterior, Death Proof nem chegou a ser lançado. No fundo o que ele faz é usar filmes B dos anos 70, colocar uma trilha sonora eletrizante, dar novos ângulos, encher tudo com violência explícita e gratuita, juntando humor negro, para brincar com os fatos e estereótipos,  transformando tudo num novo filme B com um suposto ar cool. Essa antropofagia é ótima para fazer teses. 

O título inglês original está grafado errado de propósito para enfatizar que os Basterds são energúmenos e psicopatas violentos. Tudo no filme é assim, surpreendente e ao mesmo tempo rigorosamente calculado para conseguir um efeito esdrúxulo: A visão vingativa - que funciona  nos quadrinhos e nos filmes B mas não na História.  No fundo aposta na idéia excepcional e infantilmente forçada de que nada foi daquele jeito, mas que bem poderia ter sido.... No fundo, falta-lhe um certo pudor com seu prórpio passado, com aquele cineasta genial que poderia ter sido levado a sério uma década atrás. 

Se há algum mérito nesse filme, não sei bem. Há sem dúvida, diálogos bons, como o da sequência inicial quando um fazendeiro francês, na França de Vichy recebe a visita de um oficial da SS que vem interrogá-lo aparentemente de forma amigável. Além disso as sequências dos filmes quando Hitler, Goebbels e o alto comando morre no cinema, são reais. Dá pra notar que pelo menos um dos filmes é da Leni Reifensthal.
Pensar que nessas duas horas e meia (!) eu podia não ter feito nada, ou ter dado 5 Ctrl+Alt+Del, ou 25  ls –ls e  pwds, ou ter lido de 20 páginas, ou ter dado 40 Enters, ou trocado 1 fralda fedida  e asquerosa, ou  traduzido e revisado um texto, ou ter assinado meu nome num papel que será arquivado e esquecido, ou simplesmente não ter feito nada, pois melhor a metafísica em não pensar em nada a um desses  filmes do Tarantino. 

Música do dia: Hoje não tem música....
Há qualquer coisa a que eu chamo o rancor da grandeza: tudo o que é grande, uma obra, um feito, volta-se imediatamente, uma vez realizado, contra quem o fez. Este, precisamente porque o fez, encontra-se fraco — já não suporta o seu acto, já não o olha de frente. Ter atrás de si algo que nunca se deveria ter querido, algo em que está atado o nó que há no destino da humanidade — e tê-lo, doravante, sobre si!... É quase esmagador... O rancor do que é grande! Outra coisa é o silêncio horripilante que se ouve à nossa volta. A solidão tem sete peles; nada mais as atravessa. Encontramos pessoas, saudamos os amigos: novo ermo, já nenhum olhar nos saúda. No melhor dos casos, uma espécie de revolta. Uma tal revolta senti-a eu, em graus muito diversos, mas por parte de quase toda a gente que me era próxima; parece que nada ofende mais do que fazer, subitamente, notar uma diferença — as naturezas nobres, que não sabem viver sem venerar, são raras.
in Ecce Homo, Friedrich Nietzsche

Imagem. Cannibalism in Autumn. Dali.

Asteya

Vou em frente. Chega de perder tempo com gente como o poeta escocês Robert Burns e Thomas Man. Poetas e escritores que já não me dizem nada e insistir em entendê-los seria roubar de mim mesmo algum tipo de energia, ou melhor, o tempo que não disponho mais na vida. Escritores e poetas com quem passo meu tempo são os que expandiram o limite de sua arte com inventividade e coragem, como os exemplos de João Cabral e Ivan Junqueira, e transformaram o conjunto de sua obra em algo imprevisto. Tão bom que me toca intimamente, a ponto de eu coçar minha cabeça e dizer, Isso é muito bom, por que eu nunca tinha lido antes. Por isso, um dia, espero que brevemente, lerei Joyce. E por isso que gosto do que Borges fez com a literatura contemporânea ao juntar literatura policial folhetinesca com a História e os arquétipos mais íntimos o ser humano; por isso considero a leitura de Balzac, Flaubert e Dostoievski como experiências tão necessárias a um homem como as de ler um livro com paixão, criar um filho, plantar uma árvore; por isso gosto de Pollock que me fez ver, pelos olhos de Giulio Carlo Argan os movimentos espaciais da cidade. Por isso, para mim, não seria um exagero incluir entre eles a inventividade de Tom Ze, a poesia de Tom Waits, os filmes do Kurosawa e do Vittorio De Sica, e a música de Brahms, e o Flamengo da década de 80 que vi jogar. Razão? Por que me causam paz e inquietação.

Na minha idade, já cansei de brigar com fatos. Interpreto-os e vou em frente. Com quase quarenta anos é muito fácil identificar uma derrota, mesmo que seja difícil admiti-la em público, já que como dizia Pessoa, difícil é encontrar um amigo que tenha levado porrada. Todos são campeões em tudo. E o que aconteceu ontem foi isso...

Tivemos o melhor time dos últimos 15 anos que em pouco mais de três jogos pôs por terra as esperanças contidas há quase 30 anos, desde aquele longínquo 1981. Penso que se eu escrevesse isso ontem usaria aquela sinceridade deseperada, desalentada e pungente da juventude, e me juntaria ao coro da torcida gritando FORA ADRIANO. Me senti mais revoltado e desrespeitado ao ver um time destes se esforçando ao máximo ganhar de um time mediocre do que com o desrespeito do goleiro Bruno mandando beijos para a torcida, num ato de ironia ignóbil. Mas, antes antes de um grito na laringe danificada, reflito hoje com ponderação. E o que realmente me revoltou em todos os jogos foram os primeiros tempos, geralmente já tendo tomado um gol e sendo obrigados a adquirir uma urgência desesperada para correr atrás do empate e da vitória, sempre sofrível. Ou seja, a falta e compromisso que inspirou a desconfiança a cada jogo.

Desconfiança esta, vamos ser sinceros, desde aquele empate com o Goias. Ganhamos o Campeonato Brasileiro com sorte, e convenhamos um pouco de corpo mole do Grêmio e do Corinthians. E nos iludimos, por que somos Flamengo. O problema é que agora chegamos ao fundo de um poço de vergonha. Não vencer um time fraco como Caracas, talvez mais fraco que qualquer time pequeno do Campeonato Carioca, é algo preocupante. O Botafogo, no último domingo nos respeitou mais, pois entrou em campo combativo desde o começo. O time do Caracas apenas ocupou os espaços de apatia deixados por nós em campo.

Não sei se precisamos de um novo técnico.

Andrade é meu idolo. Eu daria tudo para apertar a mão um dia na minha vida, mas ele fez várias mudanças erradas no time em jogos consecutivos; hesitou todos esses jogos em colocar o Pet; insistiu em jogadores medíocres como Juan, Kleberson e Toró; armou um esquema defensivo com 3 cabeças de área - com Angelin no comando. Cometeu um pecado tático nisso tudo com a falta de treino com falta combatividade de marcação homem a homem – parece que todos os adversários jogam contra cones, e o segundo gol do Caracas mostra isso. A finalizações inconclusas de ontem, com Adriano, Leo Moura e Love chutando bolas certas para fora, mostra bem meu argumento. Não sei se chegaria ao ponto de pedir sua saída, pois acho que ele é apenas um técnico conservador.

Entretanto, Certamente precisamos de um diretor de futebol competente e discreto, que tenha mais diálogo com o técnico.

Tudo que se viu até agora, foi exatamente o contrário, de imposições veladas contra Pet, a leniencia com Adriano, Love e o Comando da Chatuba. Por isso não concordo com as opiniões amenizadoras. Cabeças devem rolar. E muitas. No mundo do trabalho é assim, não rendeu, rua. Estou convencido que time com muitos astros, e outros que pensam sê-los, não é necessariamente um time bom – vários times europeus provam isso. O Flamengo não é um time bom é apenas um time com algumas estrelas - o melhor que tivemos nos ultimos 15 anos -, mas provou ser um time medíocre sob a égide de do Império de Adriano – um exemplo e homem e atleta medíocre e incompetente, que merece sair da história do Flamengo pela porta dos fundos e apenas ser esquecido. Um time aborrecido e com mesma ênfase dramática de um Montanha Mágica.

Faço um apelo para meus amigos flamenguistas que tenhamos um pouco de dignidade hoje e NãO TORÇAMOS PARA NENHUM TIME LATINO, pois passar provaria nossa insistência no mito de Asteya.

BBB79


Assisti a esse filme pela primeira vez há pelo menos 20 anos atrás e não me lembro bem por que razão não gostara. Ontem, revendo-o percebi que esse filme é ótimo. Quando assisti pela primeira vez, a Amazônia, ao contrário, já não era mais uma promessa e a Beth Faria já perdera a majestade para se não me engano a Gretchen ou a Sandra Brea, uma dessas aí. Ou seja, um filme datado. Além do mais, sempre quando se conversa ou se lê sobre filme brasileiro com alguém mais PhD. O cidadão vai falar da “questão” da Identidade “a nível de” Nação, e todas essas coisas que não me interessam e que para ser sincero me desestimulam numa discussão sobre cinema. Mas hoje em dia isso não importa, pois o que empolga neste filme é o inventário econômico e cultural de um país onde a nota mais alta tinha um Floriano Peixoto estampado na cédula cor de barro e a Beth Faria ainda era com toda a justiça um símbolo sexual. O filme se centra nos artistas mambembe da Caravana Rolidei e em sua peregrinação pelas fronteiras do norte e nordeste do país.

As fronteiras são claras entre um país tão imenso que praticamente não dialoga entre si. As fronteiras culturais são mais impressionantes ainda, pois com a advento da televisão a cultura levada pela Caravana praticamente fica batida. Cacá Diegues fez realmente um filme ótimo com atores fantásticos. José Wilker está simplesmente absoluto em seu papel de empresário cultural, meio cafetão, meio aproveitador, meio oportunista, enfim, um empresário cultural com é maiúsculo. E o Fábio Júnior até que se sai muito bem no papel de sanfoneiro apaixonado pela Salomé, interpretada pela Beth Faria. Um momento Cinema Paradizo, e que Cinema Aspirinas e Urubus tentou reproduzir de maneira não muito eficiente, acontece nesse filme, quando o inigualável Joffre Soares, interpretando Zé da Luz , vai pelo sertão exibindo o Ebrio por um sertão sem audiência interessada. Uma cena que podia ter feito até chorar, mas que Cacá Diegues preferiu deixar assim crua.

Se você hoje em dia for assistir esse filme com cuidado, percebe que o diretor fez de cada take uma crítica social embutida, mas sem aquela militância chata de filmes propagandistas. No filme, a ditadura existe, mas não afeta a vida de milhões, índio bebe coca-cola e quer voar de avião, sertanejo assiste televisão e gosta do seu poder hipnotizante, os artistas são analfabetos - como o prórpio Lorde Cigano revela a certa altura -, e o Brasil se torna moderno mas é de um atraso só. E o prórpio enredo é bem contado com uma estória de amor entre o Sanfoneiro e Salomé sem romantismo barato e sem idealismos de fanfarra. Filme clássico que, com o respeito ao tempo que sedimenta um monte de preconceitos, vale a pena ser revisto.

Efemérides do primeiro de Abril!

Só um lembrete, a história corrige a direção do silêncio, não esse o silêncio da ausência de ruído, mas o da mudez do silêncio feito de vibrações que se anulam umas as outras como quando da balbúrdia de gente nos ecos de um refeitório, onde apenas reparamos nas bocas que movem-se como aquelas dos tumultos íntimos dos mímicos, por esse mesmo silêncio pergunto, que espécie de perstígio podem exercer sobre nós túrbidos homens como o udenista Auro Moura, 46 anos atrás? 

Não espanta em nada a  satisfação do udenista Auro Moura ao declarar vaga a cadeira da Presidência da República, vindo de quem vem, logo ele, um homem que ainda jovem participa da rebelião de 32 e que mais tarde seria um dos organizadores da TFP, e que mais tarde ainda, quando o esmalte dos números do relógio que contava seu tempo já descascara, e quando os milicos já se sentiam confortáveis baixando o sarrafo na malta de comunistas, esquerdistas, sociedade civil  & afins, ironicamente, quando ainda o relógio continuava movendo os ponteiros num tempo quando os esmalte dos números
descascados já não importava,  os próprios imerecidos militares trataram de jogá-lo merecidamente para escanteio primeiro como embaixador na Espanha de Franco e mais tarde como aspone no Bando de Desenvolvimento de São Paulo. Ou seja, existem lugares onde ser golpista  dá certo
historicamente


Aterro


Ultimos meses, falta de tempo absoluta que impõe ao blog uma espécie de silêncio estagnado. Mas. Fim de Semana em NYC. Casa de amigos. Evidentemente, como o tempo é curto para se ver tudo que se quer, quase nos deixamos levar pela pressa da cidade com seus taxistas em suas ansiedades dos javalis. Mas o que nos salva é que algumas ruas mostram ainda uma paz de roça, onde alguns vizinhos se conhecem, os cachorros fazem seu cocô tranquilos, e quase se pode ouvir um velho ofegante do outro lado da calçada a tossir com seus pulmões cheios de lodo.

No MoMA, um dos meus interesses numa cidade de muitos abismos, ao entrar, não consigo disfarçar minha cara de beduíno pasmado olhando para cima. Por absoluta falta de tempo, ainda não visitara o museu desde sua reforma. A arquitetura é magnífica, moderna, imponente, quadriculada, ampla, luminosa, um espetáculo por si só a ser adulado. Detalhe importante. Esse amigo tem um providencial membership do museu, o que nos permite entrar sem pagar e entrar sem filas. Me senti mais feliz que jogador de futebol em camarote do Sambódromo.

Por motivos de força maior, fui obrigado a voltar 3 vezes na exibição de Tim Burton. Eu ainda avisei pro cidadão que ele ia sonhar com aquelas porcarias, mas ele quis por que quis assistir aquele espetáculo de monstros psicodélicos. Conclusão, com quase cinco anos, tremendo homem feito, diz que sonhou com o monstro da boca grande e fez xixi na cama.

Infelizmente, por motivos de meltdown relacionados mais uma vez ao Burton, não consegui assitir com a atenção que eu queria a exibição de Picasso. Picasso: Themes and Variations. Eram mais de cem trabalhos entre xilos, carvão, aquarela que já estiveram parcialmente numa exibição da Aliança Francesa do Rio - no século passado. No MoMA havia alguns visíveis estudos das suas fases azul e rosa. Um deles, como nesse aqui abaixo, vê-se o acrobata, um dos personagens do quadro da Família de Saltimbacos da coleção da National Gallery of Art, e que no quadro aparece sem uma perna. Outras litogravuras lembram muito outros quadros famosos de Picasso, como uma série de estudos, onde o traço lembra muito o clássico Guernica, presente no Reina Sofia. Enfim, o que esperar de uma tarde de sábado num dos museus mais frequentados do mundo. O universo só podia conspirar, num museu abarrotado de gente falando alto e ciscando mais que galinhas em trovoada.

Para concluir, o que mais me espantou na imensa instalação da inflacionada artista Marina Abramovic´ -  uma artista que está por meses sentada por horas do dia a fio em sua instalação sem se mover para nada - não foi o conceito de que entreouvi um casal, desses  inteligentespracaramba, mas sim o tamanho de seu nariz. Uma coisa impressionante que me faz a cada dia implicar mais e mais não com pessoas de narinas grandes, mas  com essa idéia de arte-instalação -  a arte dos pulhas.

Já com comichão nas pálpebras cansadas, demos uma parada na Pasticceria Bruno perto do Village, numa padaria bonita, dessas de gente bacana, que vende tudo quanto é doce colorido -  e que tem aquela gente que dá aquelas risadinha elegantes e faz pose enquanto o café esfria -  mas que no fim das contas, não vende pão na chapa.

Música do dia. Feeling Good - Nina Simone, again.

ó pá, Camões puraqui!

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía. 
 
 
 
ó pá, aqui quem fala é o homem do ríd espíquer, 
sou de além-mar e queria dizer que esta voz com este 
sotaque luso não é do Camões e muito menos do
Chico!

José Mindlin

Nunca tive a oportunidade de conhecer a José Mindlin, apesar de conhecer bem dois de seus amigos e  uma meia dúzia de seus conhecidos - que já visitaram, ou pesquisaram em sua biblioteca. Sem dúvida, José Mindlin foi um cidadão brasileiro raro. Pelo que meus amigos, chefes  e ex-chefes contam, o homem era uma espécie rara de brasileiro que combinava traços dimetrais facilmente discerníveis da natureza dos homens de sua classe social e de sua naturalidade. Foi uma espécie de self-made man, dono da Metal Leve,  fato que por si só não empolgaria em nada nossos critérios indolentes de julgamento, pois destes exitem aos montes. Mas se destacava no mundo da cultura não apenas  se tratar de um homem lido e discretíssimo, mas por seu extraordinário espírito filantrópico - este sim, raríssimo em seu meio empresarial brasileiro. Pelos idos de 2001, tive a felicidade de ser contemplado por uma bolsa da Fundação Vitae para fazer uma pesquisa. Devo à Vitae e indiretamente a Mindlin por isso. Certamente, visitarei sua biblioteca e sentarei, nem que seja por uma tarde, para ler ao menos algum trecho do Varnhagen.

The White Ribbon - A Fita Branca

Minha implicância com Haneke terminou ontem, domingo de carnaval, mais ou menos pelas sete da noite, pois The White Ribbon é uma contribuição crítica  importante para o cinema. Cumpre ainda acrescentar que este é um ótimo filme sobre gente da roça. Não se enganem, é um filme surpeendentemente linear onde o narrador, um professor de escola primária numa fictícia vila de Eichwald, narra, em suas memórias distantes, fatos ocorridos entre julho de 1913 e agosto de 1914, quando uma cadeia de acontecimentos violentos sacode a rotina de um povoado pacífico de forma aparentemente incompreensível. Aparentemente incompreensível e misteriosa até mesmo para o narrador, que adverte o público desde o começo que desconhecimento das razões e causas exatas daqueles eventos permenecerão envoltas por uma cortina de fumaça para sempre.

A vila é regida por um barão e um pastor, que determinam os destinos do universo público e privado de praticamente todos na cidade.  O puritanismo protestante é uma máxima em seus mais precisos detalhes. O médico trata da vila com dedicação. E as crianças vivem nesse universo lúdico...

Mas isso é apenas a superfície. Por ordem de bizarrices que acontecem na tentativa de mostrar o obscurantismo das formas e da vida rural, Haneke retrata o Barão que rege a vila, composta basicamente por forasteiros, com metaforicamente uma mão invisível porém pesada como o ferro. Para auxiliá-lo há a figura espiritual do pastor, um homem austero, que é responsável pela confirmação religiosa da rapazeada púbere da vila. Para preservar a pureza dessas moças e moços, é amarrada uma fita branca em seus braços como exemplo de sua diafaneidade. Quando o filho do pastor, por exemplo,  revela ao pai que realiza sobre trabalhos manuais, diríamos, onanísticos, o pai não apenas passa-lhe não um sermão sobre olhos que caem, pulmões que se infiltram de líquido e almas que padecem de castigos eternos, como o humilha verbalmente levando-o às lágrimas  por sua fraqueza moral e o castiga de maneira brutal surrando-o e amarrando-lhe as mãos todas as noites antes de dormir. Isso tudo, apenas na casa do pastor. Vejamos o médico: homem bom, viúvo, pai de dois filhos que trata as crianças da vila com amor e carinho, e que tem a ajuda de uma mulher que cuida das crianças e eventualmente trata de algum resfolego mais urgente do doutor. Essa também é apenas a superfície. Nos recônditos, o pai trata a empregada de maneira imprópria, sempre que pode humilhando-a, violentando-a fisica e verbalmente; abusa sexualmente da filha e tem uma relação ditanciada e fria com o filho menor.

A série de acontecimentos misterioso iniciam-se com um acidente. Um fio é amarrado entre duas árvores e o médico e sua montaria são gravemente feridos. Segue-se: nas festividades anuais, enquanto o bom barão abre a celebração regada a àlcool e comida, alguém vai até a plantação de repolhos do barão e a destrói, bem como rapta o seu filho e o espanca até a exaustão. Em virtude de tais acontecimentos, a babá do menino, Eva, é despedida por negligência. Sem ter a quem recorrer, parte para na casa do professor que a leva no dia seguinte à sua casa.

Nesse meio tempo, em meio a estupros, violações de menores, incestos, violência sobre os fracos e o rigorismo autoritário da moral protestante, há outras cenas mais chocantes. Sim. O filme está apenas no meio!

Uma outra série de eventos não necessariamente conectados ocorre. O estábulo do barão é incendiado criminalmente. O filho excepcional da empregada da casa do médico é violentado, amarrado a uma àrvore no bosque e tem seus olhos vazados. A empregada, desesperada, pede a bicicleta do professor emprestada pois afirma ter provas sobre a autoria da barbaridade com seu filho. A esta altura o professor já está totalmente envolvido emocionalmente com Eva – para a casa da qual se dirigia no momento de ser interpelado. Aos poucos o jovem vai ligando alguns fatos e levanta suspeitas sobre os filhos do pastor como os responsáveis pelo enfraquecimento espiritual da vila, ou seja, desconfia que os adolescentes estariam por trás da violação da criança. O pastor sabe que as acusações do professor podem ter um fundo de verdade, pois sua filha deixa seu pássaro de estimação morto com uma tesoura cravada no meio de sua escrivaninha. Entretanto, simula-se insultadíssimo, e adverte o professor que se ousasse uma vez mais acusar a algum de seus filhos seria obrigado a tomar medidas extremas que visassem seu afastamento – no caso o professor e narrador da estória, que jamais retornaria a Eichwald por questões não necessariamente relacionadas à suas acusações. E este grande filme termina no mesmo tempo do assassinato do arqueduque Francisco Ferdinando, conectando, com alguma pretensão do cineasta,  um fato histórico com elementos ficcionais que poderiam guardar as chaves de explicações históricas sobre o porvir.

O filme em si é muito bem editado. Os cortes são tão cirurgicamente precisos que sustentam até o fim o enredo de indagações sem respostas. Haneke foi muito elegante ao deixar de fora as imagens violentas e apelativas. O cara evoluiu – esqueça o Sétimo Continente, filme realmente lamentável em sua carreira  bem como o pretencioso The Piano Teacher  - desde 71 Fragments of a Chronology of Chance. Entretanto, em seu Crepúsculo dos Deuses pessoal (ou em sua mistura de crônica material de Ovo da Serpente com o universo histórico de O Jovem Torless) Haneke propõe alguns pontos controversos e até mesmo pretenciosos. Haneke desfaz a velha dicotomia entre um provincialismo viciado no rigor moral protestante cercado de pessoas mesquinhas, hipócritas e medíocres, com um universalismo de propósitos interpretativos um tanto deficiente do ponto de vista histórico. A opção é intencional pois este é um filme não apenas para críticos e cinéfilos, mas alimentando-se das mais variadas correntes de pensamento, procura um público amplo e compreensivo. Algumas vezes a concentração nessas miudezas formais, e outros bizantismos de abrandamento do fosso que separa o campo e a cidade, inverte a ordem interpretativa corrente e talvez de difícil contestação de que a Banalidade do Mal, esta mesma que condescede com o sofrimento, a tortura e a própria prática  do  mal  é um fenômeno anterior ao Fenômeno de Massas. Haneke evoluiu, mas eu ainda tenho sérias dúvidas sobre suas teses costuradas com os fios do maniqueísmo pelas beiras. Afinal, preciso muito mais do que imagens e um enredo bem amarrado para ser convencido de duas coisas. Primeiro, que o Mal é executado por pessoas normais. Segundo, que há uma distância imensa entre o Anschluss, o Nacional Socialismo e as práticas de manipulação política dos fenômenos de Massas.


Poema do dia:
A Cana-de-Açúcar Menina


A cana-de-açúcar, tão pura,
se recusa, viva, a estar nua:


desde cedo, saias folhudas
milvestem-lhe a perna andaluza.


E tão andaluza em si mesma
que cresce promíscua e honesta;

cresce em noviça, sem carinhos,
sem flores, cantos, passarinhos.  

Escola de Facas. João Cabral de Melo Neto 

Snowmageddon

Num dia assim. Como diria Lênin, Que fazer? Logicamente, assistir Tristan und Isolde: umas quatro horas garantidas...e olha que eu só assiti até o fim do segundo ato, quando Melot, melhor amigo de Tristão, lhe desfere - presumo que por questões paralelas - umas espadadas mortais no bucho quando o vê abraçado a Isolda . [amanhã:  terceiro ato]


A traveler, by the faithful hond,
Half-buried in the snow was found.
H. G. Longfellow

O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada

Corria o ano de 1911. Vejam vocês: — 1911! O bigode do kaiser estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: — é impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos: — grande época! grande época! Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto unilateral de Mata-Hari, que nasceu o Flamengo. * Em tempo retifico: — nasceu a seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradição náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense Discute daqui, dali, e é possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: — cindiu-se o Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol. Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a torcida tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: — quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: — a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax e baços adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a ferocidade dos velhos tempos. Mas raciocinemos: — em 1911, ninguém bebia um copo d’água sem paixão. Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: — não se trata de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubronegro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um césar apunhalado. Também é de 911, da mentalidade anterior à Primeira Grande Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: — quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
[FLAMENGO SESSENTÃO Manchete Esportiva, 26/11/1955 .Nelson Rodrigues. A Sombra das Chuteiras Imortais]